A propósito da iniciativa que hoje decorre em
alguns restaurantes de recusar o pagamento com cartões, algumas notas.
Segundo alguns estudos, em Portugal já existem
tantos cartões de crédito como portugueses, 10,1 milhões. De facto, o cartão,
os cartões, de crédito ou de débito e o telemóvel, os telemóveis, parecem fazer
parte do equipamento básico de qualquer de nós. Curiosamente, apesar da
situação de crise as instituições bancárias terão emitido mais 811 000 cartões,
obviamente solicitados pelos seus clientes, um número superior ao do ano anterior.
Muitos de nós usamos uma carteira repleta de cartões. É claro que proliferação dos cartões se tonou um
excelente negócio para as entidades gestoras e daí o protesto da restauração.
Dados recentes da DECO, em 2012 e até Junho, mais
de 10 000 famílias solicitaram ajuda para situações de sobreendividamento.
As famílias em dificuldade que a esta instituição
recorrem evidenciam frequentemente uma taxa de esforço cerca dos 90%, ou seja,
ao receber 1000 €, 900 estão destinados ao pagamento de créditos e em média têm
que gerir 8,6 créditos, um assombro. Como é óbvio, trata-se duma situação
insustentável e mesmo com taxas de esforço mais baixas basta uma pequena
perturbação ou algo de imprevisto, desemprego por exemplo, para que se rompa o
equilíbrio e as famílias entrem em incumprimento, com as previsíveis e complicadas
consequências. A DECO recomenda 40% como a taxa de esforço aceitável e
prudente.
Muitas vezes tenho afirmado que estas matérias, sobreendividamento
e o uso excessivo e desregulado dos cartões, apesar dos seus contornos e implicações
de natureza económica para as famílias, radica nos modelos económicos e sistema
de valores que nos envolvem.
Como já tenho referido no Atenta Inquietude,
instalou-se a ideia de que "és o que tens". Bem podemos afirmar que
cada um de nós não olha assim para a vida mas na verdade é difícil resistir à
pressão para o consumo e para a ostentação de alguns bens ou estilos de vida
que "atestem" que "somos" gente. É o crédito da casa, do
carro, da mobília, das férias, do casamento do filho, do plasma, etc. etc. Tudo
bens a que obrigatoriamente temos de aceder como prova de que somos gente,
embora também se conheçam situações de recurso ao crédito para tratar questões
de saúde.
Por outro lado, as instituições financeiras que
concedem crédito estiveram durante demasiado tempo bastante mais atentas aos seus
próprios interesses que aos riscos das pessoas que a elas recorrem, fomentando
e incentivando créditos manifestamente pouco sustentados e com uma ligeireza
inaceitável. Actualmente, revelam-se bastante mais selectivas e cautelosas, em
algumas áreas, crédito à habitação por exemplo, devido à subida enorme do valor
do crédito malparado e dos seus próprios custos de financiamento, mas continuam
a alimentar o cartão de crédito. É o mercado a funcionar, certamente.
Este tipo de matérias é apenas mais um indicador
de como se torna necessário repensar valores e modelos de organização e
desenvolvimento. Eu sei que não é fácil e pode parecer ingénuo, mas se não
falarmos e não nos inquietarmos com isto, então é que nada mudará. Nunca.
Talvez não fosse descabido instituirmos nós, de
vez em quando, um dia sem cartões.
Sem comentários:
Enviar um comentário