terça-feira, 25 de setembro de 2012

DINHEIRO DE PLÁSTICO TAMBÉM É DINHEIRO

A propósito da iniciativa que hoje decorre em alguns restaurantes de recusar o pagamento com cartões, algumas notas.
Segundo alguns estudos, em Portugal já existem tantos cartões de crédito como portugueses, 10,1 milhões. De facto, o cartão, os cartões, de crédito ou de débito e o telemóvel, os telemóveis, parecem fazer parte do equipamento básico de qualquer de nós. Curiosamente, apesar da situação de crise as instituições bancárias terão emitido mais 811 000 cartões, obviamente solicitados pelos seus clientes, um número superior ao do ano anterior. Muitos de nós usamos uma carteira repleta de cartões. É claro que  proliferação dos cartões se tonou um excelente negócio para as entidades gestoras e daí o protesto da restauração.
Dados recentes da DECO, em 2012 e até Junho, mais de 10 000 famílias solicitaram ajuda para situações de sobreendividamento.
As famílias em dificuldade que a esta instituição recorrem evidenciam frequentemente uma taxa de esforço cerca dos 90%, ou seja, ao receber 1000 €, 900 estão destinados ao pagamento de créditos e em média têm que gerir 8,6 créditos, um assombro. Como é óbvio, trata-se duma situação insustentável e mesmo com taxas de esforço mais baixas basta uma pequena perturbação ou algo de imprevisto, desemprego por exemplo, para que se rompa o equilíbrio e as famílias entrem em incumprimento, com as previsíveis e complicadas consequências. A DECO recomenda 40% como a taxa de esforço aceitável e prudente.
Muitas vezes tenho afirmado que estas matérias, sobreendividamento e o uso excessivo e desregulado dos cartões, apesar dos seus contornos e implicações de natureza económica para as famílias, radica nos modelos económicos e sistema de valores que nos envolvem.
Como já tenho referido no Atenta Inquietude, instalou-se a ideia de que "és o que tens". Bem podemos afirmar que cada um de nós não olha assim para a vida mas na verdade é difícil resistir à pressão para o consumo e para a ostentação de alguns bens ou estilos de vida que "atestem" que "somos" gente. É o crédito da casa, do carro, da mobília, das férias, do casamento do filho, do plasma, etc. etc. Tudo bens a que obrigatoriamente temos de aceder como prova de que somos gente, embora também se conheçam situações de recurso ao crédito para tratar questões de saúde.
Por outro lado, as instituições financeiras que concedem crédito estiveram durante demasiado tempo bastante mais atentas aos seus próprios interesses que aos riscos das pessoas que a elas recorrem, fomentando e incentivando créditos manifestamente pouco sustentados e com uma ligeireza inaceitável. Actualmente, revelam-se bastante mais selectivas e cautelosas, em algumas áreas, crédito à habitação por exemplo, devido à subida enorme do valor do crédito malparado e dos seus próprios custos de financiamento, mas continuam a alimentar o cartão de crédito. É o mercado a funcionar, certamente.
Este tipo de matérias é apenas mais um indicador de como se torna necessário repensar valores e modelos de organização e desenvolvimento. Eu sei que não é fácil e pode parecer ingénuo, mas se não falarmos e não nos inquietarmos com isto, então é que nada mudará. Nunca.
Talvez não fosse descabido instituirmos nós, de vez em quando, um dia sem cartões.

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