segunda-feira, 30 de abril de 2012

OS TOUROS E AS GALINHAS POEDEIRAS

O mundo tem coisas estranhas. Desde o início do ano que se ouvem e lêem referências ao facto de Portugal não ter adoptado uma directiva comunitária que exige gaiolas melhoradas para as galinhas poedeiras de modo a defender o seu bem-estar. Não é estranho, o discurso sobre o bem-estar animal entrou, felizmente, na agenda.
É certo que o mundo, boa parte das lideranças, não parece muito preocupada com o bem-estar das pessoas. São conhecidas, experienciadas, políticas que promovem pobreza e exclusão às quais o poder parece relativamente indiferente, aliás, dizem até que a salvação passa pelo empobrecimento.
Mas voltando aos animais, hoje pode ler-se que a ERC rejeitou uma proposta do BE sobre a proibição de transmissão televisiva de touradas.
Não vou discutir a questão da existência das touradas. Esta discussão é insustentável num plano racional, o touro é objecto de um tratamento que causa mal-estar e o argumento económico e de preservação da espécie é, do meu ponto de vista, curto. A defesa da tourada radica em questões de natureza emocional, cultural, psicológica ou sociológica que entendo mas que não tenho que subscrever.
O que acho, no mínimo, curioso, é existir uma directiva europeia que nos obriga a proteger o bem-estar das galinhas poedeiras coexistente com a transmissão televisiva da tourada.
Poderá sempre afirmar-se que a televisão tem on/off ou programação alternativa. Pela mesma ordem de razões, poderia apenas afirmar-se uma preocupação com a qualidade de vida das galinhas poedeiras e não ser necessário legislar.
O mundo anda estranho.

QUANDO A TERRA CRIA SANGUE

Durante este fim de semana no Meu Alentejo, a lida, que é sempre variada e tem por onde escolher embora o tempo dite prioridades, contemplou a criação de umas casas de melão sempre com a esperança que os consigamos provar antes da bicharada com quem divido o monte, numa espécie de cooperação forçada, nós plantamos e a bicharada come, melros, pardais, coelhos, saca-rabos, codornizes, uma ou outra raposa que por lá passa, enfim, uma concorrência que se aceita mas exaspera.
No fim, o Mestre Marrafa deu um jeito na terra para deixar as casas de melão de modo a serem regadas. Perguntei-lhe se era necessário regar pois sempre houve melão de sequeiro no Alentejo.
O Velho explicou, naquele jeito sorridente com os olhos pequenos e pretos a brilhar. No tempo em que chove muito, o melão aguenta-se de sequeiro, mas tem que levar uma charruada funda. O melão gosta de uma charruada funda, a terra fica fabricada e quando chove, a água entra fundo e a terra cria sangue. Se não for uma charruada funda a água não entra muito, seca depressa e o melão não aguenta sem rega, a terra não cria sangue para o melão.
Fiquei a olhar para ele e a pensar como, provavelmente, a metáfora do sangue que a terra cria, mas só com uma charruada funda, não tem a ver só com melões. Tem tudo a ver com connosco, com as pessoas.
Nos tempos que vivemos, em que quase tudo é pressa, quase tudo é imediato, quase tudo é transitório, quase tudo é de plástico, nem sempre passamos por uma charruada funda para nos fazermos mais pessoas.
Se bem repararmos, logo de pequenos, temos a enorme tentação  e incentivo para que nos construamos com base em dimensões ligeiras, consumos ligeiros, vidas ligeiras,  com nuvens passageiras que logo secam e outras aparecerão, igualmente leves, substituindo as primeiras, num frenesim sem paragem.
Assim, a vida não cria sangue, não tem substância que a alimente a sério, de forma sólida,  capaz de aguentar os tempos até se fazer grande.
Ficam vidas pequenas, não medram. Não criam sangue que as alimente.

domingo, 29 de abril de 2012

OS NOMES QUE CHAMAMOS

O trabalho de hoje no Público sobre os nomes que os portugueses estão a atribuir aos seus rebentos, parece-me uma opção interessante para intercalar com as notícias do quotidiano de chumbo em que estamos mergulhados. Na peça aborda-se também a situação de pessoas que por alguma razão entenderam por bem trocar de nome.
Ao que se diz, continuamos um país de Marias mas agora de Rodrigos em vez de Josés. Devo dizer que fiquei um pouco inquieto, um mundo sem “Sónias Andreias”, sem “Kátias Vanessas”, sem “Sandras Cristinas”, sem “Tatianas”, sem “Fábios”, sem “Mauros” vai ser, certamente, um mundo diferente. Também em trabalhos anteriores sobre esta matéria se registava já a tentativa de sofisticar um pouco as escolhas, mantém-se o popular João, mas temos o Rodrigo, o Martim, o Tomás, a Mariana, a Matilde entre outras que nos garantem, enfim, outra apresentação.
Mas o que me deixou mais apreensivo face a esta questão, é que, recordando um trabalho também sobre esta matéria há algum tempo divulgado, parece notar-se que o povo está mesmo a voltar as costas aos nossos mais gloriosos nomes, sobretudo nos rapazes, nomes como Manuel, António, José, Paulo, Carlos, etc. estão em queda. Será que vamos deixar de ter um Carlos Jorge, um António Manuel, um Manuel Carlos, um José Manuel, um António João, um Paulo Jorge, tudo nomes na nossa melhor tradição?
Até nos nomes! Estão a mexer com a nossa identidade.
Por outro lado, considerando os nomes que se chamam e de que as pessoas não gostam, uma  pequena história que há tempos aqui deixei.
"Gosto quando me chamam. Às vezes, muitas vezes, não me chamam.
Outras vezes chamam-me nomes que não são meus. Os crescidos chamam-me preguiçoso, distraído, parvo, bebé, coitadinho e outros nomes, sempre nomes que não são meus.
Os outros miúdos chamam-me badocha, gordo, bolacha, caixa de óculos, def e outros nomes, sempre nomes que não são meus.
Eu acho que as pessoas, todas as pessoas, só deviam ter um nome, o seu."

sábado, 28 de abril de 2012

VIDA MALPARADA

Nos últimos tempos o ensino superior tem entrado na agenda pelas más razões. Na verdade, embora tenham surgido algumas referências ao mérito da investigação realizada em algumas instituições, as notícias são sobretudo sobre as dificuldades dos estudantes e suas famílias em conseguir suportar os encargos com a formação. Hoje, com chamada a primeira página, o Público fala do crédito malparado que as Universidades reclamam junto de estudantes e que representa uma verba significativa para muitas instituições.
Há dias a hierarquia da Igreja Católica expressava publicamente a sua preocupação com a situação de abandono de muitos estudantes do ensino superior devido às dificuldades económicas. Também recentemente se divulgou que o número de estudantes do ensino superior com bolsa de estudo voltou a descer, é cerca de 56 000, e está ao nível do ano 2000 quando frequentavam este nível de ensino menos 20 000 estudantes que actualmente. Tal mudança parece decorrer das dificuldades económicas conjugadas com alterações no Regulamento de atribuição das bolsas verificadas nos últimos dois anos. Também há pouco o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas aprovou uma recomendação no sentido de que as instituições de ensino superior possam aumentar em 30 € o valor anual das propinas com o objectivo de apoiar estudantes em dificuldades.
As dificuldades pelas quais passam muitos estudantes do ensino superior e respectivas famílias, quer no sistema público, quer no sistema privado, são, do meu ponto de vista, considerados frequentemente de forma ligeira ou mesmo desvalorizadas. Tal entendimento parece assentar na ideia de que a formação de nível superior é um luxo, um bem supérfluo pelo que ... quem não tem dinheiro não tem vícios.
Segundo um estudo da Universidade do Porto, quase um quarto dos seus alunos abandona o curso durante os três primeiros anos. Os números dos diferentes cursos têm variações acima ou abaixo do valor médio, mas são muito elevados. Embora existam outros factores contributivos, as dificuldades económicas parecem constituir a razão fundamental para esta enorme taxa de abandono situação que ontem foi colocada ao Primeiro-ministro no debate parlamentar.
Também um inquérito envolvendo estudantes de todo o país coordenado pela Associação Académica da UTAD, apurou que 48% dos inquiridos já passaram por dificuldades económicas e cerca de 65% temem abandonar o curso em consequência das dificuldades.
Recordo ainda um trabalho recente realizado pelo Público junto de um grupo significativo de estabelecimentos de ensino superior, em que se constatou que, face a igual período do ano passado, aumentou em 6% o número de desistências do ensino superior por efeitos da crise. Esta percentagem corresponde a cerca de 3300 estudantes o que é significativo. As dificuldades económicas, a dificuldade no acesso a bolsas e o aumento de propinas são os motivos identificados.
Os estudos internacionais têm evidenciado uma característica persistente no sistema educativo português, o ainda baixo impacto da educação na mobilidade social. Dito de outra maneira, os indivíduos com origem em grupos sociais mais favorecidos são os que tendencialmente obtêm melhores níveis de qualificação e repete-se o ciclo. Neste quadro, a redução significativa das bolsas e apoios, as dificuldades enormes que muitas famílias atravessam e o desemprego mais elevado entre os jovens, que poderia constituir uma pressão para continuar os estudos, a que acrescem as elevadas propinas, designadamente no 2º ciclo, tornam ainda mais difícil a realização de percursos escolares que promovam mobilidade social e que se traduz, por exemplo, no aumento das desistências.
Quando se espera e entende que a minimização das assimetrias possa, também, depender da educação e qualificação, o seu preço e as dificuldades actuais, longe de as combater, alimenta-as.
É preocupante.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

UM HOMEM CHAMADO NÃO SE SABE O QUÊ

Era uma vez um homem chamado Não Se Sabe O Quê.
Tinha vindo de algures e vivia não se sabia onde.
Teria uma família que não se conhecia e de quem não falava. Aliás, o homem, praticamente, não falava, apenas trabalhava, fazendo tudo o que lhe pedissem sem a menor reserva.
Fora do trabalho, estava não se sabe onde, fazendo não se sabe o quê.
Quando se conseguia olhar nos seus olhos, o que era raro, eles parecia sempre olhar para longe, não se sabe para onde.
Nos intervalos do trabalho ficava num canto, com ar de quem estava a pensar, não se sabe em quê. Alguns colegas disseram que, às vezes, parecia que chorava, não se sabe porquê.
Um dia, levaram-no, não se sabe para onde.
O seu verdadeiro nome era, Clandestino.

A BEM DA NAÇÃO

Se bem estão recordados, em Novembro de 2011, João Duque, o responsável do Grupo de Trabalho nomeado pelo Governo para definir serviço público, defendeu que "a bem da Nação”, a informação emitida pela RTP Internacional deve ser “filtrada” e “trabalhada” pelo Governo, acrescentando que este tratamento “não deve ser questionado”.
Depois de aturadas investigações a ERC vem agora dizer que a suspensão do espaço Este Tempo, na Antena 1 da RDP, embora se relacione com as críticas a Angola produzidas pelo jornalista Pedro Rosa Mendes, não se deve exclusivamente a estas crónicas que também não foram a única razão para a suspensão, entende a ERC. Com os factos conhecidos, esta decisão da Entidade Reguladora é, por assim dizer, habilidosa, mas não estranha. Provavelmente assenta no entendimento de serviço público de João Duque em versão Miguel Relvas. Comenta-se o que não se deve e da forma que não se deve, acaba-se com os comentários e com os comentadores. Mais nada, a fórmula velha e em retoma de "a bem da Nação".
É só mais um "pequeno" contributo para percebermos porque razão os estudos nos mostram como a democracia está doente e nós descrentes.
O despudor anda à solta. Cada dia temos algo que nos recorda isto mesmo.

PRECÁRIA DE VIDA

O Público de hoje coloca em primeira página que, dados de 2011, 40% dos jovens entre 15 e 34 anos tem um vencimento inferior a 600€.
Ainda segundo dados do INE é relevante saber que cerca de 8% trabalha a recibo verde e 55 % tem uma relação laboral precária.
É também conhecido que o desemprego jovem atingiu recentemente o dramático valor de 35%, a terceira taxa mais alta da UE.
Na mesma linha, há poucas semanas noticiava-se o aumento de 6,7% do número de desempregados registados nos Centros de Emprego face a Novembro de 2010. Entre os mais jovens este aumento foi mais significativo, 10,5.
Segundo dados do INE de há meses, 314 000 jovens não estudam nem trabalham, a designada situação “nem nem”. Estes números, atendendo à dimensão do país são absolutamente dramáticos.
A precariedade nas relações laborais quase duplicou na última década. Portugal é o segundo país da Europa, a seguir à Polónia, com maior nível de contratos a prazo. Por outro lado, as políticas de emprego anunciadas incluem a maior flexibilização das relações laborais o que, naturalmente, é coerente com os ventos neo-liberais e o endeusamento do mercado que tudo permite, incluindo roubar a dignidade às pessoas e promover exclusão.
Deste cenário e dos números do desemprego, resulta que os mais novos à entrada no mercado de trabalho são os mais vulneráveis ao desemprego e à precariedade quando, apesar das dificuldades, acedem a algum emprego. Este quadro, curiosamente, afecta a mais qualificada jovem de sempre.
Esta situação complexa e de difícil ultrapassagem tem, obviamente, sérias repercussões nos projectos de vida das gerações que estão a bater à porta da vida activa. Entre outras, contar-se-ão, os indicadores mostram-no, o retardar da saída de casa dos pais por dificuldade no acesso a condições de aquisição ou aluguer de habitação própria ou o adiar de projectos de paternidade e maternidade que por sua vez se repercutem no inverno demográfico que atravessamos e que é uma forte preocupação no que respeita à sustentabilidade dos sistemas sociais.
As gerações mais novas que experimentam enormes dificuldades na entrada sustentada na vida activa, vão também, muito provavelmente, conhecer sérias dificuldades no fim da sua carreira profissional.
No entanto, um efeito muito significativo mas menos tangível desta precariedade no emprego, é a promoção de uma dimensão psicológica de precariedade face à própria vida no seu todo e que, com alguma frequência, os discursos das lideranças políticas acentuam. Dito de outra maneira, pode instalar-se, está a instalar-se, uma desesperança que desmotiva e faz desistir da luta por um projecto de vida de que se não vislumbra saída motivadora e que recompense. Podemos estar perante as gerações perdidas de que há algum tempo se falava.

OS TRAPEZISTAS

Hoje, sem perceber exactamente porquê, lembrei-me do circo. Devo confessar que sempre tive, desde miúdo, uma relação ambígua com o circo. Na verdade, muito do que me atraía nos diferentes números do circo era, simultaneamente, o que me inquietava.
A minha lembrança foi parar ao momento alto da exibição dos trapezistas que via com olhos muito abertos, fascinado pela coragem e perícia daquela gente que voava e, ao mesmo tempo, assustado com medo de que as mãos do companheiro ou a barra do trapézio lá não estivessem, naquele preciso segundo em que nada pode falhar e o trapezista voador precisa de se segurar.
Na verdade, a vida de muitos adolescentes e jovens faz-me lembrar o número do trapézio. Voam, de um poiso para o outro, atraídos e alimentados pela adrenalina do risco que dá sentido a uma existência, neste caso e frequentemente, sem sentido.
Em cada dia, aumentam o risco, em voos mais complicados e testando os limites, os seus e os de quem os rodeia.
À sua volta, muitos ficam indiferentes, outros muitos condenam, alguns outros inquietam-se e ainda outros muitos, também trapezistas, aplaudem.
No circo os trapezistas voam com rede e os acidentes são raros.
Os jovens com vidas de trapezista quase nunca voam com rede. Os acidentes sérios são frequentes, falham os apoios que não surgem, ou não estão as mãos de alguém que se atrasou. Já vi alguns.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

MIÚDOS COM FOME NÃO APRENDEM E VÃO CONTINUAR POBRES

Lamento, não quero perturbar o desassossegado sossego de ninguém, mas não posso deixar de retomar algumas notas a propósito da notícia hoje divulgada de que no próximo ano lectivo as escolas vão começar a distribuir pequenos-almoços a crianças que estão a ser identificadas, sinalizadas, como se costuma chamar entre nós. A medida peca por tardia, muitas crianças têm como alimentação não muito mais do que aquilo que as escolas lhes providenciam, como bem sabem as pessoas que se movem no universo da educação.
As dificuldades das famílias e o que dessas dificuldades penaliza e ameaça os mais pequenos, é demasiado importante para que não insistamos  nestas questões.
Há algum tempo, um estudo do ISEG apontava para que cerca de 40% das crianças e adolescentes vivessem em situação de pobreza, sendo que esse quadro de privação afecta sobretudo os padrões e a qualidade da alimentação. O estudo sublinhava também, entre ouros indicadores, que o grupo etário 0-17 anos é o mais vulnerável ao risco de pobreza tendo ultrapassado o dos mais velhos.
Por outro lado, relembro um estudo de há uns meses realizado pelo I junto das autarquias dos distritos de Lisboa, Porto, Setúbal, Coimbra e Faro que revelou que quase metade dos alunos da educação pré-escolar e do 1º ciclo recebe apoios sociais sendo que em alguns concelhos a percentagem de crianças carenciadas atinge os 65%, número verdadeiramente impressionante. Acresce que em muitos concelhos a maioria das crianças apoiadas integram o escalão A dos apoios, o que se destina aos agregados com rendimentos mas baixos.
Desde há algum tempo que se reclamava a medida agora anunciada de providenciar pequeno-almoço às crianças nas escolas bem como, e isso tem acontecido em muitas circunstâncias, a abertura das cantinas escolares no período de férias, o alargamento do número de cantinas sociais ou da resposta nas instituições de solidariedade social.
Estes indicadores sobre as dificuldades que afectam a população mais nova são algo de assustador. Esta realidade não pode deixar de colocar um fortíssimo risco no que respeita ao desenvolvimento e sucesso educativo destes miúdos e adolescentes e portanto, à construção de projectos de vida bem sucedidos. Como é óbvio, em situações limite como a carência alimentar, estaremos certamente em presença de outras dimensões de vulnerabilidade que concorrerão para futuros preocupantes.
É por questões desta natureza que a contenção das despesas do estado, imprescindível, como sabemos, deveria ser feita com critérios de natureza sectorial e não de uma forma cega e apressada, naturalmente mais fácil mas que, entre outras consequências, poderá empurrar milhares de crianças para situações de fragilidade e risco com implicações muito sérias.
Miúdos com fome não aprendem e vão continuar pobres.

AS PESSOAS EM RECESSÃO

A imprensa dos últimos dias tem referido como a política fiscal penaliza de forma muito significativa as famílias de classe média com filhos. Aliás, Portugal foi um dos países em que a carga fiscal mais aumentou segundo relatório da OCDE há dias divulgado.
Nada de novo, estamos habituados, é a classe média a destinatária principal de medidas de incremento da receita fiscal, seja por via dos impostos sobre o consumo, seja através dos impostos sobre o rendimento. Para além da assimetria assim promovida e reconhecida, no caso particular dos agravamentos penalizadores de casais com filhos, existe ainda a consequência óbvia de desmotivar e desincentivar as famílias para o alargamento do seu agregado, ou seja, se às famílias cortam nos rendimentos disponíveis e penalizam a existência de filhos, estas cortam ... nos filhos agravando o inverno demográfico que atravessamos.
Como também tem sido noticiado, disparou o número de famílias que são obrigadas a entregar as suas casas às instituições de crédito por impossibilidade de cumprimento dos empréstimos. Estão a aumentar fortemente, quando tal é possível as situações de reagrupamento familiar por dificuldades económicas. De facto, começa a verificar-se algo que há muitos anos estava em perda para muita gente, a convivência de duas e três gerações sob o mesmo tecto e em condições económicas vulneráveis.
Todo este cenário faz emergir uma classe imensa, uma onda, que se pode converter numa espécie de tsunami social, a dos "novos pobres", muitos milhares de pessoas que apesar de terem emprego, têm salários extremamente baixos e que, mercê dos cortes e aumentos realizados, se sentem e vivem numa condição de pobreza não antecipada, pelo que cresceram exponencialmente os casos do que se pode chamar de “pobreza envergonhada”, devido, naturalmente, aos níveis de  desemprego mas também decorrentes, à falta de qualidade do emprego, aumento de impostos e perdas salariais. São pessoas que se julgavam a coberto deste tipo de riscos e que sentem um embaraço pessoal e social enorme para assumir as dificuldades porque passam.
Este cenário é absolutamente extraordinário. Para além das consequências óbvias das dificuldades ainda se torna necessário, como várias vezes aqui tenho referido, acautelar a dignidade das pessoas afectadas. De facto, umas das consequências menos quantificável das dificuldades económicas, é o roubo da dignidade às pessoas envolvidas. Sabemos que se verifica oportunismo e fraude no acesso aos apoios sociais, mas a esmagadora maioria das pessoas sentem a sua dignidade ameaçada quando está em causa a sobrevivência a que só se acede pela “mão estendida” que envergonha, exactamente por uma questão de dignidade roubada.
É neste quadro, a forma como a dignidade está ameaçada e as condições de vida das pessoas,  que me parece importante centrar a reflexão sobre os tempos que atravessamos e a necessidade de política destinadas às pessoas e não aos mercados.
A pobreza, a exclusão e a dignidade ameaçada não serão em qualquer circunstância fonte de riqueza e bem estar.

A ESCOLA DO MEU TEMPO. Não a quero de volta

Nos últimos tempos, por razões que todos conhecemos e muitos sofrem não são raros discursos de descrença e desesperança ouvindo-se, como hoje, "afinal o 25 de Abril ...", e estamos como estamos.
Devo dizer que não simpatizo com este tipo de enunciados. Sendo certo que estamos atravessar tempos de chumbo e com a confiança em baixo, também é verdade que não é sequer possível comparar o país de hoje com o país de 1973. Para refrescar algumas memórias ou contar alguma história aos mais novos, deixem que vos fale da escola do meu tempo, o tempo dos anos cinquenta e sessenta. Escolho falar da escola porque é uma área que conheço um pouco melhor, mas poderia fazer o mesmo exercício em todas as outras áreas de funcionamento da nossa sociedade.
Não me esqueço, antes pelo contrário, que a nossa educação, a escola, como tudo o resto, atravessa um período complicado e com problemas muito sérios, mas só a falta de memória ou o desconhecimento sustentam o “antigamente era melhor”. Vou-vos falar um pouco da escola do meu tempo, conversa de velho, já se vê.
Na escola do meu tempo nem todos lá entravam e muitos dos que conseguiam saíam ao fim de pouco tempo, ficando com a segunda ou terceira classe, como então se chamava. Chegava.
Na escola do meu tempo os rapazes estavam separados das raparigas.
Na escola do meu tempo havia um só livro e toda a gente aprendia apenas o que aquele livro trazia.
Na escola do meu tempo levavam-se muitas reguadas, basicamente por dois motivos, por tudo e por nada.
Na escola do meu tempo, ensinavam-nos a ser pequeninos, acríticos e a não discutir, o que quer que fosse.
Na escola do meu tempo eu era “obrigado” a ter catequese, religiosa e política.
Na escola do meu tempo aprendia-se que os homens trabalham fora de casa e as mulheres cuidam do lar e dos filhos.
Na escola do meu tempo não aprender não era um problema, quem não “tinha jeito para a escola, ia para o campo”.
No tempo da minha escola, quem mandava no país achava que muita escola não fazia bem às pessoas, só a algumas. Ao meu pai perguntaram porque me tinha posto a estudar depois da quarta classe, não era frequente naquele meio.
Na escola do meu tempo não se falava do lado de fora de Portugal. Do lado de dentro só se falava do Portugal cinzento e pequenino. Na escola do meu tempo eu era avisado em casa para não falar de certas coisas na escola, era perigoso. As pessoas até podiam ser presas.
Sim, eu sei, não precisam de me dizer que a escola deste tempo ainda tem muitas coisas parecidas com a escola do meu tempo.
Mas o caminho é melhorar a escola deste tempo não é, não pode ser, querer a escola do meu tempo.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

25 DE ABRIL

A 25 de Abril, para as pessoas da minha geração, é impossível não falar  do 25 de Abril, daquele 25 de Abril, do nosso 25 de Abril, do meu 25 de Abril. Este ano o dia parece marcado por uma polémica, do meu ponto de vista inconsequente, sobre a presença de instituições ou figuras na sessão comemorativa oficial na Assembleia da República. A História tem actores, principais e secundários,  heróis ou vilões, e figurantes, mais ou menos anónimos, mas não tem donos. Tenho pena, mas não estranho. Também como nunca nos nossos dias, atravessamos tantas dificuldades, com tantos milhares de pessoas a sofrer a luta pela sobrevivência. Também por isso, voltemos à substância, o nosso 25 de Abril em que, lamentavelmente, já não estará um homem sério, Miguel Portas.
Há algum tempo, numa conversa informal com alunos, jovens, do ensino superior, alguns questionavam-me sobre como era a vida académica, e não só, antes desse 25 de Abril. Ao procurar dar-lhes um retrato desse tempo e do que era a nossa vivência diária, deu para perceber alguma perplexidade nos jovens não tanto pelas referências às grandes questões, mas, sobretudo, pelas pequenas histórias do dia-a-dia.
Histórias do clima de desconfiança e suspeição sobre a pessoa do lado que nos prendia dentro da gente; do livro que se não tinha; do filme que se não podia ver; do disco que se contrabandeava; do teatro que não se podia fazer; da conversa que se não podia ter; do professor de quem não se podia discordar; da ideia que se não podia discutir; da repressão visível e, mais pesada, invisível; do beijo que não se podia dar em público; do livro único para formar um pensamento único; de tantas outras histórias com que se tecia um mundo pequeno que nos queria pequenos.
Aquela conversa foi muito estimulante. É certo que me deixou a doce amargura da idade mas, mais interessante, fiquei convencido que aquele pessoal não permitirá nunca que se possa voltar a ter histórias daquelas para contar a gente mais nova.
Acho até que esta gente não vai mesmo estudar para ser escrava, esta gente vai, apesar de por vezes se sentir à rasca, chegar ao futuro.
Gosto de acreditar nisto. Também por causa daquele 25 de Abril.
E porque é mais fácil e mais bonito, "Traz outro amigo também".

NÃO, NÃO E ... SIM

Já por aqui temos conversado, de forma mais séria ou através de estórias, sobre a ideia de como o ”não” e o ”sim” são bens de primeira necessidade na vida dos miúdos.
Acontece que, por diferentes razões, na vida das famílias, de muitas famílias, parece estar a ser progressivamente mais difícil administrar o “não” usando-se de forma, por vezes excessiva, o “sim”, seja de forma mais activa ou apenas por omissão do “não”.
Tal cenário acaba por estar associado a situações em que os miúdos evidenciam grandes dificuldades em perceber as regras e os limites do seu comportamento, uma das funções mais importantes do “não”. Como consequência, o comportamento dos miúdos torna-se despótico, desregulado, transformando-os no “pequeno ditador” de que alguns falam e muitos conhecem, gerando-se situações de grande embaraço e climas educativos e relacionais pouco saudáveis entre graúdos e miúdos.
Assistimos com muita frequência a cenas bem exemplificativas deste funcionamento, pais envergonhados e impotentes e meninos a fazer o que lhes passa pela cabeça, quando lhes passa pela cabeça.
Em muitas circunstâncias, os estilos de vida dos pais, o pouco tempo que têm para os miúdos, instalam de mansinho um sentimento de culpa que leva a que os pais, quase sempre sem se dar conta, se inibam, para evitar situações de tensão ou crispação que "estraguem" o pouco tempo que têm para os filhos, de dizer de forma firme e persistente, “não”, "não podes fazer isso". Acontece que o “não” inicial desencadeia no miúdo uma reacção de birra,  mais ou menos exuberante, a que os pais não resistem e, é uma questão de tempo, o “não” passa a “sim” quase sempre acompanhado de um “só desta vez”, “só uns minutos” ou qualquer outra expressão que na circunstância atenue o desconforto.
Os miúdos são inteligentes, percebem muito facilmente quando um não é não ou quando o não passa rapidamente a sim. Aprendem com serenidade as regras e os limites. É, pois, fundamental que os pais se sintam confiantes e usem o “não” de forma adequada, ainda que flexível, sem medos das “birras” ou de perderem o afecto dos miúdos por serem “duros”. Na verdade, as crianças precisam dessas regras e dos limites para estabelecer relações de afecto positivas, a sua ausência é que é um risco.

terça-feira, 24 de abril de 2012

UM MAU SINAL

Lê-se no Público que a Direcção Regional de Educação do Centro anulou a pena de suspensão aplicada a um grupo de alunos que, alegadamente, teriam roubado de uma pen da professora um ficheiro com um teste que realizariam posteriormente.
Talvez seja necessário obter mais esclarecimentos sobre todo este processo mas o que se sabe, da forma que se sabe, merece alguma reflexão.
Neste momento e em síntese, temos uma punição (de que não aqui discuto a bondade ou o peso) que é retirada, não porque o que lhe deu origem não tenha acontecido, mas por erros “processuais”. É um clássico na nossa justiça, crimes comprovadamente realizados continuam impunes porque por razões administrativas ou processuais não se consegue punir os responsáveis. Curiosamente, em muitas circunstâncias, são conhecidos vários casos, a estratégia da defesa já nem passa por defender a inocência do acusado, não tem por onde, mas por mostrar que ele não pode ser condenado.
Como é evidente, este discurso não legitima a desregulação das questões processuais ou administrativas, são fundamentais as regras e os limites, mas devem fazer parte da solução e não ser parte do problema.
Este tipo de situações sustenta a instalação de um sentimento de impunidade, não acontece nada, faça-se o que se fizer. Este sentimento que atravessa toda a nossa sociedade e camadas sociais é devastador do ponto de vista de regulação dos comportamentos, ou seja, podemos fazer qualquer coisa porque não acontece nada, a “grandes” e a “pequenos”, mas sobretudo a grandes, o que aumenta a percepção de impunidade dos “pequenos”. No universo das escolas a instalação deste sentimento de impunidade tem efeitos muitíssimo pesados para todos, alunos, professores, pais e funcionários.
Talvez esclarecimentos posteriores nos ajudem a compreender melhor o que se passou, mas tudo isto é um mau sinal, mais um.

NÃO DESESPERE, A COISA COMPÕE-SE

É azar. Parece que coube ao Dr. Isaltino servir de “prova” de que a justiça funciona no Portugal dos Pequeninos. Mas ele que não desespere. O Tribunal da Relação de Lisboa já tinha rejeitado mais um recurso do Dr. Isaltino. Não tem problema, ele entregou um outro, de novo no Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo que rejeitou o anterior. Ficámos entretanto a saber que, adivinhem, isso mesmo, o Tribunal da Relação de Lisboa determinou que o Tribunal de Oeiras procedesse a nova apreciação. O Tribunal de Oeiras pronunciou-se, entendendo não ter havido prescrição o que levou a novo recurso. Hoje noticia-se que o Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou o novo recurso do Dr. Isaltino em que alega a prescrição dos crimes. O Dr. Isaltino ainda tem, evidentemente, a hipótese de recorrer para o Tribunal Constitucional, o que certamente fará.
É muito claro que não está em causa a inocência do Dr. Isaltino, a questão é saber se os crimes, repito, os crimes por ele cometidos prescreveram ou não. Parece que não. Acontece alguma coisa? Parece que não.
É sabido que o Sr. Dr. Isaltino tem uma condenação decidida mas que ainda não transitou em julgado pelo que tem continuado a sua narrativa interpondo recursos atrás de recursos levando a que o processo se desenvolva através de uma série de manobras, recursos e outros expedientes que o nosso sistema de justiça tão minuciosa e eficazmente aceita para quem deles se sabe aproveitar o possa fazer em seu benefício, pode acontecer, dizem alguns, que a coisa se prolongue até à prescrição final. A titular da pasta da Justiça já tem assumido em público a despudorada utilização de manobras manhosas que mais não fazem que minar a justiça transformando-a numa espécie de administração da injustiça. Alguns titulares de cargos de responsabilidade na área da justiça também já afirmaram que a sentença decidida já deveria ter sido executada, mas calma, há sempre lugar a mais um recurso.
Tenho para mim que este caso virá a morrer por morte morrida, para usar as palavras de João Cabral de Melo Neto, ou seja, cairá por esgotamento. Assim, o Dr. Isaltino poderá ter uma reforma tranquila com a herança que receberá do sobrinho que tem na Suíça e os trocos miseráveis resultantes de uma vida dedicada à causa pública.
No meio do azar, coitado, até teve sorte, felizmente amealhou um bom pé-de-meia que nos tempos que correm não é coisa pouca.
A nós, só nos cabe o azar de ver como anda o sistema de justiça o Portugal dos Pequeninos. Ainda a propósito, aguardamos novos desenvolvimentos do caso Portucale, aquele ocorrido em Benavente, em que uns milhares de sobreiros, numa impressionante manifestação de espírito de missão e capacidade de sacrifício, decidiram atirar-se para o chão apenas para não atrapalhar a construção de um projecto turístico-imobiliário. O Ministério Público recorreu da absolvição e creio que nada de diferente irá acontecer. Os sobreiros não sobreviveram para assumir a responsabilidade do seu auto-abate.

25 DE ABRIL EMPOBRECIDO

A primeira página do JN contém um título extraordinariamente significativo, "Portugueses ficam 273 € mais pobres a cada mês".
Todos os dias somos confrontados com novas medidas que acentuam dificuldades para a maioria dos portugueses em várias áreas, designadamente nos aspectos ligados ao trabalho e emprego, saúde, apoios sociais, saúde, etc. Hoje também se refere na comunicação social o aumento exponencial de casais em que ambos estão desempregados. Todos este cenário devastador decorre da opção pela austeridade que tem conduzido ao empobrecimento. Curiosamente este empobrecimento é, de acordo com a visão do Primeiro-ministro, o projecto político que nos trará ... prosperidade.
O Presidente da República na austera gestão das suas intervenções, alerta para que "é impossível impor mais austeridade", enquanto o Primeiro-ministro defende que, "custe o que custar", tem que cumprir os objectivos do negócio com a troika e os objectivos da sua própria política "over troika", como tal, não pode assegurar que não seja necessária mais "austeridade", sendo ainda de esperar o aumento do desemprego, por exemplo.
Para além desta discussão, mais ou menos austeridade, o que nos preocupa seriamente são as condições de vida que muita gente está já a enfrentar, estamos a falar de pessoas, não de políticas, ou melhor estamos a falar do efeito das políticas na vida das pessoas.
Parece de relembrar que um estudo recente da Comissão Europeia que analisou a distribuição dos efeitos dos programas de austeridade os países que experimentam maiores dificuldades, Portugal, Grécia, Espanha, Irlanda, Estónia e Reino Unido conclui que Portugal "é o único país com uma distribuição claramente regressiva", traduzindo, os pobres estão a pagar mais do que os ricos quando se aplica a austeridade. Pode ainda ler-se que nos escalões mais pobres, o orçamento de uma família com crianças sofreu um corte de 9%, ao passo que uma família rica nas mesmas condições perdeu 3% do rendimento disponível.
Portugal é ainda de acordo com o estudo o único país analisado em que "a percentagem do corte (devido às medidas de austeridade) é maior nos dois escalões mais pobres da sociedade do que nos restantes". A Grécia, que tem tido repetidos pacotes de austeridade, apresenta uma maior equidade nos sacrifícios implementados.
Este dado parece-me extremamente relevante nesta discussão sobre a eventual necessidade de mais "austeridade" e mostra, de acordo com a percepção comum, que não existe equidade na repartição dos sacrifícios.
Para além de contrariar o discurso oficial de que existe justiça social nas medidas de austeridade, o que a notícia tem de mas preocupante é a constatação de que as políticas assumidas, por escolha de quem decide, estão a aumentar as assimetrias sociais, a produzir mais exclusão e pobreza.
Eu sei, sabemos todos, que a questão da pobreza é um terreno que se presta a discursos fáceis de natureza populista e ou demagógica, sem dúvida. Mas também não tenho dúvidas de que os problemas gravíssimos de pobreza que perto de dois milhões de portugueses conhecem, exigem uma recentração de prioridades e políticas que não se vislumbra e que este relatório da Comissão Europeia sublinha.
A liderança que transforma é uma liderança com responsabilidade social e com sentido ético.
Neste quadro, não deixa de ter algum significado político a polémica em torno da não comparência de algumas figuras, MárioSoares ou Manuel Alegre, ou instituições, Associação 25 de Abril, na sessão da AR comemorativa do 25 de Abril. Na verdade, continuando sempre, sempre, a existir motivos que nos fazem comemorar a data, nunca, creio, o fizemos em situações tão difíceis e com tantas nuvens a ensombrar a nossa vida.

UM RAPAZ CHAMADO PERFEITO

Era uma vez um rapaz chamado Perfeito. Desde pequeno que o seu nome tomou conta dele.
Em todo o tempo e em todas coisas era Perfeito, fazia tudo como queriam que fizesse, na altura que era para fazer e sempre disponível para fazer o quer que fosse solicitado. Muitas vezes o Perfeito antecipava o que era pedido e realizava, perfeitamente é claro, o que lhe parecia que devia fazer.
Os professores e pais gostavam daquele aluno e daquele filho, tão Perfeito, que era apontado como exemplo a seguir aos demais miúdos da sua idade.
O Perfeito habituado à perfeição dos resultados escolares dos comportamentos parecia uma criança, primeiro, um adolescente, depois, perfeitamente feliz.
Apenas o Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros, não se sentia tranquilo com a perfeição do Perfeito. Habituado a ler os miúdos, lia-lhe algumas sombras no olhar que pareciam nuvens a acumular-se. Quando o Velho falava da inquietação que sentia no Perfeito, as outras pessoas achavam que o Velho se desabituara de encontrar miúdos perfeitos.
Um dia, o Perfeito, sem ninguém esperar, fez a primeira asneira da sua vida. Deslumbrou-se com o resultado e com o mundo novo que nunca tinha conhecido, fazer o que lhe dava na cabeça quando lhe dava na cabeça. As nuvens que o Velho lhe pressentia no olhar transformaram-se numa vertigem que dele se apossou e que até agora o transformaram num fazedor de asneiras, perfeitas, é claro.
O Velho continua a achar que todas as asneiras têm o seu tempo e cada tempo tem as suas asneiras.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A INDOMESTICÁVEL VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Segundo o último Relatório Anual de Segurança Interna verificou-se um decréscimo de participações de casos de violência doméstica embora a UMAR, União das Mulheres Alternativa e Resposta os pedidos de apoio subiram 20% parecendo acentuar-se a desconfiança face ao sistema de justiça, apenas 10 a 15 % recorrem ao apoio e muitas pessoas afirmam que queixas anteriores foram inconsequentes. Do total de inquéritos instaurados apenas 20% chegam a julgamento que, com frequência, terminam com condenações, quando se verificam condenações, a pena suspensa. Verificaram-se ainda 27 homicídios em cenários de violência doméstica.
No entanto, de acordo ainda com o Relatório da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima sobre 2011, o número de casos reportados de violência doméstica continua aumentar sendo ainda de registar um aumento muito significativo mais de 50% de denúncias realizadas por homens.
Por diferentes ordens de razões e embora a realidade se vá modificando lentamente, veja-se o aumento de denúncias por parte dos homens, parece assumir-se ainda uma espécie de fatalidade face à tolerância do crime de violência doméstica dirigida às mulheres, mas não só, provavelmente. Esta tolerância relativiza-se à dificuldade de prova, ao sistema de valores e situação de dependência emocional e económica de muitas das vítimas, à atitude conservadora de alguns juízes, etc. Permanece ainda com alguma frequência a dificuldade de promover a retirada do agressor do ambiente doméstico, procedendo-se à saída da vítima numa espécie de dupla violência que, aliás, também se verifica em situações de maus tratos a crianças, em que o agressor fica em casa e a criança é “expulsa”.
O quadro é dramático mas não surpreende. Um dos mais devastadores efeitos da situação da nossa justiça é a instalação de um sentimento de impunidade generalizado com consequências incalculáveis. Este é o tipo de mensagem que a justiça não pode passar. No entanto, segundo os dados recentes do Observatório das Mulheres Assassinadas, pode constatar-se alguma maior celeridade e preocupação do sistema de justiça com estes casos, embora tal observação não possa ser estendida ao universo global da violência doméstica.
Este sentimento de impunidade está instalado em todas as áreas da criminalidade, não apenas nas situações de violência doméstica. Atente-se em quantos casos de corrupção acabam em condenações a prisão efectiva. Atente-se no tempo e nos expedientes que os processos sofrem, acabando muitas vezes em prescrições ou em penas ridículas. Atente-se nos efeitos de algumas alterações do código penal que permitem que um indivíduo comprovadamente autor de um crime susceptível de pena de prisão, possa ser imediatamente solto e aguardar, se aguardar, o julgamento que demorará um tempo infindo enquanto se mantém em actividade.
Atente-se no comportamento despudorado de muitas das nossas lideranças políticas e partidárias com comportamentos de compadrio, tráfico de influências, distribuição de lugares pelas clientelas, etc.
De facto, tragicamente, temos que concluir que não é estranho o número muito baixo de detidos e condenados por violência doméstica face ao volume de situações que na realidade ocorrem.

A SÍNDROME DO PÓS-MINISTÉRIO

Não acompanho suficientemente de perto a situação noutros países para ter uma perspectiva comparativa, mas existe uma espécie de síndrome em Portugal que afecta a classe política com experiência de poder. Esta síndrome, a que poderemos chamar “sei muito bem o que deveria ser feito, mas quando fui ministro esqueci-me” é patente em muitíssimos ex-governantes oriundos dos partidos que já assumiram responsabilidades de governo. O último exemplo é de Miguel Cadilhe, ministro das Finanças entre 1985 e 1990 e sempre ligado à administração de topo. Em entrevista ao I defende um conjunto de ideias que, do seu ponto de vista, sustentam a situação que vivemos e de decisões que minimizariam as consequências negativas.
Não vou discutir o conteúdo das ideias, mas parece-me sempre curioso como se apresenta uma visão clara sobre os males e constrangimentos da área sectorial em que exerceram funções políticas, bem como, propostas de desenvolvimento e correcção visando a desejável qualidade e o progresso, depois de se ter abandonado o poder nesse mesmo sector.
A pergunta, certamente estúpida e demasiado óbvia, que me ocorre face a este tipo de discursos é “então porque não fez, porque não defendeu assertivamente as ideias agora expressas, quando teve poder para tal?” Podemos, com alguma habilidade, tentar encontrar respostas. Acabaremos, creio por definir, inevitavelmente, duas hipóteses básicas, não puderam ou não souberam, qual delas a mais animadora.
Na primeira, não puderam, implica questionar qual o poder que efectivamente o ministro detém relativamente às políticas do sector que tutela, ou seja, qual o verdadeiro nível de responsabilidade de quem assume o poder e as dificuldades para ultrapassar e gerir as corporações de interesses ameaçadas pelas mudanças. Na segunda, não souberam, dá para entender que a competência não abundará o que não me parece menos inquietante.
Em todo o caso, algum pudor e a humildade de nos explicarem porque não executaram as políticas que posteriormente defendem, seriam esclarecedoras e um bom serviço prestado à causa pública.
A questão é que muitos destes discursos que se apresentam como parte da solução, na verdade, são, foram, parte do problema.
Por coincidência, também no I, o filósofo holandês Rob Riemen, em Portugal para apresentar o seu último livro, tem uma afirmação curiosa e oportuna, "A classe dominante nunca será capaz de resolver a crise. Ela é a crise".

UM DIA PERFEITO

Estranhamente, porque não era hábito, levantou-se com a melhor das disposições para enfrentar mais um dia. A mulher, já a pé para despachar os filhos para a escola, sorriu para ele. Admirou-se, não era hábito. A torrada não queimou, como sempre acontecia  e saiu de casa invulgarmente bem-disposto, mas com a vaga sensação de que se tinha esquecido de algo.
O Luís, o do café, contra o hábito, não gozou com o seu Benfica enquanto tomava a bica. Mantinha a sensação de que se tinha esquecido de alguma coisa.
A manhã de trabalho no banco foi perfeita, só clientes simpáticos e com problemas simples. Estranhou, a si sempre lhe tocavam os chatos que só percebem o que se lhes explica à décima vez. Continuou com a sensação de que se tinha esquecido de algo.
O almoço foi excelente no sítio do costume. Até, contra o que era hábito, o seu prato preferido ainda não tinha esgotado. Ainda deu para dar uma volta no centro comercial e cruzar-se com duas mulheres, lindíssimas, que lhe retribuíram o sorriso. Mas a sensação de que se tinha esquecido de algo continuava.
O resto do dia de trabalho correu lindamente. O Chefe, o Dr. Lopes, em vez de o chatear ao fim do dia com algum processo para despachar com urgência, teve quase uma hora de conversa sobre banalidades e namoradas.
Quando voltou para casa, sempre com a sensação de que se tinha esquecido de alguma coisa, os miúdos estavam entretidos a brincar, quietinhos, sem a algazarra do costume e sem o obrigarem a deitar-se no chão para os levar às cavalitas. A mulher, que o recebeu com um beijo daqueles de que já não se lembrava, tinha preparado um petisco de se lhe tirar o chapéu. A sensação de que se tinha esquecido de algo continuava.
Já tarde, contra o que era hábito, recordou com a mulher as primeiras noites de paixão. Quando, depois do dia perfeito, se preparava para dormir, lembrou-se, finalmente, do que se tinha esquecido logo de manhã.
Tinha-se esquecido de acordar.

domingo, 22 de abril de 2012

PAIS QUE SOFREM, MIÚDOS QUE SOFREM ...

O Público de hoje retoma num trabalho interessante o problema das separações familiares conflituosas que envolvem crianças e durante os quais, com progressiva frequência, emerge a utilização dos filhos como “arma” durante os processos, por vezes longos, de regulação familiar.
Os estudos na área da sociologia familiar têm vindo a evidenciar um aumento do número de divórcios que parece ligado, entre outras razões, a alterações na percepção social da separação, menos “punitiva” e “culpabilizante” para os envolvidos. Estará criar-se assim uma situação mais favorável, até do ponto de vista legal, à facilidade do processo de divórcio o que poderá levar a decisões, cuja bondade não avalio, que podem ser apressadas, por decisão não assumida por ambos e não antecipando a necessidade de minimizar eventuais impactos, sobretudo quando existem filhos.
Neste quadro, podem emergir nos adultos, ou num deles, situações de sofrimento, dor e/ou raiva, que “exigem” reparação e ajuda. Muitos pais lidam sós com estes sentimentos pelo que os filhos surgem frequentemente como “tudo o que ficou” e o que “não posso e tenho medo de também perder”. Poderemos assistir então a comportamentos de diabolização da figura do outro progenitor, manipulação das crianças tentando comprá-las (o seu afecto), ou, mais pesado, a utilização dos filhos como forma de agredir o outro.
Nestes cenários mais graves podem emergir quadros do chamado Síndrome de Alienação Parental que, apesar de alguma prudência requerida na sua análise, nem a utilização como conceito é consensual em termos clínicos e jurídicos, são susceptíveis de causar graves transtornos nas crianças, daí, naturalmente, a necessidade de suporte e ajuda.
É obviamente imprescindível proteger o bem-estar das crianças mas não devemos esquecer que, em muitos casos, existem também adultos em enorme sofrimento e que a sua eventual condenação, sem mais, não será seguramente a melhor forma de os ajudar. Ajudando-os, os miúdos serão ajudados. Quero ainda sublinhar que, por princípio, prefiro uma boa separação a uma má família.
Uma nota final que me parece positiva. À solicitação de desenhar a sua família, esta criança de seis anos desenha as suas duas famílias. Se repararmos bem, as duas famílias têm um Solzinho que as ilumina e aconchega. É o (quase) tudo que as crianças precisam.

SOS MIÚDOS

Em 2011, a Linha Criança existente na Provedoria de Justiça recebeu um total de 740 chamadas sendo 178 relativas a maus tratos e negligência.
Por outro lado, a linha SOS Criança, a funcionar no âmbito do Instituto de Apoio à Criança, procedeu em 2011 ao encaminhamento de 760 crianças em risco, mais 35% do que no ano anterior, com um registo de 565 casos.
Estes indicadores parecem sugerir que a comunidade estará menos tolerante a eventuais maus tratos aos miúdos o que leva, naturalmente, ao aumento das queixas e ao seu encaminhamento.
A minha questão neste contexto é o que a acontece a seguir nestes processos depois de detectados e encaminhados, alguns.
De há muito e a propósito de várias questões, que afirmo que em Portugal, apesar de existirem vários dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação no mesmo sentido, sempre assente no incontornável “supremo interesse da criança, não existe o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens. Poderíamos citar a insuficiência e falta de formação de juízes que se verifica nos tribunais de Família, as frequentemente incompreensíveis decisões em casos de regulação do poder parental, etc.
Temos também em funcionamento as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens que procuram fazer um trabalho eficaz mas em difíceis circunstâncias.
Na sua grande maioria as Comissões têm responsabilidades sobre um número de situações de risco ou comprovadas que transcendem a sua capacidade de resposta. A parte mais operacional das Comissões, a designada Comissão restrita, tem muitos técnicos a tempo parcial. Tal dificuldade repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido, independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram.
Este cenário permite que ocorram situações, frequentemente com contornos dramáticos, envolvendo crianças e jovens que, sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não tinham, ou não tiveram, o apoio e os procedimentos necessários. Ouve-se então uma das expressões que me deixam mais incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada” o que foi insuficiente para a adequada intervenção. Em Portugal sinalizamos e referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é minimizar ou resolver os problemas referenciados ou sinalizados.
Por isso, sendo importante registar a menor tolerância da comunidade aos maus tratos aos miúdos, também será importância que desenvolva a sua intolerância face à ausência de respostas.

ENTRE O "DRESSING CODE" E O "THINKING CODE"

Para fugir um pouco à circularidade das notícias sobre a crise, umas notas sobre o "Regulamento e Código de Conduta" estabelecido pela direcção do Hospital de Braga e que proíbe, entre variadíssimos outros aspectos, o uso de "cabelos de cores extravagantes" ou saltos excessivamente altos.
Como é habitual, a tentativa de regulação de matérias desta natureza desencadeia polémica e entendimentos diversos. Lembram-se certamente das discussões em torno da definição de orientações por parte do Conselho Académico da Universidade Católica sobre o vestuário a adoptar no campus universitário.
As opiniões neste universo são sempre de grande elasticidade, variando entre os que defendem a “farda” até aos que sustentam que regular a apresentação é um atentado aos direitos individuais. Já não tenho muita paciência para certo tipo de discussões.
Os mais velhos lembrar-se-ão de nos tempos imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 74 e num dos efeitos da libertação de uma sociedade fechada, obscura, conservadora, se ter assistido a uma extraordinária onda de abolições de regras sobre o vestuário e apresentação nas mais variadas profissões, incluindo as forças armadas. Tal facto levava a "retratos" notáveis criando figuras de que muitos de nós se lembram.
A poeira assentou e fomos, de mansinho, voltando ao entendimento de que existem circunstâncias sociais, culturais e profissionais que determinam que "não vale tudo" no comportamento e apresentação em nome de um guarda chuva infinito, os "direitos individuais".
A vida em sociedade e o respeito por regras sociais obriga a que ninguém de nós possa fazer sempre o que quer, quando quer, onde quer, da forma que quer, etc. Não simpatizo com proibições e normas exaustivas sobre comportamentos individuais, tão na moda ultimamente, mas também entendo que em algumas circunstâncias e contextos se torna necessário com  regular, de forma sensata, funcionamentos, não no sentido da normalização cinzenta em que corpo e "cabeça" vestem farda, mas que promovam alguma auto-regulação nos indivíduos nos diferentes contextos em que se movem.
Também nesta matéria me parece necessário separar o essencial do acessório, ainda que se preste a discursos demagógicos e populistas, vendem bem. Mesmo os mais críticos do estabelecimento deste tipo de normas, eu sou um deles, sabem que diariamente gerimos regras de conduta e apresentação nos diferentes contextos em que nos movemos.

sábado, 21 de abril de 2012

O GRAU DE LIBERDADE DA LIBERDADE DE ESCOLHA DA ESCOLA

A propósito da decisão do MEC no sentido de que os alunos possam ser matriculados em escolas fora da sua área de residência, disposição que formalmente é positiva mas que na prática não tem qualquer repercussão como já tinha referido em texto anterior e o trabalho de hoje do Público confirma, entra de novo na agenda, parece ser intenção do MEC, a liberdade de escolha, ou seja, a possibilidade de escolha entre escolas públicas e privadas que é também abordada na peça. Retomo algumas notas sobre esta questão.
É com frequência que neste debate, e o Público tem uma tradição de o acompanhar, se citam as experiências de outros países em que se verifica a possibilidade de os pais escolherem entre escolas, públicas ou privadas, sendo que neste caso o Estado suporta financeiramente a escolha. Em primeiro lugar, importa sublinhar uma questão absolutamente fulcral, as escolas na generalidade dos casos em que se verifica a “liberdade de escolha” são OBRIGADAS a aceitar o aluno. Por outro lados, também é de referir que os estudos não estabelecem nenhuma relação conclusiva de causa-efeito entre a liberdade de escolha e a qualidade do sistema educativo, existem muitíssimas outras variáveis envolvidas.
No sentido de tornar mais claro o meu entendimento sobre esta questão, devo sublinhar que entendo a existência de um subsistema educativo de ensino privado como absolutamente necessária para, por um lado permitir alguma liberdade de escolha, ainda que condicionada, por parte das famílias e, por outro lado, como forma de pressão sobre a qualidade do ensino público.
No entanto, mais uma vez, refiro algo que é bem conhecido de todos os que de alguma forma lidam com o universo da educação. Muitas instituições de ensino privado não receberão nunca alguns alunos independentemente de os pais terem no fim de cada mês um voucher para pagarem a mensalidade ou desta ser suportada pelo estado. Não é uma questão económica, é uma questão de defender a instituição de situações de risco que lhe comprometam a imagem de excelência ou a posição nos rankings, sejam os dos resultados escolares sejam os do "capital social" que detêm.
A cultura mais generalizada entende os estabelecimentos de ensino privado como exclusivos e muitos deles são profundamente selectivos na população que acolhem. São conhecidos, o recurso ao “pedigree”, às notas, aos testes de conhecimento e até, a discutível utilização de testes de desenvolvimento pelos respectivos serviços de psicologia. Por outro lado, conhecem-se também estabelecimentos de ensino privado de onde, com baixíssima tolerância, alunos com algum insucesso e ou problemas do comportamento são "convidados" a sair para que se não comprometa a imagem e o estatuto da escola. Como já tenho afirmado, seria aliás interessante e um bom serviço prestado a este debate, uma investigação por parte da imprensa aos mecanismos de acesso aos colégios mais "cotados" e aos dispositivos de "convite" à saída sempre que alguma coisa corre menos bem.
Por outro lado, é também conhecido que mesmo entre escolas públicas se verificam práticas de selecção dos alunos de forma mais ou menos discreta e que já foram referidas por alguma imprensa mais atenta.
Reafirmando a necessidade de existência de um subsistema privado, insisto de há muito, que a melhor forma de proteger a liberdade de educação, é uma fortíssima cultura de qualidade, rigor e exigência na escola pública e uma acção social escolar eficaz e oportuna. Esta cultura assenta num trajecto imprescindível de autonomia e responsabilização que parece estar, tem sido anunciado, na intenção do MEC.
Assim teremos mais facilmente boas escolas, públicas ou privadas.

CONFIAMOS EM QUEM?

A imprensa de hoje refere os dados do Edelman Trust Barometer evidenciando que embora os portugueses tenham subido a confiança no Governo, continuam a confiar mais nas ONGs, nas empresas, sobretudo nas das áreas das tecnologias e muito menos nas da área financeira, evidenciando uma subida da confiança nos meios de comunicação tradicional.
Parece-me interessante cruzar estes dados com os resultantes de um estudo de 2011 também sobre a confiança dos cidadãos de 19 países em diferentes profissões e organizações.
Neste estudo e tal como em anos anteriores, bombeiros, professores e carteiros são os profissionais em quem os portugueses mais parecem confiar, enquanto políticos, advogados e banqueiros acompanhados em 2011 pelos juízes vêem a confiança em si andar pelas ruas da amargura, pois estando no fim da lista de confiança viram os resultados piorar.
É bonito sentir que os portugueses confiam genericamente em quem cuida do seu bem-estar e ajuda em caso de necessidade, os bombeiros.
Parece-me também de salientar a confiança em quem lhes constrói o futuro, os professores, cuidando do seu mais precioso bem, os filhos, apesar de tanta gente, alguns pertencendo à classe, se esforçar por abalar a imagem destes profissionais quer por ignorância, má-fé, ingenuidade ou interesses corporativos.
Finalmente, acho muito bonita a ideia de confiar em quem nos traz as notícias do mundo, os carteiros, provavelmente, com a secreta esperança de que sejam notícias boas. Mas mesmo quando portadores de más notícias, o mensageiro merece confiança.
Por outro lado, é significativo, inquietantemente significativo, que, nos que geram o nosso destino, aliás, por delegação cívica de nossa responsabilidade, os políticos e nos que deveriam ser os administradores e garantes dos direitos, da equidade e da justiça, advogados e juízes, a confiança é baixa, ou de forma menos simpática, a desconfiança é muita.
É certo que estes grupos têm vindo a fazer um notável esforço para que a nossa confiança em si e na sua actuação atinja estes níveis. Deve dizer-se que são bem sucedidos, todos os dias temos exemplos e episódios que alimentam este sentimento, basta estar atento.
A minha maior preocupação é que a arquitectura cívica e política que se instalou não permite facilmente a tão necessária mudança, eles continuam sempre a perceber-se como parte da solução quando são parte do problema.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

UM RAPAZ CONTENTE E TRISTE

Professor Velho, a gente pode estar contente e triste ao mesmo tempo?
Por que perguntas, Manel?

Estou um bocado baralhado. Dantes, quando me aconteciam coisas de que eu gostava ficava contente e, quando me aconteciam coisas de que eu não gostava, ficava triste. Mas hoje, aconteceu-me uma coisa boa, fui ver as notas e foram fixes, tive um 5, dois 4 e o resto 3. Fiquei contente, mas olhei para as notas da Joana e fiquei triste porque ela teve notas más. Como eu gosto muito dela fiquei triste, e quando a encontrar nem vou dizer que estou contente com as minhas notas.
Manel, quando a gente cresce começa a ser capaz de ver mais coisas ao mesmo tempo. E outra coisa muito importante, também começamos a pensar no que as outras pessoas pensam, especialmente quando gostamos delas. Sabes que a Joana vai ficar triste, gostas dela e, por isso, ficas triste. É isso?
Acho que sim, Velho.
Então, quando encontrares a tua amiga Joana não precisas de esconder que estás contente, porque ela, como também gosta de ti, vai ficar contente com as tuas notas e triste com as notas dela. Cá para mim, ainda vai ficar mais contente se lhe disseres que vais estudar com ela para ajudar as notas a ficar fixes, como tu dizes.
Boa ideia, Velho.

A JUSTIÇA ENVIESADA

O professor Jorge Miranda veio hoje a terreiro criticar a “partidarização" das escolhas dos elementos para o Tribunal Constitucional. Confesso que fiquei admirado com a reacção uma vez que dificilmente se encontra alguma estrutura que não seja “partidarizada”. De há muito que a partidocracia capturou a gestão dos diferentes sistemas políticos sectoriais mas talvez o Professor Jorge Miranda se tenha distraído.
Em todo o caso a situação na área da justiça é, pela sua natureza, particularmente sensível e relevante. Muitas vezes tenho referido no Atenta Inquietude que uma das dimensões fundamentais para uma cidadania de qualidade é a confiança no sistema de justiça. É imprescindível que cada um de nós sinta confiança na administração equitativa, justa e célere da justiça. Assim sendo, a forma como é percebida a justiça em Portugal, forte com os fracos, fraca com os fortes, lenta, mergulhada em conflitualidade com origem nos interesses corporativos e nos equilíbrios da partidocracia vigente constitui uma das maiores fragilidades da nossa vida colectiva.
Em 2009, a prescrição evitou a condenação de 1489 arguidos já condenados em primeira instância. Não se estranha, são recorrentes a demora, a manha nos processos judiciais com a utilização de legislação complexa, ineficaz e cirurgicamente construída para ser manhosamente usada por quem a construiu que, com base em expedientes dilatórios, promove a injustiça, ou seja, é uma justiça manifestamente marcada pelas desigualdades de tratamento como, aliás, a actual Ministra já referiu, etc.
No entanto, ao reflectirmos sobre o cenário da justiça em Portugal, o que me parece verdadeiramente preocupante é a percepção de que ninguém parece verdadeiramente interessado em alterar este quadro apesar da retórica das afirmações. Sofrem os cidadãos individualmente e sofre a qualidade da vida cívica de um país que percebe o seu sistema de justiça como forte com os fracos, fraco com os fortes, partidarizado, moroso, ineficaz e, definitivamente injusto. É mau, muito mau.
A reforma do sistema de justiça é uma das componentes do programa estabelecido pela "troika". Pode ser que por imposição estrangeira, aí costumamos ser bons alunos, alguma mudança significativa possa ocorrer.
Para já, temos adiado as reformas. Estamos no bom caminho.

TERRA DE TROCA-TINTAS

Não é possível ler sem um sobressalto de alguma indignação as notícias hoje divulgadas em torno da disponibilidade do conhecido entertainer e comentador de casos de polícia Moita Flores, para continuar a prestar “serviço público” candidatando-se à autarquia de Oeiras uma vez que outra figura proeminente altamente recomendável, o Dr. Isaltino,  se desligou do PSD e já chegou ao fim do prazo de validade em termos de mandatos.
O Dr. Moita Flores, coloca-se em bicos de pés e afirma a disponibilidade para se sacrificar mais uns anos em nome do espírito de missão que obviamente o caracteriza. Ele só precisa de um lugarzinho numa autarquia maior pois Santarém já é coisa pouca para tanta genialidade, generosidade e vontade de servir.
As estruturas concelhias partidárias, atraídas pela mediática figura e pela competência autárquica da figura capazes de voltar a conquistar a autarquia, endereçaram um convite que certamente deixa o Dr. Moita Flores altamente sensibilizado, ao qual, pode ler-se no Público, não pode responder já (pulando de entusiasmo a dizer que sim) porque é indelicado aceitar antes de receber o convite e é assim desta forma despudorada que se tece a trama da política à portuguesa.
Depois de uns aninhos em Santarém, o Dr. Flores, pelos vistos um profundo conhecedor da realidade de Oeiras, assina de cruz o seu contrato de transferência para prosseguir a missão de serviço público a que se propôs. Devido à limitação de mandatos, esta manhosice vai certamente animar o mercado da dança das cadeiras nas próximas eleições autárquicas envolvendo as diversas cores que vão a jogo.
Terra de troca-tintas, como diria a minha avó Leonor.

SER ADULTO. Outro diálogo improvável

Mãe, às vezes enganas-te?
Sim claro, quantas vezes. Toda a gente se engana.
E marcam-te erros?
Mãe, às vezes distrais-te?
Tento estar sempre com atenção, mas algumas vezes também me distraio.
E dizem-te que estás sempre com a cabeça na lua?
Mãe, fazes sempre tudo bem a primeira vez que experimentas fazer?
Não é muito fácil fazer tudo bem logo de início.
E chamam-te burra?
Mãe, às vezes tens coisas que demoras mais tempo a aprender a fazer bem?
Claro, há coisas mais difíceis de fazer e de aprender que outras.
E também te dizem que não vais a lado nenhum, que nunca vais aprender?
Mãe, às vezes fazes alguma coisa daquelas que não deves fazer?
Procuro que não aconteça, mas para dizer a verdade às vezes quando as coisas não me correm bem digo uma asneira.
E marcam-te faltas disciplinares e dizem que és indisciplinada?
Diz-me lá uma coisa, de onde vêm essas perguntas todas.
De lado nenhum, estou a pensar que ser adulto parece mais fácil do que ser miúdo.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

JÁ NÃO SEI COMO LIDAR COM O MEU FILHO. AJUDEM-ME

Alguma imprensa de hoje refere, a propósito da realização de um Seminário sobre delinquência juvenil, a emergência de situações de adolescentes que agridem os pais, designadamente, por não gerirem eficazmente a frustração de não verem satisfeitos os seus desejos, ou seja, os pais não lhes dão o que querem.
Nas peças a que tive acesso, não são disponibilizados indicadores de prevalência mas, de qualquer forma, parecem-me justificáveis algumas notas. Na verdade, começa a ser publicada informação relativa à dificuldade, diria incapacidade, que muitos pais sentem para lidar com os problemas colocados pelos filhos.
Segundo alguns dados de 2011, cerca de 9%, dos casos de pedido de ajuda às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens foram realizados pelos pais, o que correspondia a perto de 2350 situações.
Na maioria dos pedidos tratava-se naturalmente de situações em que os pais já não conseguem controlar os comportamentos e atitudes de adolescentes, ou mesmo de crianças, pelo que recorrem às Comissões em situação muitas vezes de desespero e completamente fora de controle. Estas, através de um esforço de mediação, procuram evitar a situação, por vezes desejada pelos pais, da retirada da criança ou jovem do agregado familiar com recurso à institucionalização. Parece correcta a tentativa de manter até ao limite a integridade da família, desde que em condições de funcionalidade e equilíbrio.
A experiência mostra-me de há muito que o exercício da parentalidade, em algumas circunstâncias, não é tarefa fácil, as crianças e adolescentes colocam problemas novos com que muitos pais, e até profissionais, têm dificuldade em lidar. Embaraça-me a excessiva ligeireza com que frequentemente se culpam os pais pelos problemas dos filhos. Enquanto pais serão responsáveis, mas por vezes os problemas estão para além da capacidade de resposta das famílias. Não estou a falar dos casos de negligência, que também existem e devem ser objecto de intervenção, mas de dificuldades reais sentidas por pais que querem ser bons pais e da inexistência de estruturas de apoio acessíveis e generalizadas que ajudem a lidar com essas dificuldades.
Neste contexto e porque os problemas das crianças e jovens em idade escolar não podem deixar de envolver as escolas, parece-me imprescindível que nos estabelecimentos educativos ou próximo e com funcionamento articulado, existam dispositivos de apoio às famílias e ao exercício da parentalidade que ajudem no trabalho dos pais e na relação destes com a escola. Como exemplos podemos referir o trabalho meritório desenvolvido pelos Gabinetes de Apoio ao Aluno e à Família, experiência tutelada pelo Instituto de apoio à criança ou o programa de educação parental destinado a pais de crianças ou jovens em risco desenvolvido com o apoio da Fundação Gulbenkian e sob a coordenação do Professor Daniel Sampaio.
As mudanças observadas no quadro dos valores, estilos de vida e culturas exigem uma atenção redobrada a problemas emergentes.

QUEM SEMEIA VENTOS, COLHE TEMPESTADES

A imprensa de hoje veicula duas afirmações curiosas, sustentadas por uma espécie de profissão de fé dos seus autores. Cavaco Silva afirmou que acredita na manutenção do “clima de paz e coesão social" e Vitor Gaspar diz na sede do FMI que “as pessoas estão completamente dispostas a sacrificar-se e a trabalhar … desde que o esforço seja distribuído de forma justa”.
Mais uma vez parece-me de reflectir sobre esta convicta confiança na resistência e capacidade de sacrifício dos portugueses às dificuldades que atravessam.
As sucessivas e pesadíssimas medidas, chamadas de austeridade, conjugadas com as dificuldades decorrentes da própria situação económica estão a colocar a resistência de muitas pessoas nos limites ou para além dos limites, como o próprio Cavaco Silva já referiu. O desemprego atingiu um nível recorde, 15%, prevendo-se o seu crescimento, o que representa uma fortíssima ameaça à dignidade das pessoas e testa fortemente a contenção da indignação e revolta.
Por outro lado, e do meu ponto de vista de forma muito grave, muitas afirmações de gente politicamente responsável têm sido profundamente infelizes, para ser simpático, mas na verdade insultuosas e inaceitáveis face aos problemas que colocam 2,7 milhões de portugueses à beira da pobreza e exclusão. Os exemplos são muitos, o caminho é empobrecer, emigrar é um saída, não se queixem, não estão bem mudem-se, etc., quando, simultaneamente, o estado, muitas instituições e figuras continuam a promover gastos e a usufruir de mordomias e rendimentos que não se compreendem e aceitam.
Tudo isto gera um caldo de cultura em que se corre o risco de diluir os brandos costumes com que nos costumam identificar e nos quais Cavaco Silva e Vítor Gaspar querem desesperadamente acreditar. Como o povo diz, “quem semeia ventos, colhe tempestades".
Não sei se poderemos afirmar que se estará a assistir a uma lenta mas firme mudança passando de um elogiado comportamento resignado, a uma fase de comportamento indignado e, eventualmente a uma fase de comportamento activamente revoltado, mas algo parece estar a alterar-se, veja-se as reacções a propósito das declarações de Cavaco Silva sobre as suas reformas. De facto, somos reconhecidamente um país de brandos costumes, dizem. Não abusamos da violência e quando o fazemos é no recato do lar, quando muito, no quintal ou num desaguisado de trânsito, nada que possa configurar violência pública ou convulsão social graves. A nossa violência, é uma violência de proximidade.
Somos mesmo um povo tranquilo e de brandos costumes, uma das apreciações que os estrangeiros quase sempre referem como característica dos portugueses.
A questão é que, como dizia Camões, todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Um dia cansamo-nos de ser bons rapazes.

PARECES UM MIÚDO. Outro diálogo improvável

Ia o Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros, a passar no átrio da escola, quando deparou com o João, que quase tropeçava no Velho de tão absorto que ia.
Eh João, quase chocávamos.
Desculpa Velho, ia mesmo na minha, não te vi.
E, como vocês dizem, qual é a tua?
Ia a pensar porque é que os crescidos só dizem a outro crescido que parece um miúdo quando ele faz algum disparate, e só dizem aos miúdos que parecem adultos quando eles fazem coisas bem feitas. Os miúdos não fazem só disparates e os crescidos não fazem só coisas bem feitas.
Essa agora, está bem observado João.
Parece de adulto não é?
...

quarta-feira, 18 de abril de 2012

ATÉ ONDE?

O Governo continua a sua cruzada pelos cortes nas áreas dos apoios sociais. Agora noticia-se que as indemnizações por despedimento serão calculadas com base num valor entre seis e dez dias por ano de trabalho, em vez dos actuais vinte a trinta.
A argumentação, para além da óbvia economia de gastos, remete para o "que se passa lá fora", ou seja, dizem que a fórmula que se pretende está mais perto da média usada nos países europeus, as indemnizações em Portugal são muito elevadas, somos uns privilegiados, é preciso acabar com estas mordomias. O argumento é manhoso e não colhe, porque também se pode considerar que o salário médio nesses países é bem acima do que se passa em Portugal sendo que pagamos também muitos bens e serviços por custos bem acima dos preços médios na Europa.
Considero aceitável que possam verificar-se alguns ajustamentos na gestão e atribuição dos apoios sociais, mas a factura desses ajustamentos não pode ser suportada quase que exclusivamente pelos suspeitos do costume.
No universo laboral a situação é absolutamente devastadora, uma taxa de 15% de desempregados, 35% entre os mais jovens, com a expectativa de que a situação piore ainda durante 2012.
Diminui-se o valor do subsídio de desemprego, diminui-se o tempo de atribuição desse subsídio, diminui-se o valor da indemnização por desemprego, estabiliza-se o caminho para o empobrecimento.
É verdade que se aumenta, como ontem se anunciava, o número de cantinas sociais, a Sopa dos Pobres, e, portanto, de fome não morreremos, mas nunca como agora a dignidade foi tão ameaçada.
Até onde será possível aguentar?

UM DIA HORRÍVEL

Hoje à hora do chá que tomava ao balcão de um café de bairro, começo a ouvir ao meu lado uma pessoa que, visivelmente agitada e com a voz no mesmo estado,  se queixava para a acompanhante da desgraça infernal em que se tinha transformado o seu dia.
Tudo tinha corrido mal, as tarefas não lhe saíam bem, estava nervosa, impaciente e sentia-se completamente impotente para reverter o seu mal-estar.
A outra pessoa apenas ouvia.
Na verdade, continuava a pessoa agitada, estava desejando chegar a casa para ver se recuperava do dia horrível que tinha, e estava a passar, que, aliás, nunca mais chegava ao fim. Sentia-se num autêntico suplício. Nunca tal lhe tinha acontecido e nem sequer encontrava explicação para tamanho problema.
Percebi que se tinha esquecido do telemóvel em casa.

terça-feira, 17 de abril de 2012

UMA FAMÍLIA NORMAL E FELIZ

Em encontro hoje realizado em Lisboa, o Cardeal Ennio Antonelli, presidente do Conselho Pontifício para a Família (CPF), afirmou que a criança tem direito a uma família normal que entende como a constituída por homem, mulher e filhos. Sustenta também, com base em estudos sociológicos, que “percentualmente falando, os casados são mais felizes do que os solteiros, os conviventes e os separados”.
As discussões sobre as questões relativas às famílias, formas de estabelecimento de relações estáveis entre as pessoas e as implicações que esses diferentes modelos podem ter na vida dos miúdos estão, naturalmente, na agenda das nossas sociedades.
Na maioria das vezes são abordadas a partir dos quadros de valores de quem expressa a sua opinião. Devo dizer que me parece legítimo a existência de entendimentos diferentes sobre estas matérias.
No entanto, creio que do ponto de vista da criança a questão central será o seu direito a ser bem tratada em todas as dimensões da sua vida. Sabemos todos que viver numa “família normal”, no entendimento do Cardeal Antonelli não defende só por si a criança de atropelos aos seus direitos e de maus tratos muito severos, ou seja, o que é devastador para a criança é ser maltratada e os maus tratos não decorrem do tipo de família, mas da competência e afecto das pessoas que dela cuidam. Quando as crianças são bem tratadas e crescem com adultos que gostam delas, as protegem e as ajudam a crescer elas encontram caminhos para lidar com dois pais ou com duas mães, por exemplo.
O que as crianças quase sempre não sabem como resolver, é quando têm por perto adultos, heterossexuais, constituinido uma "família normal", que não gostam delas, que as maltratam, negligenciam, abandonam, etc. Isso é que faz mal às crianças.
Por outro lado, considerando a maior felicidade dos casados por comparação com outras situações constatada nos “estudos sociológicos”, (cuja análise seria interessante), vale a pena considerar a quantidade de “famílias normais” que por hipocrisia, conveniência ou interesse, se mantêm, quando na verdade, estando “casadas por fora”, estão completamente “descasadas por dentro”. Como também os estudos mostram, as crianças percebem e são afectadas pela qualidade desta família fingida, as crianças não se deixam enganar.
Reafirmando a legitimidade que aceito nas afirmações do Cardeal Antonelli, chamo a atenção para o que de substantivo contém a ideia fundadora do “supremo interesse da criança”.

ABANDONAR A FORMAÇÃO É PERDER O FUTURO

A hierarquia da Igreja Católica expressa publicamente a sua preocupação com a situação de abandono de muitos estudantes do ensino superior devido às dificuldades económicas. Dadas as implicações deste cenário preocupante, retomo algumas notas já aqui deixadas.
Há dias foi notícia que o número de estudantes do ensino superior com bolsa de estudo voltou a descer, é cerca de 56 000, e está ao nível do ano 2000 quando frequentavam este nível de ensino menos 20 000 estudantes que actualmente. Tal mudança parece decorrer das dificuldades económicas conjugadas com alterações no Regulamento de atribuição das bolsas verificadas nos últimos dois anos. Também há pouco o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas aprovou uma recomendação no sentido de que as instituições de ensino superior possam aumentar em 30 € o valor anual das propinas com o objectivo de apoiar estudantes em dificuldades.
As dificuldades pelas quais passam muitos estudantes do ensino superior e respectivas famílias, quer no sistema público, quer no sistema privado, são, do meu ponto de vista, considerados frequentemente de forma ligeira ou mesmo desvalorizadas. Tal entendimento parece assentar na ideia de que a formação de nível superior é um luxo, um bem supérfluo pelo que ... quem não tem dinheiro não tem vícios.
Segundo um estudo da Universidade do Porto, quase um quarto dos seus alunos abandona o curso durante os três primeiros anos. Os números dos diferentes cursos têm variações acima ou abaixo do valor médio, mas são muito elevados. Embora existam outros factores contributivos, as dificuldades económicas parecem constituir a razão fundamental para esta enorme taxa de abandono.
Também um inquérito envolvendo estudantes de todo o país coordenado pela Associação Académica da UTAD, apurou que 48% dos inquiridos já passaram por dificuldades económicas e cerca de 65% temem abandonar o curso em consequência das dificuldades.
Recordo ainda um trabalho recente realizado pelo Público junto de um grupo significativo de estabelecimentos de ensino superior, em que se constatou que, face a igual período do ano passado, aumentou 6% o número de desistências do ensino superior por efeitos da crise. Esta percentagem corresponde a cerca de 3300 estudantes o que é significativo. As dificuldades económicas, a dificuldade no acesso a bolsas e o aumento de propinas são os motivos identificados.
Desde o início tenho afirmado que o processo de reforma no ensino superior mais conhecido pela "Reforma de Bolonha" radicou mais em questões económicas que de natureza científica, curricular ou de mobilidade envolvendo estudantes e professores. O encurtamento do chamado grau de licenciatura para três anos e a criação do 2º ciclo, o grau de mestrado, possibilitou que na grande maioria dos cursos passassem a ser as propinas dos alunos a financiar o 2º ciclo que em muitas instituições tem custos significativos, entrando num cenário a que alguns chamam o funcionamento do mercado.
Seria ingenuidade excessiva não perceber que as leis do mercado, sempre o mercado, teriam de chegar também ao ensino superior público e também entendo que compete a estudantes e famílias uma parte importante no investimento na formação e qualificação profissional.
No entanto, conhecendo o tecido social e cultural português, longe obviamente dos modelos americanos que alguns defendem, temo que esta entrega às leis do mercado e às capacidades das famílias, alimentem algo que é, ainda, uma característica do sistema educativo português e que os relatórios internacionais reconhecem, o baixo impacto da educação na mobilidade social. Dito de outra maneira, os indivíduos com origem em grupos sociais mais favorecidos são os que tendencialmente obtêm melhores níveis de qualificação e repete-se o ciclo. Neste quadro, a redução significativa das bolsas e apoios, as dificuldades enormes que muitas famílias atravessam e o desemprego mais elevado entre os jovens, que poderia constituir uma pressão para continuar os estudos, a que acrescem as elevadas propinas, designadamente no 2º ciclo, tornam ainda mais difícil a realização de percursos escolares que promovam mobilidade social e que se traduz, por exemplo, no aumento das desistências.
Quando se espera e entende que a minimização das assimetrias possa, também, depender da educação e qualificação, o seu preço e as dificuldades actuais, longe de as combater, alimenta-as.
É preocupante.