Num contexto global, mais abrangente por transcenderem
os aparelhos partidários, não muito habitual entre nós, realizam-se hoje em
dezenas de cidades manifestações sob a bandeira da indignação e do protesto
dirigida ao atropelo à dignidade de muita gente em que se tornaram as políticas
de austeridade cega e insensível impostas pela troika e ampliadas pelos
diligentes feitores do protectorado em que nos transformámos. Afirma-se entre
muitas outras ideias, “Que se lixe a troika. Queremos as nossas vidas”,
justamente pela desesperança com que olhamos para ela, a nossa vida.
À hora a que escrevo estas notas não tenho
informação sobre o nível de participação, ainda que as primeiras informações
sugiram uma presença significativa, designadamente em Lisboa e Porto.
As graves circunstâncias sociais e económicas de
hoje terão, seguramente, um efeito potenciador do sentimento de indignação e
protesto que derivará de múltiplas razões.
No entanto e do meu ponto de vista, parece-me
interessante perceber a dimensão deste protesto que emerge fora da tutela da
partidocracia instalada que capturou de forma quase exclusiva o envolvimento
cívico das pessoas, promovendo um nível de afastamento dos cidadãos muitíssimo
significativo.
As progressivas taxas de abstenção nos últimos
actos eleitorais são um bom exemplo desse afastamento e, importa salientar, não
são algo que envolva exclusivamente o eleitorado mais jovem. É minha convicção
que algumas das mais importantes causas deste afastamento entre os cidadãos e a
vida cívica, remetem para a degradação da sua qualidade. Com excessiva
regularidade temos exemplos arrasadores da saúde ética da vida cívica.
No actual quadro de organização e cultura
política e administrativa, é muito difícil a intervenção cívica fora da tutela
dos aparelhos partidários. Verifica-se também que a capacidade de mobilização
dos partidos se dirige a uma minoria de pessoas que se movimenta e sobe nos
respectivos aparelhos, podendo, assim, aceder a alguma forma de poder e a uma
maioria que enche autocarros, recebe uns brindes e tem um almocinho de borla. A
partidocracia não atrai porque os partidos se tornam donos da consciência
política das pessoas, veja-se o espectáculo deprimente da Assembleia da
República, vota-se o que o partido manda, independentemente da consciência.
Reconhece-se hoje que as camadas mais novas, mas
não só, atravessam uma complexa situação envolvendo os valores, a confiança nos
projectos de vida, os estilos de vida, etc. Neste quadro, a adesão à
intervenção política, tal como se verifica genericamente em Portugal, parece
mais uma parte do problema, é velha a partidocracia para responder a problemas
novos, que um caminho para a solução.
De tudo isto resulta, como muitas vezes refiro, o
afastamento das pessoas pelo que a construção de outras formas de participação
cívica parece ser a única forma possível de reformar o quadro político que
temos, ou seja, os partidos ou definham ou mudam, pela pressão do exterior.
Um outro aspecto que me parece importante, embora
alguns discursos o desvalorizem, é de uma dimensão menos tangível, diria psicossociológica
e que se prende com a recuperação e utilização da canção
Grândola nas acções de protesto. A canção de José Afonso tem uma carga
simbólica fortíssima associada a um momento de ruptura e profunda viragem na
sociedade portuguesa. É por demais reconhecida a capacidade mobilizadora e
aglutinadora dos símbolos. Deste ponto de vista, poderemos assistir a uma federação
e congregação de comportamentos, atitudes e ideias que apesar das diferenças
eventuais terão como dimensão agregadora e potenciadora justamente o conteúdo
simbólico da Grândola.
Esperemos, portanto, para perceber a dimensão da
indignação e do protesto e, consequentemente, a pressão e exigência que poderá
criar-se para a reforma das políticas e mesmo da política.
Será indignação e protesto que chegue?
Como é óbvio quem decide, não o pode fazer, como
se costuma dizer no jargão político, com base na rua. Mas manda o bom senso que
também não se pode esquecer a rua e que a rua não é apenas os que lá estão.
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