A
propósito dos episódios de violência, que não são inéditos, no Bairro da Bela
Vista em Setúbal, desta vez com uma tragédia acrescida, algumas notas. Há uns tempos escrevi, "Os tempos
estão difíceis e crispados para os adultos, seguramente para boa parte dos
adultos, e para os miúdos a estrada também não está fácil de percorrer. Alguns
vivem, sobrevivem, em ambientes familiares disfuncionais que comprometem o
aconchego do porto de abrigo, afinal o que se espera de uma família. Alguns
percebem, sentem, que o mundo deles não parece deste reino, o mundo deles é um
bairro insustentável que, conforme as circunstâncias, é o inferno onde vivem ou
o paraíso onde se acolhem e se sentem protegidos. Alguns sentem que o amanhã
está longe de mais e um projecto para a vida é apenas mantê-la. Alguns
convencem-se que a escola não está feita para que nela caibam, uns por uma
razão, outros por outra razão. Alguns sentem que podem fazer o que quiserem
porque não têm nada a perder e muito menos acreditam no que têm a ganhar.
Alguns destes miúdos
vão carregar para a escola a dor de alma que sentem mas não entendem, por
vezes.
Não, não tenho
nenhuma visão idealizada dos miúdos, nem acho que tudo lhes deve ser permitido
ou desculpado e também sei que alguns fazem coisas inaceitáveis e, portanto,
não toleráveis. Só estou a dizer que muitas vezes a alma dói tanto que a cabeça
e o corpo se perdem e fogem para a frente atrás do nada que se esconde na
adrenalina dos limites.
Espreitem a alma dos
miúdos, sem medo, com vontade de perceber porque lhes dói e surpreender-se-ão
com a fragilidade e vulnerabilidade de alguns que se mascaram de heróis para
uns ou bandidos para outros, procurando todos os dias enganar a dor da alma.
Eles não sabem, eu
também não, o que é a alma. Um gaiato dizia-me uma vez, “dói-me aqui
dentro, não sei onde”.
A resposta das comunidades a esta situação tem
necessariamente de ser repensada. Segundo dados da Direcção Geral de
Reinserção, cerca de 40% dos adolescentes internados voltam aos Centros
Educativos ou às prisões após os 16 anos. Esta altíssima taxa de reincidência mostra
a falência do Projecto Educativo, obrigatoriamente definido para todos os
adolescentes internados que assentaria em dois eixos fundamentais, formação
pessoal e formação escolar e profissional. É neste âmbito que o trabalho tem
que ser optimizado. É imprescindível que os meios humanos e os recursos
materiais sejam suficientes para que se minimize até ao possível os riscos de
reincidência.
A Presidente da Câmara Municipal de Setúbal
reclama mais e melhor policiamento. Como é evidente, é fundamental garantir a
segurança das comunidades mas não é suficiente. A intervenção punitiva e
repressiva, necessária insisto, aparece em fim de linha, não pode constituir a
principal forma pois não intervém nas causas, apenas nas consequências.
Por mais policiada que seja uma sociedade é
extraordinariamente difícil prevenir processos e episódios desta natureza. A
questão passa, sobretudo, por abordagens de natureza mais preventiva na
tentativa de construção de Projectos de vida viáveis envolvendo diferentes
recursos das comunidades, passa pela capacidade das estruturas educativas com
os meios e as metodologias adequadas minimizarem o insucesso e abandono escolares
quase sempre associados a situações como a do Bairro da Bela Vista.
É importante ainda uma permanente atenção às
pessoas, ao seu bem-estar, tentando detectar, tanto quanto possível, sinais que
indiciem o risco de enveredar por um caminho que se percebe como começa, mas
nunca se sabe como acaba.
A falta de eficácia e de recursos nos processos
de intervenção em situações mais precoces tem como consequência a emergência de
casos mais graves que poderão aumentar potenciados pelas dificuldades.
Com custos
insustentáveis para os próprios e para as comunidades.
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