terça-feira, 24 de dezembro de 2013

FELIZMENTE HÁ NATAL

A não ser num exercício romântico em torno da ideia do clochard francês que escolhe a rua como acto de resistência e projecto de vida, o sem-abrigo é, por natureza e condição, isso mesmo, um sem-abrigo.
Numa sociedade que procura e promove os níveis de bem-estar que já atingimos e que nunca nos satisfazem, a falta de um abrigo, é, creio, a mais despojada das condições sendo que modelos de desenvolvimento e políticas dirigidas a mercados e não a pessoas têm produzido legiões de desabrigados.
Um abrigo, uma casa, grande ou pequena, constitui uma espécie de céu protector para cada um de nós. É também verdade, que não basta o abrigo para ser protector, nas mais das vezes, para além da falta de abrigo existe um mais sério problema de abandono e solidão.
De vez em quando, por diferentes razões, agora porque é Natal e as consciências obrigam, descobre-se a existência de sem-abrigo nas nossas cidades, Então, durante algum tempo, aparecem ad nauseam notícias e peças televisivas que "cobrem" iniciativas variadas, almoços, jantares, distribuição de bens, etc., muitas vezes de um nível intrusivo absolutamente inaceitável, (numa dessas peças ouviu-se uma voz a dizer qualquer coisa como, “olhe que eu sou boa pessoa, mas se vira essa câmara para mim parto isso tudo”). Este ano até um jornal desportivo convidou uma "estrela" do futebol a acompanhar durante uma noite os voluntários de uma instituição no apoio aos desabrigados da vida e do mundo.
Não questiono, evidentemente, a genuína intenção das pessoas e instituições que se disponibilizam para minimizar dificuldades, muitas delas durante todo o ano, embora o problema não seja o cobertor, é o abrigo e a solidão. As pessoas e as instituições desenvolvem um trabalho e um esforço notáveis. A minha questão é o lado voyeurista e quase predatório com que boa parte da comunicação social, sobretudo televisiva, trata pessoas a que poucas vezes dedica atenção. As perguntas e reportagens, sem decoro nem respeito, que esforçados e incompetentes “profissionais” realizam são quase insultuosas e atentatórias dos direitos das pessoas.
As pessoas sem-abrigo, "só" não têm abrigo, não são adereços fornecidos por uma qualquer produção para montar espectáculos televisivos. Ainda lhes restará, acredito, o que ninguém pode perder, a dignidade.

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