A não ser num exercício romântico em torno da ideia do clochard francês
que escolhe a rua como acto de resistência e projecto de vida, o sem-abrigo é,
por natureza e condição, isso mesmo, um sem-abrigo.
Numa sociedade que procura e promove os níveis de bem-estar que já
atingimos e que nunca nos satisfazem, a falta de um abrigo, é, creio, a mais
despojada das condições sendo que modelos de desenvolvimento e políticas
dirigidas a mercados e não a pessoas têm produzido legiões de desabrigados.
Um abrigo, uma casa, grande ou pequena, constitui uma espécie de céu
protector para cada um de nós. É também verdade, que não basta o abrigo para
ser protector, nas mais das vezes, para além da falta de abrigo existe um mais
sério problema de abandono e solidão.
De vez em quando, por diferentes razões, agora porque é Natal e as
consciências obrigam, descobre-se a existência de sem-abrigo nas nossas
cidades, Então, durante algum tempo, aparecem ad nauseam notícias
e peças televisivas que "cobrem" iniciativas variadas, almoços,
jantares, distribuição de bens, etc., muitas vezes de um nível intrusivo
absolutamente inaceitável, (numa dessas peças ouviu-se uma voz a dizer qualquer
coisa como, “olhe que eu sou boa pessoa, mas se vira essa câmara para mim parto
isso tudo”). Este ano até um jornal desportivo convidou uma "estrela"
do futebol a acompanhar durante uma noite os voluntários de uma instituição no
apoio aos desabrigados da vida e do mundo.
Não questiono, evidentemente, a genuína intenção das pessoas e instituições
que se disponibilizam para minimizar dificuldades, muitas delas durante todo o
ano, embora o problema não seja o cobertor, é o abrigo e a solidão. As pessoas
e as instituições desenvolvem um trabalho e um esforço notáveis. A minha
questão é o lado voyeurista e quase predatório com que boa parte da comunicação
social, sobretudo televisiva, trata pessoas a que poucas vezes dedica atenção.
As perguntas e reportagens, sem decoro nem respeito, que esforçados e
incompetentes “profissionais” realizam são quase insultuosas e atentatórias dos
direitos das pessoas.
As pessoas sem-abrigo, "só" não têm abrigo, não são adereços
fornecidos por uma qualquer produção para montar espectáculos televisivos. Ainda
lhes restará, acredito, o que ninguém pode perder, a dignidade.
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