Embora a escrita que vou deixando
no Atenta Inquietude quase sempre remeta para a realidade nacional, alguns episódios
ocorridos fora de portas têm merecido referência esporádica pelas suas
implicações, mesmo para nós. É o caso da tragédia ocorrida em França à qual
volto e a partir da qual gostava de deixar algumas notas.
A barbaridade agora acontecida em
Paris, tal como a tragédia que envolveu o Charlie Hebdo e tantos outros
episódios, são analisados quase sempre num pressuposto de motivação fanática,
bárbara, enquadrada por valores de natureza religiosa aliados ao cortejo de
horrores que o chamado Estado Islâmico vem mostrando na imprensa mundial. Neste
aspecto queria ainda chamar a atenção da atracção que este tipo de iniciativas
ou ideias têm produzido em alguns milhares de jovens europeus, designadamente
franceses e belgas, mas de variadas nacionalidades incluindo portugueses, que
aderem a este tipo de actuação.
A minha questão é que, não
desvalorizando, antes pelo contrário, o papel da forma como as crenças
religiosas são vividas, estas barbaridades, de que os acontecimentos de Paris são
mais um exemplo extremo, julgo que também importa reflectir no contexto, nos
contextos, que levam muitos jovens, muitos deles com educação europeia a
envolverem-se em acções de uma gravidade que ultrapassam a nossa capacidade de
compreensão racional.
O meu ponto, discutível
evidentemente, é que o se passa neste universo já não tem a ver com religião. Aliás,
a insistência nesta visão contribui para alimentar um enorme e perigosíssimo
barril de pólvora, reparemos em alguns discursos e acontecimentos que se têm
sucedido.
Deixem-me recordar-vos apenas
alguns episódios mais próximo e também trágicos. Temos tido recentes episódios
de tiroteios em escolas americanas com muitas crianças mortas, recordo que em
2012 um indivíduo de 20 anos, aumenta a perplexidade, terá assassinado dezenas
de pessoas na maioria crianças numa escola primária.
Estaremos ainda todos bem
lembrados de uma outra tragédia em Oslo, um indivíduo, jovem, aparentemente
discreto, matou friamente umas dezenas de jovens participantes num encontro
partidário. Na altura, para além do sentimento de dor e perda, creio que
perplexidade terá sido o que melhor caracterizou a sociedade norueguesa, aliás,
patente nos testemunhos ouvidos na imprensa. Porquê? Porquê na Noruega,
comunidade aberta, tolerante e segura? Porquê um norueguês e não um terrorista
associado a redes conhecidas? Porquê? Porquê? As mesmas perguntas colocadas
quase sempre que se verificam estas tragédias, porquê tanto mal, tanta
crueldade?
A dificuldade de responder a
estas questões é da mesma ordem da dificuldade de encontrar meios seguros de
evitar tragédias deste tipo. O episódio, com contornos semelhantes ao
protagonizado por Timothy McVeigh que em Oklaoma, em 1995, causou 180 mortos e
mais de 600 feridos, assumido por uma só pessoa, inteligente, socialmente
integrada, numa sociedade aberta é, de facto, muito difícil de prevenir.
Lembram-se também dos distúrbios
graves ocorridos 2011 em Inglaterra protagonizados fundamentalmente por jovens,
que também deixou a sociedade surpreendida e sem saber muito bem como reagir ou
intervir perante o envolvimento de crianças e adolescentes em comportamentos
surpreendentes pelo grau de destruição e pela ausência de controlo.
Também em França, antes destas
tragédias recentes têm ocorrido episódios de extrema violência num dos quais,
há algum tempo, um jovem de 24 anos executou várias pessoas, algumas das quais
crianças.
Em Portugal têm ocorrido vários
casos de violência extrema envolvendo jovens levando-nos questionar os nossos
valores, códigos e leis pela perplexidade que nos causam.
Todos estes episódios têm como
característica comum a juventude genérica dos autores. Os comportamentos
observados assemelham-se, grotesca e horrorosamente, a um videojogo violento
com personagens reais.
A questão que me leva a estas
notas é mais no sentido de tentarmos perceber um processo que designo como
"incubação do mal" que se instala nas pessoas, por vezes ainda antes da adolescência, a partir de situações de mal-estar que podem passar relativamente
despercebidas mas que, devagarinho, insidiosamente, começam interiormente a
ganhar contornos que identificam os alvos, por vezes difusos, sentidos,
percebidos ou induzidos com os causadores desse mal-estar. A religião aqui pode
aparecer como o "grupo" que acolhe e onde se partilha esse mal-estar.
Não é causa nem é efeito, é "apenas" circunstância.
A fase seguinte pode passar por
duas vias, uma mais optimista em que alguma actividade, socialmente positiva,
possa drenar esse mal-estar, nessa altura já ódio e agressividade, ou, a outra
via, aumenta exponencialmente o risco de um pico que pode ser um tiroteio numa
escola, a bomba ou o atentado mortífero meticulosamente e obsessivamente
preparado dirigido ao "representante do mal" ou a vinda para a rua
numa espiral de violência cheia de "adrenalina", em nome de coisa
nenhuma a não ser de um "mal-estar" que destrói valores e gente.
Por mais policiada que seja uma
sociedade é extraordinariamente difícil prevenir processos desta natureza em
que o mal se vai incubando e em que as ferramentas de acção são acessíveis.
Provavelmente, a questão não é abdicar da abertura e da tolerância que
caracteriza a nossa sociedade elevando o policiamento das comunidades a níveis
asfixiantes. A questão, este tipo de questões, a iniciativa individual de
natureza terrorista, ou os movimentos grupais descontrolados e reactivos,
passará sobretudo por uma permanente atenção às pessoas, ao seu bem-estar,
tentando detectar, tanto quanto possível, sinais que indiciem o risco de
enveredar por um caminho que se percebe como começa, mas nunca se sabe como
acaba.
Importa ainda estratégias mais
proactivas e eficientes de minimizar a guetização e "quase total"
desocupação de, em Portugal, centenas de milhares de elementos da geração
"nem, nem" nem estuda, nem trabalha. Para esta gente, o futuro passa
por onde, por quem e porquê?
Na França, Noruega, na
Inglaterra, nos Estados Unidos, ou em Portugal.
Dada disto branqueia ou contradiz
uma dimensão essencial, a mediocridade e falta de visão das lideranças
políticas, o peso dos negócios e a deriva dos interesses políticos regionais e mundiais.
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