Os tempos
estão difíceis e crispados para os adultos, seguramente para boa parte dos
adultos, e para os miúdos a estrada também não está fácil de percorrer. Alguns
vivem, sobrevivem, em ambientes familiares disfuncionais que comprometem o
aconchego do porto de abrigo, afinal o que se espera de uma família. Alguns
percebem, sentem, que o mundo deles não parece deste reino, o mundo deles é um
bairro insustentável que, conforme as circunstâncias, é o inferno onde vivem ou
o paraíso onde se acolhem e se sentem protegidos. Alguns sentem que o amanhã
está longe de mais e um projecto para a vida é apenas mantê-la. Alguns
convencem-se que a escola não está feita para que nela caibam, uns por uma
razão, outros por outra razão. Alguns sentem que podem fazer o que quiserem
porque não têm nada a perder e muito menos acreditam no que têm a ganhar.
Alguns
destes miúdos vão carregar para a escola a dor de alma que sentem mas não
entendem, por vezes.
Não, não
tenho nenhuma visão idealizada dos miúdos, nem acho que tudo lhes deve ser
permitido ou desculpado e também sei que alguns fazem coisas inaceitáveis e,
portanto, não toleráveis. Só estou a dizer que muitas vezes a alma dói tanto
que a cabeça e o corpo se perdem e fogem para a frente atrás do nada que se
esconde na adrenalina dos limites.
Espreitem a
alma dos miúdos, sem medo, com vontade de perceber porque lhes dói e
surpreender-se-ão com a fragilidade e vulnerabilidade de alguns que se mascaram
de heróis para uns ou bandidos para outros, procurando todos os dias enganar a
dor da alma.
Eles não
sabem, eu também não, o que é a alma. Um gaiato dizia-me uma vez, “dói-me
aqui dentro, não sei onde”.
Serve esta introdução para referir o trabalho impressionante que o Público
apresenta sobre o que alguém no próprio trabalho designa por jovens em
"fim de linha", jovens que por decisão dos tribunais cumprem penas de
internamento em Centros Educativos com obrigatoriedade de se inscreverem em
programas de apoio, jovens que estão acompanhados pelas CPCJ, jovens com famílias
inexistentes ou completamente disfuncionais. Estes jovens são acompanhados em
dois Centros de Desenvolvimento e Inclusão Juvenil, experiência tutelada pelo
IAC e articulada com a Direcção Geral de Reinserção Social. Da leitura do
trabalho, que se recomenda, releva a extraordinária dificuldade em ser bem
sucedido dada a mochila pesadíssima que alguns destes jovens carregam. É óbvio
que os esforços e competência das equipas e a eventual motivação de alguns dos
jovens poderão dar algum fruto mas a dificuldade é enorme.
Neste cenário, jovens com passado e presente de violência e
delinquência, a situação é extremamente complexa. Segundo dados da
Direcção Geral de Reinserção, cerca de 40% dos adolescentes internados voltam
aos Centros Educativos ou às prisões após os 16 anos. Esta altíssima taxa de
reincidência mostra a falência do Projecto Educativo, obrigatoriamente definido
para todos os adolescentes internados que assentaria em dois eixos
fundamentais, formação pessoal e formação escolar e profissional. É neste
âmbito que o trabalho tem que ser optimizado. É imprescindível que os meios humanos
e os recursos materiais sejam suficientes para que se minimize até ao possível
os riscos de reincidência. Por outro lado as Comissões têm responsabilidades
sobre um número de situações de risco ou comprovadas que transcendem a sua
capacidade de resposta. A parte mais operacional das Comissões, a designada
Comissão restrita, tem muitos técnicos a tempo parcial. Tal dificuldade
repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido,
independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram.
Este cenário permite que ocorram situações,
frequentemente com contornos dramáticos, envolvendo crianças e jovens que,
sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não têm, ou não tiveram, o
apoio e os procedimentos necessários. Ouve-se então uma das expressões que me
deixam mais incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada” o que
foi insuficiente para a adequada intervenção. Em Portugal sinalizamos e
referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é minimizar ou
resolver os problemas referenciados ou sinalizados.
A falta de eficácia e de recursos nos processos
de intervenção em situações mais precoces tem como consequência a emergência de
casos como os abordados no trabalho do Público e que, de acordo com os
técnicos, tendem a aumentar. Com custos insustentáveis para os próprios e para
as comunidades.
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