Peço desculpa da insistência.
Numa altura em que está na agenda
a complexa discussão do acesso aberto a listas de pedófilos (na prática aberto apesar das restrições propostas), vale pena perceber e
não esquecer que a maior parte dos abusos e maus tratos a crianças ocorre entre dentro de
casa, envolvendo família, amigos ou conhecidos.
Por outro lado, o volume de casos
faz questionar a qualidade e a celeridade das respostas.
Em Dezembro de 2014, os técnicos
a intervir na área da protecção de crianças e jovens em risco manifestavam a
sua preocupação com o aumento de casos e o impacto nos recursos humanos disponíveis
da redução de técnicos da Segurança Social que integram as Comissões. Foi na
altura divulgado que existem Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em
Risco em que um técnico é responsável pelo acompanhamento de 100 crianças, ou
seja, 100 famílias, tarefa manifestamente impossível de ser realizada de forma
eficiente e efectivamente protectora das crianças e jovens.
Recordo que
o Relatório da Actividade
das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em
Risco relativo a 2013 mostrava o aumento do número de casos, foram
acompanhadas 71.567 crianças, mais 2560 do que em 2012.
A exposição a situações de
violência doméstica, a negligência e casos relativos ao direito à educação
(abandono, absentismo ou insucesso escolar) são as situações com maior incidência.
É ainda relevante que os casos de crianças abandonadas ou entregues a si
próprias quase duplicaram.
Verificou-se ainda o aumento do
número de situações de consumos, álcool e droga, bem como de indisciplina
severa. Merece registo positivo a diminuição de casos envolvendo negligência,
abuso sexual, maus-tratos psicológicos, abandono, mendicidade e trabalho
infantil.
Importa ainda considerar que nem
todos os casos chegam às Comissões de Protecção.
Embora não possa ser estabelecida
de forma ligeira nenhuma relação de causa as dificuldades severas que muitas
famílias atravessam e a insuficiência de apoios sociais não serão alheias a
muitas das situações de risco em que crianças e jovens estão envolvidos pois os
estudos mostram que crianças e velhos constituem justamente os grupos mais
vulneráveis.
De há muito e a propósito de
várias questões, que afirmo que em Portugal, apesar de existirem vários
dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação
no mesmo sentido, sempre assente no incontornável “supremo interesse da
criança", não existe o que me parece mais importante, uma cultura sólida
de protecção das crianças e jovens de que temos exemplos com regularidade.
Poderíamos citar a insuficiência e falta de formação de juízes que se verifica
nos tribunais de Família com enorme morosidade na resolução de situações de
regulação para além de surgirem com alguma regularidade decisões
incompreensíveis em casos de regulação do poder parental ou o silêncio face a
situações conhecidas, etc.
Por outro lado, as condições de
funcionamento as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens ou dos Núcleos de
Infância e Juventude do Centro Distritais de Segurança Social que procuram
fazer um trabalho eficaz estão longe de ser as mais eficazes e operam em
circunstâncias difíceis como o trabalho hoje divulgado com vários exemplos
mostra claramente.
Na sua grande maioria as
Comissões têm responsabilidades sobre um número de situações de risco ou
comprovadas que transcendem a sua capacidade de resposta. A parte mais
operacional das Comissões, a designada Comissão restrita, tem muitos técnicos a
tempo parcial e foram conhecidos recente mente casos de técnicos da Segurança
Social que integravam Comissões e foram dispensadas para
"requalificação", ou seja, despedimento. Tal dificuldade
repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido,
independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram.
Este cenário permite que ocorram
situações, frequentemente com contornos dramáticos, envolvendo crianças e
jovens que, sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não tinham, ou
não tiveram, o apoio e os procedimentos necessários. Sublinho que neste
universo intervêm diferentes entidades. Ainda acontece que depois de alguns
episódios mais graves se oiça uma expressão que me deixa particularmente
incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada” o que foi
insuficiente para a adequada intervenção. Em Portugal sinalizamos e
referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é minimizar ou
resolver os problemas das crianças referenciadas ou sinalizadas.
Por isso, sendo importante
registar uma aparente menor tolerância da comunidade aos maus tratos aos
miúdos e ao seu mal-estar, também será fundamental que desenvolva a sua
intolerância face à ausência de respostas.
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