Escrevi este texto no final da tarde de ontem mas apenas hoje que já não há Natal o divulgo, não queria atrapalhar o espírito natalício, seja lá isso o que for. Na verdade, o Natal não é quando um homem quiser.
A não ser num exercício romântico em torno da ideia do clochard francês que escolhe a rua como acto de resistência e projecto de vida, o sem-abrigo é, por natureza e condição, isso mesmo, um sem-abrigo.
A não ser num exercício romântico em torno da ideia do clochard francês que escolhe a rua como acto de resistência e projecto de vida, o sem-abrigo é, por natureza e condição, isso mesmo, um sem-abrigo.
Numa sociedade que procura e
promove os níveis de bem-estar que já atingimos e que nunca nos satisfazem, a
falta de um abrigo, é, creio, a mais despojada das condições sendo que modelos
de desenvolvimento e políticas dirigidas a mercados e não a pessoas têm
produzido legiões de desabrigados.
Um abrigo, uma casa, grande ou
pequena, constitui uma espécie de céu protector para cada um de nós. É também
verdade, que não basta o abrigo para ser protector, nas mais das vezes, para
além da falta de abrigo existe um mais sério problema de abandono e solidão.
De vez em quando, por diferentes
razões, agora porque é Natal e as consciências obrigam, descobre-se a
existência de sem-abrigo nas nossas cidades, Então, durante algum tempo,
aparecem ad nauseam notícias e peças
televisivas que "cobrem" iniciativas variadas, almoços, jantares,
distribuição de bens, etc., muitas vezes de um nível intrusivo absolutamente
inaceitável. Já perdi a conta às reportagens sobre os jantares de Natal que estão a ser "oferecidos" a "pobrezinhos" de Lisboa, do Porto e de outras cidades do País.
As entrevistas, de uma forma geral, são obscenas e insultam a dignidade dos entrevistados, "este senhor" ou "esta senhora" que têm uma refeição "muito boa", "estou muito contente", "está tudo muito bem", têm um aspecto lavadinho e composto e agradecem muito a quem lhes oferece tal experiência muito caridosa.
Hoje surgiu um almoço para
sem-abrigo realizado num hotel de luxo em Lisboa com a habitual auscultação das
pessoas que, naturalmente, agradeceram tal privilégio mostrando o seu enorme contentamento.
Não questiono, evidentemente, a
genuína intenção das pessoas e instituições que se disponibilizam para
minimizar dificuldades, muitas delas durante todo o ano, embora o problema não
seja o cobertor mas, fundamentalmente, o abrigo e a solidão. As pessoas e as instituições
desenvolvem um trabalho e um esforço notáveis. A minha questão é o lado
voyeurista e quase predatório com que boa parte da comunicação social,
sobretudo televisiva, trata pessoas a que poucas vezes dedica atenção. As
perguntas e reportagens, sem decoro nem respeito, que esforçados e incompetentes
“profissionais” realizam são quase insultuosas e atentatórias dos direitos das
pessoas. Esta forma de mediatização da pobreza, sazonal como é evidente, é um verdadeiro escândalo que nos deveria envergonhar a todos, a começar pelos (ir)responsáveis editoriais.
As pessoas sem-abrigo,
"só" não têm abrigo, não são adereços fornecidos por uma qualquer
produção para montar espectáculos televisivos. Ainda lhes restará, acredito, o
que ninguém pode perder, a dignidade.
PS – Ainda a propósito das peças
televisivas alusivas ao Natal. Numa das incontornáveis reportagens na Serra da
Estrela, um experimentado e bem informado repórter, ao perceber que a sua
entrevistada era romena, resolveu perguntar, “E lá na Roménia há muitas pistas
de ski ou nem por isso”. Notável.
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