segunda-feira, 1 de junho de 2015

O DIA DOS MIÚDOS

A agenda das consciências determinou para hoje o Dia da Criança. A liturgia variada associada à efeméride vai acontecer, como de costume. As visitas, os passeios, as festas, etc., as idas a espectáculos de todas as naturezas mostrarão uma comunidade preocupada em fazer as crianças felizes, muitas até parecem, outras parecem sofrer o peso de um dia calorento e cansativo. Por questões de calendário muito já ontem aconteceu.
A imprensa fará eco das múltiplas eventos dirigidos às crianças, ouvirá, por uma vez as crianças e produzir-se-ão, certamente, muitos discursos dirigidos aos miúdos e ao seu mundo. 
Claro, neste dia, ouvi-las sobre o que pensam do mundo, do seu mundo e da vida das pessoas, é "giro". É verdade que passa depressa, amanhã já não as ouvimos sobre o que as inquieta e lá voltam os miúdos, muitos, a gritar e a agitar-se para se fazerem ouvir.
Tudo bem, pois que seja, este tipo de efemérides serve, também, para isso mesmo, a encenação, sempre bem intencionada da preocupação que descansa as consciências
É verdade, felizmente, que muitas crianças vivem felizes, por assim dizer, adoptadas pelos pais, acolhidas pela escola e pela comunidade, são o futuro a crescer.
No entanto e nestas alturas lembro-me com frequência do Mestre Almada que na Cena do Ódio falava sobre, "a Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões". De facto, apesar da vaga de discursos e iniciativas em nome das crianças, muitos passam mal, muito mal, todos sabemos. Não cabem no Dia da Criança.
Não cabem os que diariamente são vítimas de crimes e maus-tratos.
Não cabem muitos dos que vivem numa instituição esperando por uma família que nunca virá.
Não cabem os que, por várias razões, são alvo de discriminação e a quem são negados direitos básicos.
Não cabem os que vivem em famílias que os não desejam e mal os suportam.
Não cabem os que apenas comem o que refeição única na escola lhes possibilita.
Não cabem os que vivem em famílias a quem roubaram a dignidade do trabalho e que, por isso, sobrevivem envergonhadamente.
Não cabem os que a escola não consegue ajudar a construir um futuro a que valha a pena aceder e sofrem políticas educativas pouco amigáveis para os miúdos.
Não cabem os que sofrem de solidão e isolamento sem que se perceba como não estão bem.
Na verdade, estes miúdos de vos acabei agora de falar quase não existem, os que existem são transparentes, às vezes nem os vemos. Por isso, comemora-se o Dia Mundial da Criança com a convicção ingénua ou voluntarista de que, como dizia Pessoa, "o melhor do mundo são as crianças" e que elas são felizes, todas.
O que, obviamente, não é verdade. 

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