A peça do Público sobre o abaixamento
das refeições consumidas nos refeItórios universitários e o regresso da
"marmita" com o almoço trazido
de casa, outro sinal dos tempos, recordou-me
um longínquo episódio que carrego num cantinho da mochila e de que não me
orgulho particularmente.
Tendo terminado a 4ª classe e não
havendo liceu oficial na margem sul, o Externato Frei Luís de Sousa era
inacessível, os meus pais entenderam que com 9 anos era complicado ir para
Lisboa, não havia ainda a ponte sobre o Tejo e a escola mais perto dos barcos era o velho
Passos Manuel. Assim, com ajuda de uns familiares mais “letrados”, encontraram
uma antiga professora que fazia “ensino doméstico” em Almada com um grupo
pequeno que estava oficialmente matriculado no Liceu Camões, onde fomos fazer
os exames do 1º ciclo do liceu como alunos externos onde, curiosamente, estive há pouco tempo num encontro com professores.
Mesmo assim era uma experiência.
Apanhava um autocarro para Cacilhas e um outro para Almada descendo na zona
“nobre”, mesmo à beira do mítico Café Central onde viria a fazer boa parte do
meu percurso estudantil. Acontece ainda que essa paragem era das mais
frequentadas de Almada tendo sempre gente.
Quase à porta do Central, com
público garantido, estavam reunidos os ingredientes necessários para uma bela
exibição da rapaziada em crescimento no corpo e no juízo, descer dos autocarros
com estes ainda em andamento.
Com alguma imodéstia, não era mau
na performance e a adrenalina da assistência fazia desafiar a velocidade do
desempenho.
Claro que a coisa um dia correu
mal. Como de costume, abri a porta dos velhos autocarros da Piedense, olhei
para a potencial plateia, antecipei o aplauso e lancei-me. Faltou velocidade e
cumprimento nas pernas e o resultado foi lastimável. Espalhei-me ao comprido.
Quando olhei para o meu lado estava o saco donde escorria a sopa que levava
para o almoço, comer fora era um luxo. Usava uma daquelas marmitas antigas de
“dois andares” encaixados, um para a sopa e outro para o “conduto”, também ele
a sair do saco misturado com a sopa e eu com as calças rasgadas, joelhos e mãos
a sangrar, a olhar de soslaio para a assistência, esperando ouvir a todo o
momento um monumental assobio pela actuação desastrada.
Juntos os cacos do almoço e da
minha auto-estima estilhaçada e reprimindo as lágrimas que as esfoladelas
sérias de joelhos e mãos pediam, afastei-me com um ar que, quero acreditar,
convenceu aquela a gente a não patear o infortunado artista.
Embora actualmente não passe com
regularidade por ali, quando o faço, sinto ainda que estão a olhar para mim e
para a minha marmita e aberta com o meu almoço espalhado pelo chão.
Inconscientemente, ando um
bocadinho mais depressa.
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