Devo dizer que sou um privilegiado. Nas deslocações diárias para Lisboa utilizo quase que exclusivamente a mota. Tal possibilidade, para um suburbano da margem sul é uma vantagem extraordinária, poupa quilómetros de fila e toneladas de impaciência. Por outro lado, tem a desvantagem de nos transformar aos olhos de algumas pessoas, já me aconteceu ser assim abordado, em jovens inconscientes e potencialmente delinquentes e ser objecto de um pouco cristão olhar de inveja de automobilistas engarrafados e de engaiolados olhares de ocupantes de autocarros.
No entanto, hoje, assustado com a carga de água que desabava quando me preparava para sair, pensei para comigo, aqui está uma boa ocasião para ir visitar o povo, isto é, decidi usar os transportes públicos. E fui.
Primeiro o comboio e depois o metro. Achei ambas as experiências muito interessantes. Numa altura em que tanto se fala de frieza social e na falta de calor humano, apesar do aquecimento global, fiquei agradavelmente surpreendido com o aconchego encontrado. Muita gente, muito juntinha, aquecimento ligado, um ambiente de estufa. Estranhamente as flores que viajavam tinham um ar um bocado murcho.
Quem acha que, como latinos, somos um povo alegre, nunca nos viu dentro dos transportes públicos ao início da manhã. Até gente bonita fica quase feia. Provavelmente, tanta quentura e aconchego derretem a boa disposição.
Parece-me também muito curiosa e algo inesperada a quantidade de gente que ia debaixo de uns fones, sobretudo porque muitas pessoas não eram jovens, habitualmente mais ligados a esta prática. Não consegui perceber se os fones eram um sinal do tipo, “Do not disturb” que se colocam nas portas dos quartos de hotel, ou, mais prosaicamente, a afirmação de que as pessoas não dispensam companhia musical.
Outro aspecto interessante, a quantidade de gente que via a utilizar o telemóvel, na maioria dos casos, sem ser para realizar chamadas, escreviam mensagens, acho eu, freneticamente. Tal comportamento destinar-se-á, creio, a compensar o facto de que, entre os fones, o ar sorumbático e fechado e ninguém falar com ninguém, restará procurar interlocutores fora dali, os destinatários das mensagens.
Algumas pessoas, poucas, liam livros ou jornais, os gratuitos sobretudo. Num banco à minha frente, no metro, uma senhora, pertencente, como agora se diz, a uma minoria étnica, de corta-unhas em punho, procedia a um cuidadoso e empenhado aparar das ditas. Finda a tarefa, sacode-se, retira da mala um frasco com cujo conteúdo esfrega as mãos e adormece rapidamente. Por efeito de contágio ou pela quentura de tanto aconchego, acho que também passei pelas brasas.
Dei comigo a sonhar que estava na minha mota, num dia lindo, a atravessar a ponte sem trânsito.