segunda-feira, 10 de abril de 2017

OUVIR A CRIANÇA

No DN está uma referência a uma matéria que certamente passará despercebida à maioria das pessoas embora todos conheçamos o universo em que se inscreve. A peça fala de uma experiência em curso no Porto de substituir o juiz a entrevista a crianças vítimas de abuso sexual para o registo de declarações para memória futura por psicólogo com formação nesta área.
Como seria de esperar do lado dos juízes surgem algumas críticas e até com o argumento da ilegalidade.
Para o peditório do “quintal é meu” associado à chamada “doença do território” que afecta tanta gente em Portugal já não tenho paciência, apenas umas notas breves em nome dessa entidade abstracta que deveria dar cobertura a tudo o que diz respeito aos mais novos, o superior interesse da criança.
É reconhecido que a entrevista e avaliação a crianças em situação de sofrimento, abusos, regulação parental, violência doméstica, etc., é algo de muito complexo e difícil podendo mesmo induzir mais sofrimento. Também sabemos que mesmo em idades mais novas e nas circunstâncias adequadas as crianças são capazes de exprimir juízos sobre a sua realidade e contexto de vida.
É requerido, por isso, que esta tarefa seja desempenhada por alguém devidamente preparado para a realizar.
Sabendo que de acordo com um recente (já deste ano) acórdão do Supremo Tribunal de Justiça vem determinar que TODAS as crianças devem ser ouvidas no âmbito dos processos judiciais de promoção e protecção que as envolvam. A lei estabelecia que já era obrigatório ouvir a criança a partir dos doze anos mas agora será sempre obrigatório. Quando pela idade ou por outra razão assim não aconteça o juiz responsável deverá justificar formalmente por escrito a decisão.
Segundo o Acórdão, “A criança ou o jovem tem direito a ser ouvido individualmente ou acompanhado pelos pais, pelo representante legal, por advogado da sua escolha ou oficioso ou por pessoa da sua confiança”. Mais determina que “A falta de audição da criança afeta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva.”
Na verdade e como disse na altura, pareceu-me um passo muito significativo no cumprimento de um direito das crianças, a voz sobre matérias que a envolvem e que, aliás, está inscrito na Convenção dos Direitos da Criança.
Esta circunstância veio reforçar a importância da forma como se ouve a voz da criança.
Recordo que há pouco tempo o Instituto de Segurança Social lançou dois manuais, “Manual da Audição da Criança” e o “Manual de Audição Técnica Especializada”, que pretendem constituir uma ferramenta de apoio aos técnicos envolvidos em processos conflituosos de separação parental em que estão crianças e não raras vezes em processo de sofrimento significativo, tal como, aliás, os adultos.
Aliás, recordo que há algum tempo o Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados tomou a iniciativa de distribuir pelos tribunais de Família e Menores exemplares de um livro destinado a ajudar magistrados, procuradores e advogados a realizar de forma adequada audições a crianças no âmbito de processos de regulação parental.
Na verdade, esta atenção à criança e às circunstâncias em que muitas crianças são ouvidas e recebidas devido a questões processuais e de investigação quase que configuram uma nova situação de vitimização ou são percebidas como ameaçadoras e intimidantes. Recordo, por exemplo, sucessivas audições de crianças vítimas de abuso sexual, situação que creio atenuada, mas não resolvida, com os depoimentos para memória futura, hoje em discussão na notícia que justifica estas notas, ou ainda o contacto com os agressores. Quase parece dispensável a necessidade de referir como é violento e capaz de deixar marcas profundíssimas solicitar a uma criança que repetidas vezes relate, relembre e "viva" a situação dramática porque passou, o que significa, certamente, um novo abuso.
Acresce às questões processuais que podem ser, na verdade, outra experiência de violência, a importância do contexto de acolhimento, espaço onde ocorre e a preparação de quem recebe as crianças, nos diferentes serviços.
Acresce ainda que são conhecidas decisões judiciais em matéria de família e direitos das pessoas, já aqui citei algumas, que me fazem interrogar por onde andará o juízo de alguns juízes embora, deve dizer-se, sejam também conhecidas boas práticas de outros magistrados.
Neste contexto, creio que qualquer iniciativa que possa resultar em mais e melhor protecção das crianças parece-me um passo positivo.

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