terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A SECA SEVERA

De há uns dias para cá e sobretudo hoje, começaram a chover referências à seca que estamos a atravessar e às eventuais consequências de tempos que se prevêem continuar secos.
É verdade, no meu Alentejo, os campos estão rasos de pasto e a gente começa a olhar para o céu à procura das nuvens que tragam a água que faz crescer. A coisa não está ainda especialmente grave porque os dois invernos passados foram chovidos, bem chovidos, e as barragens ainda se aguentam.
No entanto, a seca severa que atravessamos e o risco de seca extrema que poderemos enfrentar não é só de natureza meteorológica. Estamos em seca severa em várias outras dimensões que nos respeitam, ou desrespeitam, conforme a leitura.
Seca-se a esperança e a confiança em dias melhores medrando neste terreno a desesperança.
Seca-se a possibilidade de um emprego que garanta o sustento e a dignidade de um projecto de vida, sobretudo entre os mais novos.
Seca-se a possibilidade de um fim de vida tranquilo para milhares de pessoas que depois de uma vida encharcada em sacrifícios se debatem com uma velhice que continua assim mesmo e, portanto, seca de bem-estar.
Seca-se a ideia de que as políticas são ferramentas de promoção da qualidade de vida, do bem-estar e não um conjunto de modelos e procedimentos de promoção de exclusão e pobreza, garantindo os dividendos de um deus mercado dominado por meia dúzia que não abdica de privilégios obscenos.
Seca-se a fonte da ética e da moral, principais reguladores de comunidades desenvolvidas.
É, na verdade, estamos em tempo de seca severa.
Vou espreitar o céu com a esperança de ver as nuvens que irão chegar com a água que lava e faz crescer, a terra e a gente.

O PILHA GALINHAS FOI CONDENADO. E os outros?

Quando nos começávamos a habituar ao roubo a sério, aos muitos milhões, protagonizado por gente "séria", administradores, políticos ou gestores, por exemplo, está em recuperação um país de pilha galinhas, o do pequeno roubo. Provavelmente mais um efeito colateral da crise.
Através do Público ficamos a conhecer o epílogo da aventura de um empreendedor que, lembrando-se certamente das palavras de Belmiro de Azevedo sobre a legitimidade moral do roubo quando se tem fome, dirigiu-se ao Pingo Doce, aqui parece-me claramente uma atitude de protesto cívico e politico, e roubou um champô e uma embalagem de polvo no astronómico montante de 25.66€. O eficiente segurança caçou-o, recuperou a mercadoria roubada e agora o empreendedor chegou a tribunal. Está certo, roubar é feio e não depende do montante. A sentença agora conhecida condenou o perigoso bandido ao pagamento de 250 € ou, em alternativa, a prestação de trabalho comunitário. Dirão que se fez justiça no país da injustiça.
Estando nós mais habituados a uma actividade nesta actividade, o roubo, realizada na escala dos milhões, muitos, que voam da banca, de empresas em falências fraudulentas, em comissões mal explicadas, em inconsequentes derrapagens financeiras nas obras públicas sendo ainda que tudo isto se passa na maior das impunidades é, devo confessar, sempre com alguma perplexidade que vejo a captura, julgamento e condenação destes bandidos saqueadores e perigosos enquanto os seus colegas de actividade, mas de outra dimensão, de outra escala, se passeiam por aí dedicando-se à sua lucrativa arte. Esta situação é semelhante há que ocorreu há algum tempo, envolvendo um sem-abrigo que roubou seis chocolates de um supermercado da cadeia Lidl, é a concorrência, e que também chegou a julgamento.
É importante que estes casos cheguem a julgamento e sejam severamente condenados para, por um lado, alimentar a ideia de que a justiça funciona e, por outro lado, devolver-nos um sentimento de confiança nessa justiça e de que percepção de impunidade instalada é, evidentemente, falsa.
Com este regresso dos pilhas galinhas damos mais um passo na desejada democratização da nossa economia, roubam todos, é apenas uma questão de escala.
Numa nota final confesso que sinto uma adolescente e romântica simpatia pelos pilha galinhas.

JUSTIÇA ADIADA

Ficámos hoje a saber que o Governo negociou com a troika a necessidade de mais tempo para a introdução de reformas no âmbito da justiça. Não vou discutir questões de natureza técnica, para as quais não estou preparado mas acho curioso que a tentativa de adiar alguma matéria no negócio imposto pela troika tenha sido justamente a justiça, sendo ainda que em várias outras matérias o governo tem sido, como se costuma dizer, mais troikista que a troika.
Recordo que há poucos dias a Ministra da Justiça afirmou que em Portugal "ainda existe uma justiça para ricos e uma justiça para pobres". Esta afirmação apenas surpreende por vir da ... responsável pela justiça em Portugal o que não quer, evidentemente, significar da responsável pelo estado a que a justiça em Portugal chegou.
Muitas vezes tenho referido no Atenta Inquietude que uma das dimensões fundamentais para uma cidadania de qualidade é a confiança no sistema de justiça. É imprescindível que cada um de nós sinta confiança na administração equitativa, justa e célere da justiça. Assim sendo, a forma como é percebida a justiça em Portugal, forte com os fracos, fraca com os fortes, lenta, mergulhada em conflitualidade com origem nos interesses corporativos e nos equilíbrios da partidocracia vigente constitui uma das maiores fragilidades da nossa vida colectiva.
Em 2009, a prescrição evitou a condenação de 1489 arguidos já condenados em primeira instância. Não se estranha, são recorrentes a demora, a manha nos processos judiciais com a utilização de legislação complexa, ineficaz e cirurgicamente construída para ser manhosamente usada por quem a construiu que, com base em expedientes dilatórios, promove a injustiça, ou seja, é uma justiça manifestamente marcada pelas desigualdades de tratamento como a Ministra referiu, etc.
Parece-me ainda de relembrar um relatório de 2011, creio, da Comissão Europeia para a Eficácia da Justiça no âmbito do Conselho da Europa com alguns dados interessantes e a não esquecer e de que recordo dois indicadores. A seguir à Itália somos o país com a justiça mais lenta entre os 45 países considerados. Um processo demora em média cerca de 430 dias a ser resolvido. Um outro dado significativo e muito curioso é que somos um dos países com um rácio maior de profissionais de justiça por 100 000 habitantes, 294,9, (envolve juízes, advogados, procuradores e notários). É notável, este facto transmite a ideia que esta gente toda se atropela, engarrafando processos e procedimentos.
Finalmente, a maior preocupação decorre da percepção de que ninguém parece verdadeiramente interessado em alterar este quadro apesar da retórica das afirmações. Sofrem os cidadãos individualmente e sofre a qualidade da vida cívica de um país que percebe o seu sistema de justiça como forte com os fracos, fraco com os fortes, moroso, ineficaz e, definitivamente injusto. É mau, muito mau.
A reforma do sistema de justiça é uma das componentes do programa estabelecido pela "troika". Pode ser que por imposição estrangeira, aí costumamos ser bons alunos, alguma mudança significativa possa ocorrer.
Para já, adiamos as reformas. Estamos no bom caminho.

O MILAGRE. Outro diálogo improvável

Um dia destes o Tiago ia a correr, como é seu hábito, pelo átrio da escola e quase ia chocando com o Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros.
Olá Tiago, por pouco não vinhas contra mim. Olha que se a gente choca e eu caio, já me custa levantar, tinhas que me ajudar.
Vinha distraído Velho, desculpa lá. Ia ver se via o meu amigo Ricardo para combinar uma coisa com ele antes da aula começar.
Por falar na aula, como é que as coisas estão a correr este ano Tiago?
Mais ou menos. Velho tu acreditas em milagres?
Devo dizer-te que não, não acredito em milagres. Porque perguntas isso?
É que eu também não acredito em milagres e a Setôra de Inglês, que é a DT disse que, quase de certeza, só por milagre é que eu passava o ano. Estou tramado.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

(SOBRE)VIVÊNCIA

As notícias sobre o impacto da situação que atravessamos sucedem-se. De acordo com o Público, o Instituto de Segurança Social está sem dinheiro para atribuir subsídios eventuais a pessoas em situação de grave carência. Este tipo de apoio pode ser disponibilizado a quem tem um rendimento per capita inferior ao valor da pensão social, 189,52 euros.
Há poucos dias, de acordo com o IEFP, soubemos que o número de casais em que ambos estão desempregados subiu em Dezembro 9,9 % e durante 2011 a subida foi de 49,9% o que é verdadeiramente significativo e preocupante.
Sabe-se também que é crescente o número de desempregados que não auferem subsídio de desemprego e que se estima em perto de meio milhão. Este número estará em crescimento pois começa a esgotar-se o período em que se usufrui de subsídio, entretanto encurtado, envolvendo as pessoas que caíram no desemprego a partir de 2009, o ano em que os aspectos mais gravosos da crise nos começaram a atingir. Acresce que os valores médios de subsídio de desemprego também estão a baixar.
Há tempos foram divulgados alguns dados referindo que cerca de 200 000 pessoas já terão desistido de procurar emprego, já não constam dos números do desemprego, e calcula-se que 84% dos jovens com menos de 25 anos estão desempregados e não têm subsídio.
Esta quadro impressionante levanta uma terrível e angustiante questão. Os milhares, muitos, de pessoas envolvidas vão (sobre)viver de quê?
Retomo notas de um texto recente. Afirmo com frequência que uma das consequências menos quantificável das dificuldades económicas, sobretudo do desemprego, em particular o de longa duração e de situações em que o tempo obriga a perder o subsídio, é o roubo da dignidade às pessoas envolvidas. Sabemos que se verifica oportunismo e fraude no acesso aos apoios sociais, mas a esmagadora maioria das pessoas sentem a sua dignidade ameaçada quando está em causa a sobrevivência a que só se acede pela “mão estendida” que envergonha, exactamente por uma questão de dignidade roubada.
A pobreza e a exclusão deveriam envergonhar-nos a todos, a começar por quem lidera, representam o maior falhanço das sociedades actuais que evidenciam assimetrias sociais verdadeiramente insustentáveis. A União Europeia, em relatório recente, já afirmou que as medidas de austeridade tomadas em Portugal acentuam as assimetrias sociais.
A liderança que transforma é uma liderança com responsabilidade social e com sentido ético, dimensão em desuso nos tempos que correm. Não é raro assistir a discursos e afirmações que revelam uma insultuosa insensibilidade face às dificuldades das famílias.

OS PERGUNTADEIROS

O Velho Marrafa que trabalha comigo lá no monte, no Meu Alentejo, tem uma particularidade que me diverte e me faz meter com ele para ficarmos nas lérias. Detesta que lhe perguntem se sabe fazer qualquer coisa. É claro que só para ver aqueles olhos a brilhar, lhe pergunto amiúde antes de qualquer tarefa se ele a saberá fazer. Percebe que é mangação e já não liga.
Explicou-me que ter aprendido a fazer tanta coisa dentro daquela lida e que o levou a mil ofícios, sempre me espanta o que ele sabe e fez na vida, se deve a ter sido sempre muito perguntadeiro, desde gaiato, quando começou a trabalhar aos nove anos a guardar porcos.
Diz ele que estava sempre a fazer perguntas, às vezes até aborrecia as pessoas, mas queria saber tudo e como é que tudo se fazia.
O Velho Marrafa tem razão, a gente aprende mais quando faz perguntas.
No entanto, temos vindo a entrar num tempo em que parece que as perguntas caíram em desuso, toda a gente tem respostas, toda a gente tem a verdade das coisas, não temos paciência para ouvir as perguntas, queremos dar respostas. Mesmo nas escolas em muitas salas de aula, as perguntas nem sempre são bem recebidas, os alunos estão para saber respostas, não para fazer perguntas. Os miúdos, sem terem feito perguntas, muitas vezes não sabem o que fazer com as respostas.
Acho mesmo que só alguns perguntadores profissionais, gente que se dedica à investigação ainda faz da pergunta a ferramenta para encontrar respostas.
Nós, a grande maioria, estamos a desistir das pergunta, queremos respostas.
O problema é que dar respostas sem fazer perguntas, só por acaso é que se acerta.
Há que ser perguntadeiro, como diz o Velho Marrafa que só estudou até à terceira classe.

domingo, 29 de janeiro de 2012

NOVOS POBRES

A propósito do lançamento de um novo livro de Elísio Estanque, o Público refere-se às dificuldades que afectam grupos sociais que se julgavam defendidos e imunes ao risco de pobreza, são os "novos pobres". O sociólogo alerta para o risco de "implosão" da classe média, algo de verdadeiramente preocupante.
Curiosamente, há algum tempo atrás escrevi para este espaço um texto que, por coincidência, titulei "Novos pobres" do qual retomo algumas notas que me parecem oportunas.
De facto, temos vindo a assistir à emergência de "novos pobres", muitos milhares de pessoas que apesar de terem emprego têm salários extremamente baixos e que, mercê dos cortes e aumentos realizados e prometidos, se sentem e vivem numa condição de pobreza não antecipada pelo que cresceram exponencialmente os casos do que se pode chamar de “pobreza envergonhada”, devido, naturalmente, aos níveis de desemprego mas também decorrentes, à falta de qualidade do emprego, aumento de impostos e perdas salariais. São pessoas que se julgavam a coberto deste tipo de riscos e que sentem um embaraço pessoal e social enorme para assumir as dificuldades porque passam.
Este cenário é absolutamente extraordinário. Para além das consequências óbvias das dificuldades ainda se torna necessário, como várias vezes aqui tenho referido, acautelar a dignidade das pessoas afectadas. De facto, umas das consequências menos quantificável das dificuldades económicas, é o roubo da dignidade às pessoas envolvidas. Sabemos que se verifica oportunismo e fraude no acesso aos apoios sociais, mas a esmagadora maioria das pessoas sentem a sua dignidade ameaçada quando está em causa a sobrevivência a que só se acede pela “mão estendida” que envergonha, exactamente por uma questão de dignidade roubada.
É neste quadro, a forma como a dignidade está ameaçada, para além do óbvio impacto na qualidade de vida das pessoas que me parece importante e pertinente a reflexão hoje divulgada.
A questão da pobreza é um terreno que se presta a discursos fáceis de natureza populista e ou demagógica, sem dúvida. Mas também não tenho dúvidas de que os problemas gravíssimos de pobreza que perto de dois milhões de portugueses sentem e o facto também conhecido de que um terço das famílias têm um orçamento encostado ao limiar de pobreza, exigem uma recentração de prioridades e políticas que não se vislumbra.
A envergonhada pobreza deveria envergonhar-nos a todos, a começar por quem lidera. A questão da pobreza tem uma dimensão ética incontornável a que as lideranças responsáveis e preocupadas com as pessoas e não com os mercados, não poderiam deixar de estar atentas.

OS PAIS CARREGAM OS FILHOS ÀS COSTAS

Em primeira página no JN pode ler-se, "Escola sem elevador obriga mãe a carregar filho às costas". Bom, pensei, carregar o filho às costas pode fazer parte do que costumo chamar de "trabalho de mãe", pelo que não percebi muito bem o porquê da notícia, para mais em primeira página.
A questão, a leitura da notícia esclarece, é que o gaiato usa cadeira de rodas e o elevador da escola, em Gondomar, está avariado há três meses, isso mesmo, há três meses. Para que o filho continue a frequentar as aulas a mãe carrega-o às costas. Não é grave, mãe é para isso mesmo e o exercício dá saúde.
Este episódio junta-se a um outro também curioso. Uma escola pública de Lisboa passou a exigir aos pais de uma menina com deficiência e que, segundo relatórios de avaliação, precisa de terapia da fala, o pagamento à hora pela utilização de um espaço da escola onde a terapeuta, paga pelos pais, pudesse apoiar a criança. A Directora da Escola, num discurso de enorme sensibilidade e lucidez, esclarece que terapia não é educação, que “é um problema pessoal de logística dos pais, a quem dá jeito deixar a criança na escola e que a terapeuta lá se desloque”, acrescentando, “Isto é o mesmo que eu precisar de uma costureira para me arranjar a roupa e pô-la a trabalhar aqui na escola”. Não é grave que a senhora diga isto, trata-se de liberdade de opinião, é grave que seja directora de uma escola alguém com esta visão e capacidade de entendimento dos problemas de miúdos e pais. Também aqui a escola entende que os pais devem carregar os filhos às costas, é para isso que são pais.
Devo dizer, e não me orgulho disso, de que nenhum destes episódios me surpreende.
As crianças com necessidades especiais, as suas famílias e muitos dos professores e técnicos sabem, sobretudo sentem, um conjunto enorme de dificuldades para, no fundo, garantir não mais do que algo básico e garantido constitucionalmente, o direito à educação e tanto, quanto possível, junto das crianças da mesma faixa etária. É assim que as comunidades estão organizadas, pelo que não representa nada de extraordinário e muito menos um privilégio.
Como é evidente, em situações de dificuldade económica, as minorias, são sempre mais vulneráveis, falta-lhes voz.
Como sempre afirmo, os níveis de desenvolvimento das comunidades também se aferem pela forma como cuidam das minorias. Lamentavelmente, estamos num tempo que em que desenvolvimento se confunde com mercados bem sucedidos.

É APENAS FUMAÇA

Acho muito interessantes estas "notícias" dando conta da vontade de alguns "cavaquistas", ver Presidente da República, de que o Ministro Vítor Gaspar fosse substituído devido ao desacordo com as políticas de "austeridade" desenvolvidas pelo Ministro.
Do meu ponto de vista não passa de um "fait divers" inconsequente e obedece à pequenina política.
Em primeiro lugar a responsabilidade da política em curso, global e sectorial é, só pode ser, da responsabilidade do Primeiro-ministro. Donde, a acontecer, a discordância com as políticas em desenvolvimento passaria por exprimir isso mesmo e não "sugerir" a eventual substituição do ministro. No entanto, se assim fosse, o alvo teria que ser o Primeiro-ministro e os "cavaquistas" teriam de levantar a questão da governação, coisa que obviamente, não farão.
Por outro lado, creio que a posição do Presidente da República nunca esteve tão fragilizada socialmente como agora. Como dizia o insuspeito Carlos Abreu Amorim, Cavaco Silva acerta quando está calado e as últimas intervenções públicas de Cavaco Silva foram desastradas e insultuosas no seu conteúdo o que o fragilizou e retirou peso político.
Neste cenário, parece oportuno que o país, o cidadão comum, saiba que o Presidente está preocupado com a austeridade e até veria com bons olhos a substituição do Ministro das Finanças algo que, parece claro, é improvável, nos tempos mais próximos a não ser num caso extremo de grande conflitualidade que evidentemente, os "cavaquistas" também não querem.
Percebe-se assim como no Público, os amigos são para as ocasiões, aparece a "noticia" de 1ª página, "Cavaquistas querem que Vítor Gaspar saia".
Querem mesmo?

sábado, 28 de janeiro de 2012

DESEMPREGO E DESESPERANÇA

Segundo o I e com dados do IEFP, o número de casais em que ambos estão desempregados subiu em Dezembro 9,9 % e durante 2011 a subida foi de 49,9% o que é verdadeiramente significativo e preocupante.
Sabe-se também que é crescente o número de desempregados que não auferem subsídio de desemprego e que se estima em perto de meio milhão. Este número estará em crescimento pois começa a esgotar-se o período em que se usufrui de subsídio, entretanto encurtado, envolvendo as pessoas que caíram no desemprego a partir de 2009, o ano em que os aspectos mais gravosos da crise nos começaram a atingir. Acresce que os valores médios de subsídio de desemprego também estão a baixar.
Há tempos foram divulgados alguns dados referindo-se que cerca de 200 000 pessoas já terão desistido de procurar emprego e já não constam dos números do desemprego. Estas pessoas inactivas, devido à idade ou à falta de habilitações e em situação de desesperança, aumentariam, se fossem contabilizadas, a taxa de desemprego para 15,5% sabendo-se ainda, dados recentes, que 84% dos jovens com menos de 25 anos estão desempregados e não têm subsídio.
Esta quadro impressionante levanta uma terrível e angustiante questão. Os milhares, muitos, de pessoas envolvidas vão (sobre)viver de quê?
Sendo de esperar um período recessivo e, portanto, sem crescimento, torna-se impossível criar a riqueza necessária e redistribuí-la de forma socialmente mais justa para minimizar esta tragédia.
É certo que em Portugal a chamada economia paralela corresponde a cerca de 24% do PIB e muita gente e muitas actividades estão envolvidas neste universo, de qualquer forma o potencial impacto social destes números é, no mínimo, inquietante.
Afirmo com frequência que uma das consequências menos quantificável das dificuldades económicas, sobretudo do desemprego, em particular o de longa duração e de situações em que o tempo obriga a perder o subsídio, é o roubo da dignidade às pessoas envolvidas. Sabemos que se verifica oportunismo e fraude no acesso aos apoios sociais, mas a esmagadora maioria das pessoas sentem a sua dignidade ameaçada quando está em causa a sobrevivência a que só se acede pela “mão estendida” que envergonha, exactamente por uma questão de dignidade roubada.
A questão da pobreza é um terreno que se presta a discursos fáceis de natureza populista e ou demagógica, sem dúvida. Mas também não tenho dúvidas de que os problemas gravíssimos de pobreza que perto de dois milhões de portugueses conhecem, exigem uma recentração de prioridades e políticas que não se vislumbra. De forma quase insultuosa e obscena alguns governantes insistem, no "não está bem, mude-se, pire-se, emigre" e até já ouvimos referências a “abandonar a sua zona de conforto". Zona de conforto?! Sem presente e sem futuro, zona de conforto?! Tenham tento e respeito pela dignidade, coisa que está em extinção.
A pobreza e a exclusão deveriam envergonhar-nos a todos, a começar por quem lidera, representam o maior falhanço das sociedades actuais.
A liderança que transforma é uma liderança com responsabilidade social e com sentido ético, dimensão em desuso nos tempos que correm.

O RAPAZ QUE NÃO GOSTAVA DE REGRAS

Era uma vez um Rapaz. Era ainda pequeno, e não havia naquela escola rapaz mais avesso às regras. Nas mais das vezes, não lhes ligava. Os professores, vá lá saber-se porquê, não apreciavam particularmente o estilo. O Rapaz divertia-se.
Um dia, um dos professores contou o Rapaz ao Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros. O Professor Velho pediu para o Rapaz ir falar com ele. Quando chegou, o Professor Velho, dizendo que uma biblioteca serve para estudar e para brincar, convidou-o para brincar, o que deixou o Rapaz mais descansado. Mostrou-lhe quatro jogos, para ele escolher o que mais gostava e melhor sabia jogar. Prepararam-se para começar a jogar.
Rapaz, sabes mesmo como se joga este jogo?
Claro que sei e bem, posso começar?
Podes, mas vamos jogar de outra maneira, mexemos no jogo como queremos, não é preciso esperar pela vez e fazemos no jogo o que nos passa pela cabeça.
Ó Velho, mas assim não se pode jogar.
Pois não Rapaz. Todos os jogos que a gente joga têm regras. De umas gostamos, de outras, dá ideia que o jogo até ficaria mais giro sem elas, de outras ainda, não gostamos, mas não há maneira de jogar sem regras. Agora, vai para a sala e vê lá como é que jogas.
Tenho que saber as regras.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

SINALIZADOS, REFERENCIADOS E ENCAMINHADOS. E depois?

No DN pode ler-se que a linha SOS Criança, a funcionar no âmbito do Instituto de Apoio à Criança, procedeu em 2011 ao encaminhamento de 760 crianças em risco, mais 35% do que no ano anterior, com um registo de 565 casos.
De acordo com o coordenador da Linha, tal acréscimo pode significar que a comunidade está menos tolerante a eventuais maus tratos aos miúdos o que leva, naturalmente, ao aumento das queixas e ao seu encaminhamento.
A minha questão neste contexto é o que a acontece a seguir a esse encaminhamento, qual a resposta para os casos detectados.
De há muito e a propósito de várias questões, que afirmo que em Portugal, apesar de existirem vários dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação no mesmo sentido, sempre assente no incontornável “supremo interesse da criança, não existe o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens. Poderíamos citar a insuficiência e falta de formação de juízes que se verifica nos tribunais de Família, as frequentemente incompreensíveis decisões em casos de regulação do poder parental, etc.
Temos também em funcionamento as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens que procuram fazer um trabalho eficaz mas em difíceis circunstâncias.
Na sua grande maioria as Comissões têm responsabilidades sobre um número de situações de risco ou comprovadas que transcendem a sua capacidade de resposta. A parte mais operacional das Comissões, a designada Comissão restrita, tem muitos técnicos a tempo parcial. Tal dificuldade repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido, independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram.
Este cenário permite que ocorram situações, frequentemente com contornos dramáticos, envolvendo crianças e jovens que, sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não tinham, ou não tiveram, o apoio e os procedimentos necessários. Ouve-se então uma das expressões que me deixam mais incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada” o que foi insuficiente para a adequada intervenção. Em Portugal sinalizamos e referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é minimizar ou resolver os problemas referenciados ou sinalizados.
Por isso, sendo importante registar a menor tolerância da comunidade aos maus tratos aos miúdos, também será importância que desenvolva a sua intolerância face à ausência de respostas.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

CONTA TUDO, OUTRA VEZ

O Público traz hoje para a agenda uma matéria a que muitas vezes me tenho referido e sempre justifica atenção, os maus tratos a menores, em particular, os casos de abuso sexual. De acordo com um estudo realizado e citado na peça, mais de metade, 68.1%, dos casos de abuso sexual de menores que entram nos tribunais portugueses acabam arquivados por falta de provas.
Para além desta situação, já a merecer reflexão, aborda-se uma outra questão que me parece também de extrema importância, a forma como decorrem os processos que envolvem o abuso sexual de crianças.
Na situação em vigor nesta matéria, durante um processo de investigação as crianças vítimas poderão ser ouvidas, por exemplo, oito vezes o que é um assombro. Quase parece dispensável a necessidade de referir como é violento e capaz de deixar marcas profundíssimas solicitar a uma criança que repetidas vezes relate, relembre e "viva" a situação dramática porque passou, o que significa, certamente, um novo abuso.
Embora na fase de julgamento a criança vítima esteja dispensada de declarações, evitando o confronto com o agressor, na fase de inquérito a criança pode, creio, ser ouvida as vezes que o Procurador do Ministério Público entender por bem.
Este cenário não deveria manter-se, de há muito que é urgente a sua alteração. O problema é que, provavelmente, esta questão, o bem estar de miúdos vítimas de abusos, não passa de um irrelevante pormenor no mundo dos problemas que nos afligem. Como tudo na vida é uma questão de prioridades.
Há algum tempo foi noticiado que a Faculdade de Direito de Coimbra estaria a preparar um protocolo a utilizar nos processos envolvendo abuso de crianças de forma a proteger o tão apregoado "supremo interesse da criança" acautelando as questões acima referidas. Não sei qual é ponto de situação face a esta situação embora o arrastar seja grave.
Não é surpreendente, como disse, os problemas dos menores, são problemas menores.

O SOZINHISMO MATA

De forma regular a imprensa tem noticiado a morte de gente, quase sempre idosa, sem que alguém se dê conta de tal tragédia. No Público de hoje refere-se que em Lisboa, desde o início do ano já se verificaram 10 casos de idosos encontrados mortos em casa. Em 2011 registaram-se 79 casos e em 2009 verificaram-se 60.
Não sou, não quero ser, especialista nestas matérias mas creio que muitas destas pessoas morrem de sozinhismo, a doença que ataca os que vivem sós e perderam o amparo. Algumas pessoas terão morrido de solidão e não de outras causas que possam vir a figurar nas certidões.
Quem não vive só mais facilmente resiste às mazelas que a idade traz quase sempre. As pessoas são, espera-se, fonte de saúde e calor. E este universo, as pessoas velhas que vivem só e em isolamento tende a alargar-se conforme os dados do Censo confirmam. Em Lisboa, segundo alguns trabalhos estima-se uma "realidade de total isolamento diário para 59 por cento da população que reside sozinha, evidenciando um risco de solidão”.
Esta é que é verdadeiramente a causa de morte de muitos idosos. Por isso e como sempre, para além das necessárias políticas sociais emergentes do estado e das instituições privadas de solidariedade impõe-se a percepção pelas comunidades, designadamente pelas famílias, do drama da solidão e isolamento. Os dados recolhidos e, portanto, conhecidos devem servir de base a políticas ajustadas à realidade.
Neste âmbito ganha um sentido profundo o Projecto Mais Proximidade Melhor Vida, do Centro Social e Paroquial de São Nicolau, em Lisboa, ou outras acções do mesmo género. Esta iniciativa visa ajudar e apoiar idosos que vivem só, frequentemente em andares elevados e com sérios problemas de mobilidade. Como se perspectivava há alguns dias num trabalho na imprensa, um dos efeitos dos tempos difíceis que atravessamos poderia ser a alteração dos estilos de vida com o incremento das relações de vizinhança e de natureza comunitária. Pode ser que este caminho contribua para que menos gente morra de sozinhismo.
É também uma questão de redes sociais, mas não das virtuais.

O CASO DO BRUNO

(versão A)

O Bruno é uma criança tranquila e sem dificuldades de relação, quer com adultos quer com colegas embora não se envolva em brincadeiras com eles nos espaços de recreio.
Mantém-se sem esforço e tranquilo no seu lugar a realizar as tarefas que lhe são propostas embora nem sempre as consiga cumprir sem ajuda.
O Bruno, não participa activamente nas actividades lúdicas e não se revela muito motivado para tal embora assista sem dificuldade ao seu desenvolvimento.
É de registar que apesar da idade o Bruno se revela ainda dependente para actividades básicas que as crianças da sua idade já realizam de forma autónoma. Tal facto implica que com frequência são os colegas que o ajudam, naturalmente, em algumas tarefas que lhe causam mais dificuldade.
Os pais comparecem habitualmente nas reuniões para que são convocados, ainda revelam dificuldade em aceitar a situação, parecem fazer algum esforço de envolvimento e apoio ao Bruno, mas queixam-se frequentemente de obstáculos e de falta de ajuda.

(versão B)

O Bruno é uma criança com paralisia cerebral, calma e que reage bem quando é interpelado por adulto ou colegas.
Devido às suas enormes dificuldades motoras, usa cadeira, a mobilidade é baixa necessitando de permanente ajuda para deslocações. Quando alguém colabora na deslocação o Bruno gosta de ficar a assistir às brincadeiras dos colegas no recreio. O professor do ensino especial, devido ao número de casos, apenas apoia o Bruno uma vez por semana pelo que ele tenta realizar as mesmas actividades dos colegas o que é difícil apesar de alguma ajuda que também não é fácil devido ao número de alunos na sala.
As dificuldades motoras do Bruno tornam-no bastante dependente e a falta de recursos humanos para o apoiar complica seriamente o seu dia a dia na escola. Por vezes é necessário ajuda dos colegas.
Os pais, embora sempre presentes, revelam-se muito ansiosos e reivindicativos de mais apoios e ajudas para o Bruno que a escola não tem capacidade para providenciar.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

GENTE PEQUENA E SEM ESPINHA

A relação de boa parte da classe política com a comunicação social tem aspectos muito interessantes e que dadas as actuais circunstâncias do caso da RDP, merecem, de novo, algumas notas.
Se estivermos atentos, reparamos como se serve da comunicação social para a defesa dos seus interesses pessoais, partidários ou institucionais. Nada de novo, sabemos o peso que a comunicação social tem nas sociedades actuais.
O que me parece particularmente irritante é a forma quase infantil, está um pouco na moda este tipo de infeliz comparação mas não resisto, como algumas figuras reagem ao ser abordadas sobre assuntos sobre os quais, por várias razões, não lhes interessa discorrer. Surgem então as afirmações patéticas, “não tenho nada a acrescentar”, “desculpem, não comento”, “não estou aqui para falar dessas matérias,” etc., etc. Desenvolvem assim uma espécie de surdez selectiva, só ouvem o que lhes convém, de mutismo selectivo, só falam do que lhes convém, de cognição selectiva, só conhecem o que lhes convém.
As mesmas figuras que directamente ou através de terceiros, lambem as botas às redacções e aos jornalistas (quanto mais influentes melhor) e esmolam tempo de antena quando tal serve os seus diferentes interesses.
Algumas dessas figuras quando, quase sempre fruto do alpinismo partidário, ascendem a alguma forma de poder conseguem ainda ir mais longe nessa relação com a imprensa, se não lhes agrada calam-na. É um método velho e intemporal.
Devo confessar que tal cenário é, para mim, profundamente irritante e patético, sinto que nos insultam, que nos consideram destituídos, como se por não abordarem as diferentes matérias, elas não se passassem ou não existissem.
Finalmente, incomoda-me uma comunicação social, boa parte dela, passiva e resignada que não confronta as figuras públicas com estes comportamentos, não os denuncia, e que acorrem solícitos quando essas figuras entendem que têm algo a dizer, as mais das vezes, irrelevante. Também lhes convém esta subserviência interesseira que alguns mantêm. Às vezes são recompensados.
Gente pequena e sem espinha, como dizia o meu pai, de um lado e de outro.

A (IN)JUSTIÇA

A Ministra da Justiça afirmou ontem que em Portugal "ainda existe uma justiça para ricos e uma justiça para pobres". Esta afirmação apenas surpreende por vir da ... responsável pela justiça em Portugal o que não quer, evidentemente, significar da responsável pelo estado a que a justiça em Portugal chegou.
Muitas vezes tenho referido no Atenta Inquietude que uma das dimensões fundamentais para uma cidadania de qualidade é a confiança no sistema de justiça. É imprescindível que cada um de nós sinta confiança na administração equitativa, justa e célere da justiça. Assim sendo, a forma como é percebida a justiça em Portugal, forte com os fracos, fraca com os fortes, lenta, mergulhada em conflitualidade com origem nos interesses corporativos e nos equilíbrios da partidocracia vigente constitui uma das maiores fragilidades da nossa vida colectiva.
Em 2009, a prescrição evitou a condenação de 1489 arguidos já condenados em primeira instância. Não se estranha, são recorrentes a demora, a manha nos processos judiciais com a utilização de legislação complexa, ineficaz e cirurgicamente construída para ser manhosamente usada por quem a construiu que, com base em expedientes dilatórios, promove a injustiça, ou seja, é uma justiça manifestamente marcada pelas desigualdades de tratamento como a Ministra referiu, etc.
Parece-me ainda de relembrar um relatório de 2011, creio, da Comissão Europeia para a Eficácia da Justiça no âmbito do Conselho da Europa com alguns dados interessantes e a não esquecer e de que recordo dois indicadores. A seguir à Itália somos o país com a justiça mais lenta entre os 45 países considerados. Um processo demora em média cerca de 430 dias a ser resolvido. Um outro dado significativo e muito curioso é que somos um dos países com um rácio maior de profissionais de justiça por 100 000 habitantes, 294,9, (envolve juízes, advogados, procuradores e notários). É notável, este facto transmite a ideia que esta gente toda se atropela, engarrafando processos e procedimentos.
Finalmente, a maior preocupação decorre da percepção de que ninguém parece verdadeiramente interessado em alterar este quadro apesar da retórica das afirmações. Sofrem os cidadãos individualmente e sofre a qualidade da vida cívica de um país que percebe o seu sistema de justiça como forte com os fracos, fraco com os fortes, moroso, ineficaz e, definitivamente injusto. É mau, muito mau.
A reforma do sistema de justiça é uma das componentes do programa estabelecido pela "troika". Pode ser que por imposição estrangeira, aí costumamos ser bons alunos, alguma mudança significativa possa ocorrer.
Oxalá.

O MIÚDO QUE FAZIA CENAS

Era uma vez um miúdo que fazia cenas, muitas cenas, também lhes chamam birras.
Em casa as coisas estavam quase sempre alteradas com as cenas que o miúdo fazia. Os pais exasperavam-se e achavam que quanto mais se exasperavam mais cenas o miúdo arranjava, para chamar a atenção, diziam eles.
O miúdo tinha até, achavam os pais, o costume de fazer mais cenas quando estavam outras pessoas em casa, sempre para chamar a atenção, o que deixava os pais muito embaraçados.
Um dia, estava o miúdo no meio de mais uma cena, a que eles já nem ligavam, quando tocaram à porta.
Quando a mãe do miúdo abriu viu que era o Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros, que, como lhe ficava em caminho, trouxe um livro que o miúdo tinha deixado esquecido na biblioteca.
Aproveitando a presença do Professor Velho, os pais entenderam por bem falar de todas as cenas que o miúdo fazia, só para chamar a atenção, como fizeram questão de explicar de forma clara.
O Velho ouviu e naquela fala suave que é a dele disse, "Chamar a atenção? Pode ser, talvez não a tenha e precise de a chamar, experimentem dar-lha antes de ele a chamar. E de vez em quando também lhe podem oferecer uns nãos misturados com a atenção".
Quando os pais iam para dizer qualquer coisa, já só ouviram um "Boa tarde" do Professor Velho e a porta do elevador a fechar-se.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O DESPUDOR ANDA À SOLTA

Se bem estão recordados, em Novembro de 2011, João Duque, o responsável do Grupo de Trabalho nomeado pelo Governo para definir serviço público, defendeu que "a bem da Nação”, a informação emitida pela RTP Internacional deve ser “filtrada” e “trabalhada” pelo Governo, acrescentando que este tratamento “não deve ser questionado”.
Creio que já estaremos assistir ao serviço público segundo João Duque em versão Miguel Relvas revista e aumentada. Na RDP comenta-se o que não se deve e da forma que não se deve, acaba-se com os comentários e com os comentadores. Mais nada, a fórmula velha e em retoma de "a bem da Nação".
É só mais um "pequeno" contributo para percebermos porque razão os estudos nos mostram como a democracia está doente e nós descrentes.
O despudor anda à solta. Cada dia temos algo que nos recorda isto mesmo.

A AUTO-ESTIMA DOS PORTUGUESES

É com alguma frequência que nós portugueses, somos classificados como tendo uma baixa auto-estima. Considerando os discursos políticos e passando por referências de natureza psicossociológica, a auto-estima dos portugueses parece pelas ruas da amargura.
Lamento, mas tenho algumas reservas sobre os recorrentes discursos e as conclusões afirmadas.
O Público de hoje refere o facto notável de que cinco cientistas portugueses foram premiados pelo Instituto Médico Howard Hughes, dos Estados Unidos, com montantes no valor de 518.000 euros para a sua investigação, numa lista internacional de 28 premiados reconhecidos por serem “futuros líderes científicos nos seus países”. Tal referência junta-se a várias outras no âmbito de relevante produção, à promoção do prestígio de algumas universidades portuguesas que também se registaram no ano que passou, entre muitas outras obras valorosas com reconhecimento internacional. Este conjunto de referências vai ao encontro da minha tese, não temos baixa auto-estima.
O povo português é justamente considerado um génio no “desenrasca”, “dá-se sempre um jeito, não há-de ser nada”, é assim uma espécie de Macgyver, tudo se resolve. Gente desta tem uma enorme confiança nas suas capacidades.
É um povo que vira histérico atrás do Scolari, da ida do puto Ronaldo, o melhor do mundo, para o Real Madrid e do Professor Doutor José Mourinho, o special one, para Inglaterra, para Itália ou para Espanha, não interessa, é o maior do mundo e sempre ocupa espaço na imprensa.
Este povo até se dá ao luxo de ignorar a excelência do desempenho em áreas como ciência e cultura de outros milhares de portugueses, que estão fora do país e de que quase desconhecemos o sucesso e reconhecimento que atingem. Um povo que dá cabo dos recursos e da paisagem do país sempre confiante de que, assim, é que se promove desenvolvimento. Um povo desta têmpera não é um povo com baixa auto-estima.
Não, definitivamente não, os portugueses, de uma forma geral, gostam de si, têm uma excelente impressão de si próprios. Não gostam é de Portugal, o país é que não está à altura dos portugueses. Daí a falta de orgulho na lusa pátria.

CRECHES ABERTAS AO SÁBADO. E a seguir?

No DN lê-se que algumas creches consideram a hipótese de abrir ao sábado para receber as crianças cujos pais tenham que trabalhar ao sábado em consequência das alterações nas leis laborais.
Começam assim a aparecer algumas das consequências do equívoco instalado de remeter quase que exclusivamente para o tempo de trabalho a questão da produtividade e competitividade, quando as comparações internacionais contrariam a tese. A questão, como já tenho referido, é melhor trabalho e não mais trabalho. As questões relativas ao impacto na vida familiar e na qualidade de vida das pessoas são minudências irrelevantes pois há sempre a possibilidade de abrir creches e escolas ao sábado e, um dia, também durante a noite, situações que, aliás, pontualmente já acontecem. Qual será o limite?

Bom dia, venho apresentar uma queixa.
Com certeza, contra quem?
Contra muita gente.
Será, portanto, contra incertos. E apresenta queixa porquê?
Por roubo, roubaram-me tempo.
Muito bem, então roubaram-lhe tempo. Por favor, pode explicar um pouco melhor para eu poder registar a situação.
Eu já não tinha muito tempo porque nunca fui uma pessoa muito rica de tempo, mas o pouco que tinha roubaram-me. Fiquei sem tempo para estar com os meus filhos e brincar com eles. Este tempo faz-me muita falta, os miúdos andam tristes porque desde que me roubaram o tempo não consigo mesmo. Já não tenho tempo para descansar ou ler qualquer coisa como gostava de fazer. Não tenho tempo descansado para a minha mulher que também precisava do tempo que eu tinha e que partilhava com ela. No meu trabalho não tenho tempo para parar um minuto sem que alguém venha logo chamar a atenção. Fiquei sem o tempo que tinha para beber um copo com os meus amigos e trocar umas lérias que serviam para aliviar das coisas da vida.
Eu percebo o seu problema, mas como deve calcular não tenho tempo para queixas como as que apresenta.
Não tem tempo? Não me diga que também lhe roubaram o tempo. Até às autoridades, é demais.

DESISTÊNCIAS NO ENSINO SUPERIOR. E a mobilidade social?

Num trabalho realizado pelo Público junto de um grupo significativo de estabelecimentos de ensino superior, constata-se que, face a igual período do ano passado, aumentou 6% o número de desistências do ensino superior por efeitos da crise. Esta percentagem corresponde a cerca de 3300 estudantes o que é significativo. As dificuldades económicas, a dificuldade no acesso a bolsas e o aumento de propinas são os motivos identificados. Na linha do que já aqui tenho referido, alguma notas.
Desde o início tenho afirmado que o processo de reforma no ensino superior mais conhecido pela "Reforma de Bolonha" radicou mais em questões económicas que de natureza científica, curricular ou de mobilidade envolvendo estudantes e professores. O encurtamento do chamado grau de licenciatura para três anos e a criação do 2º ciclo, o grau de mestrado, possibilitou que na grande maioria dos cursos passassem a ser as propinas dos alunos a financiar o 2º ciclo.
Neste novo quadro, as instituições de ensino superior público adequaram a sua oferta de 2º ciclo, os mestrados, a esta realidade e entrámos naquilo a que alguns chamam o funcionamento do mercado, através da lei da oferta e da procura em que, acreditam outros, radica a qualidade. É conhecido o elevado custo dos mestrados que em algumas áreas e em algumas instituições podem atingir preços muito elevados.
Seria ingenuidade excessiva não perceber que as leis do mercado, sempre o mercado, teriam de chegar também ao ensino superior público e também entendo que compete a estudantes e famílias uma parte importante no investimento na formação e qualificação profissional.
No entanto, conhecendo o tecido social e cultural português, longe obviamente dos modelos americanos que alguns defendem, temo que esta entrega às leis do mercado e às capacidades das famílias, alimentem algo que é, ainda, uma característica do sistema educativo português e que os relatórios internacionais reconhecem, o baixo impacto da educação na mobilidade social. Dito de outra maneira, os indivíduos com origem em grupos sociais mais favorecidos são os que tendencialmente obtêm melhores níveis de qualificação e repete-se o ciclo. Neste quadro, a redução significativa das bolsas e apoios, as dificuldades enormes que muitas famílias atravessam e o desemprego mais elevado entre os jovens, que poderia constituir uma pressão para continuar os estudos, a que acrescem as elevadas propinas, designadamente no 2º ciclo, tornam ainda mais difícil a realização de percursos escolares que promovam mobilidade social e que se traduz, por exemplo, no aumento das desistências.
Quando se espera e entende que a minimização das assimetrias possa, também, depender da educação e qualificação, o seu preço, longe de as combater, alimenta-as.
É preocupante.

A MINHA FAMÍLIA

Numa das primeiras aulas, a professora de Língua Portuguesa, nova naquela escola, pediu aos alunos para que escrevessem um pequeno texto sobre a família. Assim, disse a professora, ficava a conhecê-los um pouco melhor.
Uns dias depois, com os textos já corrigidos devolveu-os alunos pedindo ao Rodrigo, um aluno também ele novo naquele grupo, que lesse o dele porque o achou bonito.
O Rodrigo ficou um bocado embaraçado e numa voz algo hesitante leu o pequeno texto que tinha escrito, "Eu moro numa casa que não é muito grande, nem é muito pequena, com os meus pais e com os meus irmãos. Os meus pais trabalham mas não chegam muito tarde. Eu e os meus irmãos brincamos depois de chegar a casa e quando vem o meu pai a gente joga à bola com ele no parque em frente da nossa casa. Depois de jantar, a minha mãe conta sempre histórias que fazem a gente rir-se muito. Aos fins de semana vamos passear e às vezes vamos ver o meu avô à casa dele. É um bocado chato porque ele conta sempre as mesmas coisas mas gosto dele.
Mas gosto mais dos meus pais. Também gosto dos meus irmãos, mas às vezes zango-me com o Luís porque ele goza com o sinal que tenho na cara.
O meu pai é muito bom a dar toques coma a bola, ele jogou futebol a sério. Eu também gostava de jogar como ele.
É assim a minha família".
E o Rodrigo respirou fundo sentando-se calado no seu lugar.
Nem a professora nem os colegas sabiam, ainda, que o Rodrigo vivia numa instituição para miúdos sem família.
Aquela não era a sua família. Era a família que o Rodrigo gostava de ter.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

LIVROS E LEITORES

Mais uma histórica livraria que vai encerrar. O Público noticia o encerramento da Livraria Portugal no Chiado em Lisboa, sobreviveu 70 anos e vai sucumbir ao mercado, sempre o mercado a ditar as regras.
Lamentamos mas não estranhamos, os portugueses estão a comprar menos livros. Não tenho dados mais actuais e acredito que a situação tenha piorado, no primeiro semestre de 2011 o abaixamento foi de 3%. Sobre este universo algumas notas.
Em primeiro lugar e em termos mais genéricos, a cultura em Portugal é um produto de luxo, veja-se também o preço dos CDs e dos espectáculos. O universo da cultura vive e vai viver numa apagada e vil tristeza orçamental. Sabe-se como os museus têm dificuldade em manter portas abertas, para não falar de investimento e manutenção nos respectivos espólios. Muito do que se realiza em Portugal em matéria de cultura está dependente de apoios privados, carolice e mecenato. A crise instalada vai complicar a situação e, provavelmente, os dados hoje divulgados espelham esse cenário.
Por outro lado, e no que respeita ao mercado livreiro, creio que uma das grandes razões para o preço dos livros será o reduzido volume de consumo desse bem por parte do cidadão comum. De facto, à excepção de alguns, poucos, nomes, edições reduzidas dificultarão, por questões de escala, o abaixamento do preço. Algumas editores ou grupos editoriais têm experimentado o lançamento de colecções com obras a mais baixo custo, mas muitos dos potenciais compradores dessas obras, já as terão adquirido pelo que, mais uma vez será difícil que sejam bem sucedidas essas edições.
No entanto, penso que a grande aposta deveria ser no leitor e não no livro, ou seja, criando mais leitores, talvez as edições, que poderiam em todo o caso ser menos exigentes em papel e grafismo, ficassem mais acessíveis como se verifica noutros países. Esta batalha ganha-se na escola e na comunicação social. É certo que existe em actividade o Plano Nacional de Leitura que, parece, estará a dar alguns resultados, mas na comunicação social generalista, por exemplo na televisão, excepção à RTP2, o livro está praticamente ausente embora exista o sketch do conhecido entertainer político, conhecido por Professor, que ao Domingo à noite despeja livros em cima de uma secretária enquanto faz, dizem, comentário político.
Insisto, é um problema de leitores não de livros, aliás e estranhamente, nunca se publicou tanto como agora, aspecto que seria interessante analisar.

LEIS E VALORES

Pela primeira vez em Portugal, chega a Tribunal o pedido de uma mulher no sentido de usar o sémen do marido, entretanto morto, para através do processo de inseminação artificial, cumprir o sonho de ambos, ter filhos.
Na altura em que se propunham alargar a família foi diagnosticado um cancro no homem. Considerando o risco de infertilidade decorrente do tratamento oncológico, decidiram-se pela recolha e preservação do sémen. Tragicamente o marido acabou por falecer e a mulher continua atrás do sonho de ambos, agora em tribunal. Alega de uma forma simples que se por acaso o marido falecesse durante o período em que estivesse grávida, a criança também nasceria sem pai.
Não conheço os contornos legais aplicáveis a este tipo de situações e, naturalmente, há que considerá-los. No entanto creio que outros aspectos são de reflectir.
Em primeiro lugar e desde logo as circunstâncias da situação, a doença, o adiar da maternidade e a morte do marido.
Em segundo lugar e mais importante, a questão da maternidade desejada da mulher. Poder-se-á de forma fria considerar que, cumprido o luto, ou não, uma nova relação na vida da mulher poderá proporcionar essa desejada maternidade criando uma família, pai mãe e filho e ultrapassar o que alguns poderão considerar um devaneio bizarro. No entanto, este modelo é apenas um dos muitos modelos de família e não é garantia de mais bem-estar para ninguém.
Por outro lado, haverá quem duvide da razoabilidade de um morto ser pai e de uma criança nascer de um pai que não virá a conhecer. Por variadíssimas razões esta situação pode acontecer sem que, só por si, implique sofrimento para a criança ou para o progenitor sobrevivente.
Finalmente, sem hipocrisias, todos conhecemos situações familiares "normais" em que as crianças não são desejadas, são maltratadas sem que a comunidade consiga de forma eficaz proteger a qualidade de vida desses miúdos.
Mais do que as implicações legais que serão discutidas em tribunal, esta situação levanta questões que interpelam os nossos valores sobre estas matérias, que interrogam sobre a compreensão do pensamento do outro, enfim, sobre a complexidade da nossa vida.

O iPhone. Outros diálogos improváveis

Joana, tenho uma surpresa para ti, vais gostar, andavas sempre a pedir.
O que é Pai, diz depressa.
Comprei-te o iPhone que querias.
A sério? Pai, és mesmo fixe.
Eu sei que não é por coisas destas, mas a verdade é que gosto muito de ti e quero que nos continuemos a dar bem.
Eu sei Pai, também gosto de ti e de vir à tua casa.
...
Joana, tenho uma surpresa para ti, vais gostar, andavas sempre a pedir.
O que é Mãe, diz depressa.
Comprei-te o iPhone que querias.
A sério? Mãe, és mesmo fixe.
Eu sei que não é por coisas destas, mas a verdade é que gosto muito de ti e quero que nos continuemos a dar bem.
Eu sei Mãe, também gosto de ti e de vir à tua casa.
..
Carolina, sabes a cena que me aconteceu?
Não Joana, que cena?
O meu pai deu-me um iPhone e a minha mãe também me deu outro, mesmo igual. Desde que se separaram estão sempre com medo que eu goste mais de um do que do outro.

domingo, 22 de janeiro de 2012

VIZINHANÇA

Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades, dizia Camões.
Quando era miúdo, na minha terra, como em todas as terras, havia vizinhos, às vezes, mais da família que a família. Estas relações de vizinhança eram a base da vida da comunidade. Ajudavam nos problemas, partilhavam as alegrias, faziam companhia na solidão. Muitas vezes, nem lhes chamávamos pelos seus nomes, eram só vizinhos e vizinhas. Eram tudo.
Hoje, as pessoas vivem mais juntas mas mais sós, o vizinho é apenas o tipo do andar de cima que troca, quando troca, um envergonhado bom-dia no elevador. Continuo a não o chamar pelo nome, nem sequer sei qual é, mas também não é o vizinho, é apenas o tipo do andar de cima.
No Público, alguns especialistas, ouvidos sobre os efeitos que a actual situação de dificuldades pode ter nos nossos estilos de vida, adiantam, entre muitos outros aspectos, a probabilidade de se retomarem formas de comportamento mais comunitários, retomando, por exemplo, as relações de vizinhança.
Acabo como comecei, com Camões. Apesar do preço enorme que estamos a pagar por estes tempos, uns mais que outros como é evidente, se o mundo tomasse essas novas qualidades, a vizinhança, ficaria certamente um mundo melhor.

HAVERÁ INDIGNAÇÃO QUE CHEGUE PARA MUDAR?

A dimensão que em Portugal têm assumido os movimentos de protesto ao abrigo da expressão chavão "Indignados" obedece ao velho paradigma da percepção da quantidade de água no copo, para uns estará meio cheio, para outros meio vazio. Dito de outra maneira, para alguns poderemos estar no começo de uma mudança, para outros estaremos perante algo de inconsequente.
Como já tenho tido oportunidade de referir, estas movimentações são atentamente seguidas pela partidocracia instalada. Se repararmos nos discursos produzidos, A oposição exprime apreço e, mais ou menos explicitamente, apoia a "indignação" e mesmo os que actualmente ocupam o afirmam a sua inteira "concordância" com o direito à indignação. Ninguém quer, como é óbvio, perder alguma forma de boleia na indignação dos cidadãos, dos que estão presentes nas diversas movimentações e, sobretudo, dos ausentes mas que se sabe sentirem-se, só podem, indignados.
Do meu ponto de vista, as grandes e graves questões que têm produzido a reacção de indignação e, portanto, os movimentos de indignados, dificilmente serão significativamente alteradas sem algo de estruturalmente diferente em matéria de organização do trabalho, modelos de desenvolvimento económico, refrescamento da organização política e alterações culturais e éticas entre as elites políticas, culturais e económicas. O problema é que, entre os que em Portugal plausivelmente podem ascender ao poder nos tempos mais próximos, não se vislumbra projectos e visões que alterem significativamente o quadro instalado, são, diria, mais do mesmo. A partidocracia instalada, designadamente a que se move no chamado arco do poder tem, basicamente, o mesmo entendimento sobre os modelos de desenvolvimento económico, político e social que nos fizeram chegar aqui. Quem fez parte do problema, dificilmente pode fazer parte da solução. Se fizeram como fizeram e defendem o que têm defendido porque milagre ou mistério farão diferente?
Neste cenário, podem estabelecer-se duas perspectivas de continuação a curto e médio prazo. Uma primeira hipótese assenta num progressivo e rápido fortalecimento do movimento de indignação e revolta que escape ao controle da partidocracia e dos seus dispositivos, parte do movimento sindical organizado por exemplo, potenciando e agregando mais zonas e franjas de descontentamento criando uma pressão incomportável para o sistema que o obrigaria a alterações significativas, uma espécie de arabização de brandos costumes. Nesta primeira hipótese importa ainda considerar as reacções no quadro da União Europeia, sendo ainda que importa considerar o que noutros países "rua" for mostrando. O exemplo da Grécia está sempre presente.
Numa segunda hipótese, este movimento de indignação, nesta fase ainda disperso, pouco estruturado, pode acabar engolido pelos meandros da partidocracia tendo representado apenas um sobressalto inconsequente e rapidamente acomodado, mantendo alguma actividade de contestação visível que o próprio "sistema" verá com bons olhos e "acarinhará" como forma de drenar o descontentamento e legitimar a "democracia" das suas decisões.
De qualquer forma, com alguma dose de realismo e segurança, certo, certo, é o período de enormes dificuldades que boa parte de nós vive e a desesperança que parece instalar-se e que nos ameaça o futuro. Produzirá indignação que chegue?

DOPING MENTAL

É um fenómeno sazonal. Em épocas de exames como a que agora se vive no ensino superior, aparecem referências ao consumo de substâncias que supostamente ajudam a aumentar o desempenho escolar, combatendo o cansaço e estimulando a capacidade intelectual, a capacidade de atenção e concentração, enfim, "garantem" o sucesso escolar. Alguns estudos evidenciam o aumento deste consumo nos últimos anos.
O DN de hoje apresenta um extenso e interessante trabalho sobre esta questão referindo a opinião de estudantes e profissionais. A peça sugere-me algumas notas.
Em primeiro lugar, a pressão para o desempenho que está presente em variadíssimas áreas, para além do desporto, situação mais conhecida. A título de exemplo, há algum tempo noticiava-se o aumento de consumo de Viagra misturado com outros compostos químicos para garantir a performance sexual entre os mais jovens o que, aliás, é uma mistura altamente arriscada em termos de saúde.
Por outro lado, são também conhecidos os excessos no consumo de álcool entre os adolescentes que entre si não aceitam facilmente ter um desempenho "inferior" ou medíocre em situações de grupo, "não se dá parte de fraco", como se dizia no meu tempo.
A esta pressão para o "alto rendimento" acresce a facilidade de acesso aos medicamentos e a atitude de automedicação que nos leva a sermos um dos países em que este comportamento mais prevalece e em que se consomem mais psico-fármacos.
Finalmente, uma atitude genérica face ao trabalho, neste caso, o trabalho escolar, que nos faz remeter para a véspera o que deveria ser realizado de forma mais regular e espaçada no tempo. Tal facto, aumenta a sobrecarga e a pressão em curtos períodos de tempo que solicita então uma "ajudinha milagrosa" que algum colega sempre sugere e sempre se consegue.
O "doping mental" não é, assim, um problema dos estudantes, é, apenas, uma das muitas faces daquilo que são os nossos estilos de vida que, estes sim, deveriam merecer alguma atenção, designadamente nos programas educativos.

sábado, 21 de janeiro de 2012

UMA SEGUNDA OPINIÃO. É sempre bom

Como não podia deixar de ser, afirmei-o quando esta actividade se iniciou em Portugal, a “venda” de uma segunda opinião médica seria um negócio com pernas para andar.
Um país com traços de hipocondria em que toda a gente se queixa de alguma coisa e com um dos maiores níveis de consumos de fármacos é, evidentemente, um país consumidor de segundas opiniões médicas.
Já na altura do lançamento o Público deu uma ajuda publicitária à empresa e hoje volta a fazê-lo noticiando de forma simpática as suas ofertas de serviços.
Desde o início, esta actividade, relativamente frequente em alguns países, levanta algumas reservas à Ordem dos Médicos e à Entidade Reguladora da Saúde ao proceder à emissão de pareceres e opiniões sem consulta presencial, com base nos exames complementares de diagnóstico e sem os contornos da chamada tele-medicina, prática em evolução e aceite.
Utilizando esta experiência, uma segunda opinião médica, talvez fosse de considerar e aceitar o recurso a uma segunda opinião na esfera das decisões políticas. Sempre que algumas decisões nos suscitassem dúvidas sobre o seu ajustamento e correcção poderíamos recorrer a alguma entidade que nos desse uma segunda opinião. Tal facto permitiria uma maior confiança nas decisões que nos respeitam. A questão é a quem recorrer. Parece tudo farinha do mesmo saco.

PASSOS COELHO E CAVACO SILVA, A CONTRADIÇÃO

Passos Coelho afirmou hoje ter razões para estar optimista quanto à capacidade de Portugal vencer as dificuldades que enfrenta.
Depois de já ter afirmado que o caminho é empobrecer e que as pessoas devem sair da sua “zona de conforto” e procurar o futuro fora do país, vem agora revelar o seu optimismo e confiança no futuro.
Sou dos que entendo que as lideranças devem produzir discursos optimistas sem, evidentemente, resvalar para o irrealismo ou a demagogia que, frequentemente, caracterizam os discursos políticos que parecem assentar no princípio de que “a realidade está errada, eu é que estou certo”.
No entanto, não posso deixar de registar a profunda contradição entre as declarações de Passos Coelho e as do Presidente da República em matéria de optimismo.
Se bem estamos recordados, foi ontem, Cavaco Silva afirmou que as “suas reformas não vão chegar para pagar as despesas”. Se recordarmos que estas reformas não deverão ser inferiores a 10 000 €, a afirmação do Presidente é do mais profundo pessimismo.
O cidadão comum que todos os dias vê encurtar o seu orçamento, o desempregado que vê diminuir a possibilidade de recuperar o trabalho e o apoio social, os reformados e pensionistas com baixíssimos rendimentos, os jovens sem trabalho, etc. vão sentir o quê?

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A NÉVOA DA JUSTIÇA

O Supremo Tribunal de Justiça condenou o empresário da Bragaparques, Domingos Névoa, por corrupção activa do vereador Sá Fernandes da Câmara de Lisboa. Foi condenado a cinco meses ficando a pena suspensa se no prazo de dois meses pagar ao estado 200 000 €, curiosamente o valor envolvido na tentativa de corrupção.
Um pequena síntese, em primeira instância o tribunal deu como provado que o Sr. Domingos Névoa procurou corromper activamente o Vereador Sá Fernandes e condenou-o à “pesada” e “desproporcional” pena de 5000 € num negócio que envolvia milhões. O Sr. Domingos Névoa, certamente por coincidência, é defendido por um conhecido advogado, Artur Marques, que, verdadeiro especialista em corrupção, tem sido advogado de Fátima Felgueiras, de um arguido no famoso Apito Dourado e de um outro arguido no processo de mega fraude nos processos liquidatários de empresas falidas, bem de outra rapaziada cujas actividades se recomendam, por exemplo no processo Face Oculta. Como é evidente e habitual, seguiu-se o recurso e, espantosamente, o Tribunal da Relação absolveu o Sr. Domingos Névoa pois, embora tenha tentado corromper o vereador Sá Fernandes, este não tinha entre as suas competências na Câmara o pelouro em que poderia “ajudar” pelo que nada feito, não havia corrupção. Mais uma página brilhante da justiça portuguesa.
Finalmente o caso chegou ao Supremo e, soube-se hoje, o Sr. Domingos Névoa acabou condenado.
Como não é frequente, a condenação efectiva por casos de corrupção importantes pode dizer-se que desta vez, pelo menos desta vez, a justiça funcionou.

OS (DIS)MIÚDOS

Lê-se no Público que, no âmbito da revisão da versão IV do Diagnosis and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) da responsabilidade da Associação Americana de Psiquiatria, a referência nesta matéria para a generalidade da comunidade científica, será redefinido o diagnóstico de autismo. Pretende-se com esta revisão minimizar uma espécie de “surto” diagnóstico, em alguns casos “sem haver quadro clínico que o justifique”. A pedopsiquiatra Áurea de Ataíde refere ainda que “Não podemos esquecer que pode ser muito grave para uma família a realização ‘leviana’ de um diagnóstico como este, que tem um peso emocional, familiar e social importantíssimo”.
Já em diferentes circunstâncias tenho referido no Atenta Inquietude a preocupação com a facilidade com se colocam rótulos, diagnósticos, nas crianças.
Se bem repararem, de há uns tempos para cá uma boa parte dos miúdos e adolescentes ganharam uma espécie de prefixo na sua condição, o "dis", transformaram-se em (dis)miúdos.
A diversidade é enorme, ao correr da lembrança temos os meninos que são disléxicos em gama variada, disgráficos, discalcúlicos, disortográficos ou até distraídos.
Temos também as crianças e adolescentes que têm (dis)túrbios. Estes também são das mais diferenciadas naturezas, distúrbios do comportamento, distúrbios da atenção e concentração, distúrbios da memória, distúrbios da cognição, distúrbios emocionais, distúrbios da personalidade, distúrbios da actividade, distúrbios da comunicação, distúrbios da audição e da visão, distúrbios da aprendizagem ou distúrbios alimentares.
Como é evidente existem ainda os que só fazem (dis)parates e aqueles cujo ambiente de vida é completamente (dis)funcional.
Pois é, há sempre um "dis" à espera de qualquer miúdo e senão, inventa-se, "ele tem que ter qualquer coisa".
Agora um pouco mais a sério, sabemos todos que existem um conjunto de problemas que podem afectar crianças e adolescentes mas, felizmente, não tantos como por vezes parece. Inquieta-me muito a ligeireza com que frequentemente são produzidos "diagnósticos" e rótulos que se colam aos miúdos e dos quais eles dificilmente se libertarão. Neste sentido a revisão do DSM parece ser um passo positivo relativamente ao espectro de autismo.
Esta matéria, avaliar e explicar o que passa com os miúdos e adolescentes, exige um elevadíssimo padrão ético e deontológico além da óbvia competência técnica e científica. Não se pode aligeirar, é "dis"masiado grave.
Para ilustrar, uma pequena história, uma gaiata de nove anos que já carrega um rótulo de "disléxica", dizia com um ar entre o esperançado e o envergonhado, "a minha professora diz que há meninos lá na sala que dão mais erros que eu e não são disléxicos, eu é que sou".
Elucidativo.

PPR - Pensões do Presidente da República. Alguns dados

O Presidente da República declarou hoje que o montante das suas reformas não chegará para pagar as despesas. Na sua declaração de 2009 declarou, segundo o Público, 140000 € de reformas e ainda de acordo com o jornal poderá ficar a usufruir como pensionista qualquer coisa entre os 10 e os 12 000€.
Não consigo entender como é que algumas figuras com responsabilidades políticas importantes ou figuras de relevo nos meios económicos são capazes de com a maior das leviandades insultar milhões de portugueses. Nos últimos dias temos tido exemplos que cheguem, Eduardo Catroga, Ferreira Leite, Passos Coelho e Miguel Relvas, Alexandre Soares dos Santos, etc.
Reportando-me a 2009, ano em que, repito, Cavaco Silva declarou 140 000 € de reformas, pode ser interessante conhecer alguns indicadores com base nos dados da Segurança Social.
Na altura existiriam em Portugal cerca de 1,8 milhões de pobres, hoje estão acima dos dois milhões, ou seja, com rendimento inferior a 360 €, o limiar de pobreza, e, curiosamente, o mesmo número de pensionistas. Vejamos então alguns dos dados. O valor médio das pensões era de 385 € e só Lisboa e Setúbal apresentavam valores médios acima do salário mínimo nacional, 450 €, em 2009. A assimetria era fortemente evidenciada pelo facto de a pensão média mais a baixa, a de Bragança, ser de 272 € e a mais alta, a de Lisboa, ser de 504 €. Só quatro concelhos, Lisboa, Setúbal, Porto e Aveiro apresentam valores médios das pensões acima do limiar de pobreza.
Perante este cenário, que não se alterou para melhor, antes pelo contrário como é conhecido e reconhecido, ouvir o Presidente da República afirmar que os 10 a 12 000 € mensais não lhe chegarão para pagar as suas despesas é de uma insensibilidade social despudorada e ofensiva.
Muitos acham que o Presidente fala de menos, sou dos que entende que fala de mais e mal.

A GEOGRAFIA DO DESPERDÍCIO E DA POBREZA

Existem notícias que por mais habituados que estejamos aos difíceis tempos que correm, conseguem ainda surpreender-nos ao mesmo tempo que se constituem como uma acusação que nos embaraça a todos. O Parlamento Europeu aprovou um relatório segundo o qual a União Europeia que tem 79 milhões de pessoas a viver abaixo do limiar de pobreza, 15,8% da população, e desperdiça anualmente cerca de metade do que consome em alimentos. Este desperdício corresponde a 89 mil milhões de toneladas, um número verdadeiramente assombroso. O Parlamento Europeu estabelece como objectivo para a Comissão reduzir em 50% o desperdício até 2025.
Relembro que 2010 foi o Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão e o resultado está à vista, 79 milhões de pobres, cerca de 2 milhões em Portugal. Parece-me também oportuno recordar que recentemente também a Comissão Europeia publicou um relatório mostrando como as medidas de austeridade em Portugal estão a agravar as assimetrias sociais e, de forma extraordinária, o Primeiro-ministro já avisou que o caminho é o empobrecimento.
Quando tanto se fala de produtividade, em nome da qual, se ameaça a dignidade das pessoas e se lhes piora as condições de vida talvez fosse altura de também nos centrarmos no desperdício e nos seus efeitos devastadores.
Neste quadro releva a necessidade urgente de ponderar os modelos de desenvolvimento económico e social, combater desperdícios consequência desses modelos, diminuir efectivamente o fosso intolerável entre os mais ricos e mas pobres, caminhar no sentido da construção de uma dimensão ética que seja reguladora da atribuição de privilégios incompreensíveis e obscenos para poucos e tolerância face a situações de exclusão extrema para bastantes outros.
Eu sei que escrever sobre estas questões em espaços desta natureza tem alcance zero, mas continuo convencido que é fundamental não deixar cair a preocupação, talvez seja melhor chamar-lhe a indignação, com a pobreza e exclusão. Por isso, a insistência.

UMA HISTÓRIA COM FLAMINGOS

Parece um título estranho, na verdade é mesmo estranho. Vou tentar explicar. Os flamingos têm uma posição característica de apoio numa só pata de que, estranhamente, transparece uma sensação de equilíbrio que a nós parece inacessível. Com um pé no ar ficamos numa situação perfeitamente instável, ao fim de algum tempo insustentável, e que, a continuar, leva ao risco da queda.
Serve a ideia para vos falar de um grupo de crianças e adolescentes que vivem, diria, na posição do flamingo, pouco apoiados, instáveis, à beira do desequilíbrio.
Ao fim de algum tempo, ou com algum toque ou brisa mais pesados, podem desmoronar-se e cair, sendo que este tombo ou queda podem assumir diferentes formas como toda a gente que lida com miúdos conhece.
É, por isso, fundamental que, como sempre, estejamos atentos aos sinais que os miúdos e adolescentes possam dar de como o seu equilíbrio poderá estar ameaçado. Curiosamente e ao contrário do que sempre nos impressiona nos homens-estátua, uma excessiva imobilidade pode esconder um desequilíbrio significativo.
O que me leva a escrever esta história com flamingo é que com alguma frequência olhamos para alguns e, quase sempre sem querer, acreditamos que eles são como os flamingos, ou seja, equilibram-se perfeitamente com pouco apoio.
Não são, apesar da resiliência espantosa que alguns revelam, os miúdos precisam mesmo de apoios sólidos e atentos.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

ORGULHOSAMENTE SÓS. Ou controlamos ou não apoiamos

A decisão agora conhecida do Grupo Parlamentar do PCP se demarcar do pedido de fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional dos cortes salariais, iniciativa apoiada por deputados do BE e alguns do PS, à revelia da orientação “oficial” de António José Seguro, parece-me um bom exemplo de algumas das razões da hoje conhecida percepção social da degradação da nossa democracia, no caso, a valorização de interesses partidários em detrimento do que poderá, ainda que discutivelmente, constituir-se como interesse comum. A minha afirmação decorre da natureza da argumentação, o PCP entende que a decisão é inconstitucional mas não se associa ao pedido de fiscalização e afirma “continuar o combate por outros meios.
Em termos formais entendo a argumentação mas se, eventualmente, o TC se pronunciasse pela inconstitucionalidade da decisão poder-se-ia, do meu ponto de vista, criar uma base, considerar um passo no sentido de uma mais ampla contestação. Não sabemos quais os “outros meios” a utilizar pelo PCP mas certamente serão desencadeados sob o seu “controlo”, esta a questão, daí o entendimento de que este tipo de posicionamento assenta basicamente em táctica partidária e não no interesse geral.
Este tipo de procedimento não é de estranhar em quem recentemente não se associa a um voto de pesar no Parlamento pela morte de Vaclav Havel e exprime oficialmente um humanitário, mas significativo politicamente, voto de pesar pela morte desse farol da democracia, o dono da Coreia do Norte, Kim Jong-II.
Algo vai mal no reino.

A QUALIDADE DA DEMOCRACIA REVISTA EM BAIXA

A imprensa de hoje divulga o estudo "A Qualidade da Democracia em Portugal: a Perspectiva dos Cidadãos", da autoria de António Costa Pinto, Pedro Magalhães, Luís de Sousa e Ekaterina Gorbunova do Instituto de Ciências Sociais. Dos muitos dados disponibilizados, sublinho o facto de 56% dos inquiridos entenderem que a democracia é o melhor sistema, 65% se mostrarem pouco ou nada satisfeitos com a democracia e de 70,4% entenderem que a crise veio afectar a qualidade da democracia.
Estes dados vão na mesma linha dos dados do Índice da Democracia 2011 do Economist Intelligence Unit, segundo os quais, Portugal passou da situação democracia plena para uma democracia com falhas, o que segundo a análise realizada se deve sobretudo à erosão da soberania associada à crise da zona euro.
Embora me pareça essencial considerar os efeitos que do ponto de vista da soberania assumem as decisões no âmbito do Programa que nos foi imposto, creio que a soberania já estava sob ameaça pelo actual cenário económico e político. Parece-me no entanto claro, que a degradação da qualidade de vida das pessoas, relembro que a União Europeia alertou para que as medidas de austeridade em Portugal estão aumentar as assimetrias sociais, não pode deixar de influencia a percepção das pessoas sobre a qualidade da democracia.
Por outro lado, creio que a degradação da qualidade da nossa democracia assenta em três questões fundamentais que telegraficamente refiro retomando algumas notas já aqui afirmadas.
Em primeiro lugar, a nossa organização política tem vindo a transformar a democracia política numa partidocracia. A participação cívica e política dos cidadãos depende quase exclusivamente do controlo dos aparelhos partidários. Este controlo, assente no quadro legal e na administração dos interesses pessoais, tem vindo a afastar franjas significativas da população da intervenção cívica e política como atestam os crescentes e elevados níveis de abstenção.
Em segundo lugar, existe uma área do nosso funcionamento cujo mau desempenho contribui decisivamente para a degradação da qualidade da vida cívica. Refiro-me à justiça. De um modo geral o sistema de justiça é percebido como moroso, ineficaz, cheio de manhas e alçapões que acabam por beneficiar os mais poderosos e criar um trágico sentimento de impunidade e desconfiança.
O terceiro aspecto prende-se com os efeitos dos modelos de desenvolvimento económico e político que, apesar de enquadrados numa democracia política, comprometem seriamente uma ideia de democracia económica na medida em que produzem exclusão e pobreza que afecta e ameaça muitos portugueses e que actual situação veio expor de forma dramática.
Sintetizando, do meu ponto de vista, para além de questões de soberania, as verdadeiras causas da degradação da qualidade da nossa democracia remetem para os efeitos da partidocracia, do sistema de justiça e das questões decorrentes da pobreza e exclusão.
Bons motivos para nos inquietarmos.

UMAS NOTAS EM CONTRA NATURA

Estamos num tempo, felizmente, em que as comunidades, de uma forma geral, organizaram, regularam e procuram observar um conjunto de normas e orientações em torno da fórmula "superior interesse da criança". Tal movimento, estimulado sobretudo pela adopção generalizada de uma Declaração dos Direitos da Criança em 1959 e da Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989, tem vindo a traduzir-se por políticas activas ainda que nem sempre eficazes de protecção dos miúdos nas várias dimensões da sua vida.
Apesar desta protecção legalmente e institucionalmente definida não funcionar, como disse, com a qualidade e eficácia desejadas, vai sendo tempo de nos voltarmos para um outro universo menos referido, menos considerado por maior discrição, mas de semelhante resultado, mau resultado. Refiro-me à forma como, sem resvalar para comportamentos susceptíveis de se considerar delinquentes ou tão graves que mereçam sanção social além da legal, algumas crianças e adolescentes são tratadas pelas instituições que pela sua natureza, daí o título, não deveriam ser maltratantes, a família ou a escola.
Estas notas ocorreram-me a propósito da história que um dia uma professora, das Grandes, me contou. Um miúdo à entrada da adolescência e com uma quotidiano de dificuldades e problemas na escola onde andava, confessava entre o perplexo e a impotência resignada qualquer coisa como, "não sei o que esta escola me fez, eu dantes era um bom menino".
Não, não tenho nenhuma visão idealizada da criança. Na verdade, em muitas situações, figuras de quem se espera bons tratos pela função desempenhada, pais, mães, professores, fazem mal aos miúdos, estragam-nos, não por delinquência, mas por incompetência e desatenção.
Este tipo de situações que passa, a título de exemplo, por tratamento igual na escola a miúdos que pela sua diferença não suportam a igualdade do tratamento e são abandonados, aos miúdos que não encontram, por várias razões, um céu protector na relação familiar o que os deixa perdidos sem um GPS orientador dos afectos, não são do meu ponto de vista, considerados com suficiente atenção.
Fica sempre mais fácil entender que quando as coisas não correm bem algo está errado com os miúdos. Não é muito fácil aceitar que pais, mães ou professores fazem mal aos miúdos, desde que não firam disposições legais e mesmo assim, por vezes ainda se ouve um desresponsabilizante "é para bem dele(a)".
É contra natura, os bons nunca podem ser maus. Às vezes são.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

DOÇURA E AMARGURA

Pois é, mudam-se os tempos mudam-se as vontades. Durante muitos anos "pãozinho sem sal" era algo de negativo, ninguém queria ser um "pãozinho sem sal". Então quando era uma rapariga a achar que éramos um "pãozinho sem sal", a auto-estima ficava de rastos. De há uns tempos para cá, com o abaixamento do teor de sal no pão, "pãozinho sem sal" poderá tornar-se elogio, significará certamente alguém de saudável, com bom senso e com o "tempero" adequado. Para muitos virá tarde a mudança.
Hoje noticia-se uma petição no sentido de retirar o açúcar da nossa vida, baixar a quantidade de açúcar fornecida nas saquetas. Ao que parece, a própria indústria tem vindo a baixar a quantidade, não sei se por preocupação com a saúde pública se com o eventual benefício económico. Devo confessar que fiquei um pouco preocupado. A nossa vida tem vindo a ficar tão amarga e ainda lhe querem tirar doçura.
Mais a sério, a regulamentação de matérias que impliquem comportamentos no chamado estilo de vida, consumo de álcool e tabaco são bons exemplos, despertam sempre alguma reactividade e alguns discursos que referem o excesso de intromissão em áreas que consideram do foro das liberdades individuais. Entendo os discursos mas compreendo e aceito que comportamentos que se transformam em grandes problemas de saúde pública possam ser objecto de regulação sem ferir os direitos e liberdades individuais.
Os dados da generalidade dos estudos evidenciam o excesso de consumo de sal e açúcar o que é, evidentemente, algo que merece atenção.
Tal quadro, a par de outras situações decorrentes dos hábitos alimentares, lembro por exemplo a prevalência altíssima de casos de diabetes tipo II entre os mais novos, pode configurar um problema sério em termos de saúde pública e de como a obesidade atinge camadas significativas, até aos 18 anos, 30% dos indivíduos estão situação de pré-obesidade e obesidade, na população adulta atinge 50% dos homens e 30% das mulheres.
Parece-me pois necessário que nos espaços educativos, familiar e escolar, se reforcem a informação e algumas iniciativas que possam contribuir para que este tipo de problemas de alguma forma se minimizem.
Continuo a pensar que este tipo de precauções e discursos não fere os direitos individuais nem espelha qualquer atitude fundamentalista. Trata-se sobretudo de proteger e promover a qualidade de vida colectiva.

PROFESSORA E ALUNO. Outro diálogo improvável

Setôra?
Sim, Nuno.
Acha que se eu estudar, vou ser o que quero quando chegar a adulto?
Claro, quando se trabalha, consegue-se o que se quer.
Então porque é que Setôra não conseguiu ser engenheira e teve que dar aulas de matemática, como nos diz de vez em quando?
Bem, vais também aprender que nem sempre a vida permite que as coisas aconteçam como nós gostamos e até merecemos.
...
Setôra?
Sim Nuno, hoje estás para falar comigo, sempre é melhor do que estares a conversar com os teus colegas. Diz.
Setôra, é mesmo importante que a gente goste do que tem que fazer?
Bem, como certamente já descobriste, quando gostamos do que fazemos, as coisas correm melhor, custam menos e estamos mais satisfeitos.
Então porque é que a Setôra está sempre a dizer que está farta de dar aulas e que já não tem paciência para a gente. As coisas assim não correm bem, não é?
Já percebi que não se pode dizer nada, reparas em tudo, mas acho que percebes que nem sempre nos sentimos bem e dizemos coisas desse tipo.
...
Setôra?
Outra vez Nuno?! O que é agora?
Setôra, se a gente tiver confiança em nós, somos capazes de fazer melhor e ir mais longe do que se tivermos dúvidas e acharmos que não somos capazes, não é Setôra?
Claro Nuno, estamos de acordo, agora podes acabar o trabalho se não te importas, a aula está quase a acabar.
Então porque é que a Setôra está sempre a dizer que não chegamos a lado nenhum, que não vamos fazer nada de jeito na vida? Assim a gente não tem confiança.
Bem, já percebi que hoje estás impossível. Bom, na próxima aula acabamos o trabalho. Podem sair.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

ESCOLA A TEMPO INTEIRO OU EDUCAÇÃO A TEMPO INTEIRO

Ao que se lê no Público, um Protocolo hoje entre o Governo e representantes das Instituições de Solidariedade Social vai permitir aos pais a escolha da colocação dos filhos em Actividades de Enriquecimento Curricular ou em ATLs. Para além do óbvio impacto na pressão económica sobre autarquias e MEC, retomo algumas notas sobre esta questão, a vida dos miúdos no tempo não curricular.
A iniciativa "ESCOLA A TEMPO INTEIRO" sendo dirigida a um problema presente na generalidade das comunidades educativas, a ocupação e supervisão das crianças fora dos tempos lectivos/escolares, tem, na sua implantação e desenvolvimento, evidenciado mais um dos muitos equívocos presentes nas políticas educativas.
Em primeiro lugar, verificou-se o subaproveitamento do muito que nesta matéria era já realizado, por exemplo, através de ATL(s) a funcionar no âmbito de parcerias com as Associações de Pais e de muitas instituições sociais e que agora parece retomar-se.
O equívoco a que me refiro traduz-se na confusão entre "EDUCAÇÃO A TEMPO INTEIRO", uma necessidade óbvia, com "ESCOLA A TEMPO INTEIRO", uma "overdose" arriscada. Na prática em muitas situações que conheço verifica-se:
- A dificuldade óbvia e esperada de encontrar recursos humanos com experiência e formação em trabalho não curricular com crianças dos 6 aos 10. Este obstáculo acaba por resultar na réplica para as crianças de aulas e actividades pensadas para pré-adolescentes e adolescentes. O benefício imediato é quase nulo e a consequência a prazo poderá ser a desmotivação, no mínimo.
- O modelo de organização do trabalho, sendo desenvolvido por professores ou outros elementos desconhecedores do modelo de funcionamento do 1º ciclo, mostra-se, com frequência, completamente desajustado. Como exemplo real, refiro o horário de um grupo de 1º ano (crianças com 6 anos): trabalham com a professora da turma das 9h às 12 e das 13 e 15 às 15 e 15, e todos os dias têm a seguir dois ou três tempos de 45 minutos até às 17 e 30 ou 18.
Verificamos assim que as crianças estão envolvidas em tarefas de natureza escolar durante um tempo que nestas idades se torna completamente excessivo e contraproducente. Quero sublinhar que o que me parece errado não é o tempo em que as crianças se envolvem em trabalho e que estão na escola, mas sim a natureza desse trabalho, "disciplinarizado", ou seja, organizado por tempos, de forma rígida e ocupado com conteúdos e tarefas não compatíveis com crianças deste escalão etário.
Este quadro ilustra, creio, o equívoco a que me referi. Em vez de tentarmos estruturar um espaço que seja educativo a tempo inteiro, preenchido na escola e com qualidade, assistimos à definição de uma pesada agenda de actividades que está a motivar situações de relação com a escola turbulenta e reactiva. Alguns pais têm optado por retirar (quando e se podem) os seus filhos deste tipo de actividades.
A possibilidade agora retomada de poderem optar por ATLs parece-me de sublinhar, importando, evidentemente, não esquecer dispositivos de regulação da qualidade do trabalho realizado.