terça-feira, 31 de maio de 2011

PRENDER NÃO É SUFICIENTE

A decisão judicial de colocar em prisão preventiva alguns dos envolvidos nos mais recentes e mediatizados casos de violência entre jovens, está a causar alguma polémica até pela pouca frequência com que é utilizada.
O bastonário da Ordem dos Advogados insurge-se argumentando com uma interpretação da lei que, na sua opinião, não justificaria a prisão preventiva. Por outro lado, alguns juízes e outros actores têm vindo a defender a bondade da medida pelo seu impacto potencial na prevenção da delinquência e no combate à ideia de impunidade instalada que tem efeitos devastadores na confiança dos cidadãos quer na justiça quer na percepção de segurança diária.
Do meu ponto de vista, para além da discussão sobre a decisão de prender e como referi aqui há dias importa ponderar em alguns outros aspectos.
Em Portugal existem altíssimos níveis de prisão, no entanto, são constantes e públicos apelos ao aumento de penas e da prisão de mais gente provavelmente devido ao tal sentimento de impunidade e insegurança. É ainda frequente reclamar o abaixamento da idade susceptível de prisão que actualmente se situa dos 14 aos 16 anos internamento fechado em Centro Educativo, e a prisão comum a partir dos 16.
A minha questão central é que, sobretudo no caso de gente mais nova, a prisão não pode ser a única solução.
Segundo dados da Direcção Geral de Reinserção, cerca de 40% dos adolescentes internados voltam aos Centros Educativos ou às prisões após os 16 anos. Esta altíssima taxa de reincidência, mostra a falência do Projecto Educativo obrigatoriamente definido para todos os adolescentes internados. Este Projecto Educativo assenta em dois eixos fundamentais, formação pessoal e formação escolar e profissional. É neste âmbito que o trabalho tem que ser optimizado. É imprescindível que os meios humanos e os recursos materiais sejam suficientes para que se minimize até ao possível os riscos de reincidência. Ao que é conhecido, um dos jovens agora detidos já tem antecedentes criminais. Mesmo entre a população mais jovem, com mais de 16 anos e, portanto, a cumprir penas em estabelecimentos prisionais para adultos, a taxa de reincidência é enorme e a prisão, sabe-se, funciona frequentemente como um Centro de Novas Oportunidades, aumentando e certificando competências.
Fica certamente mais caro lidar com a delinquência provavelmente praticada por estes jovens reincidentes em adultos do que investir na qualidade dos Centros Educativos para que sejam, de facto, educativos.
Apesar de, repito, a detenção constituir um importante sinal de combate à sensação de impunidade instalada, é minha forte convicção de que só prender não basta.

MIÚDOS COM FOME, OLHEM QUE EXISTEM

Desculpem, mas tenho que voltar a um tema que ontem aqui abordei. Um dia depois da divulgação do estudo do ISEG referindo que duas em cada cinco crianças vivem abaixo do limiar de pobreza e que cerca de 40% vivem em situação de pobreza, sabemos através do Diário Económico que desde Novembro 636 000 famílias perderam o acesso ao abono de família.
As expectativas imediatas, estamos em recessão e o negócio que nos foi imposto pelo FMI, FEEF e BCE impõe mais cortes nos apoios sociais, não permitem qualquer espécie de optimismo nesta matéria, antes pelo contrário.
Quando atento, do que consigo ouvir e ler, na campanha eleitoral em curso, verifico escandalosamente que estas, tais como outras questões de importância central, estão, quase sempre, ausentes.
Por outro lado, não me orgulho particularmente disto, mas não acredito que gente que tem sido parte do problema venha a ser parte da solução. Ninguém, apesar da retórica, está verdadeiramente interessado em medidas que equilibrem as contas públicas da forma acertada, reformar a organização do estado, autarquias e governos civis por exemplo, ou promover equidade fiscal, designadamente no IRC (a banca continua e continuará independentemente do governo que se instale em situação de escandaloso benefício). Ninguém está verdadeiramente interessado em eliminar as centenas de organismos, entidades, fundações, empresas municipais inúteis e consumidoras de milhares de milhões. Ninguém está verdadeiramente interessado em emagrecer gabinetes e organismos onde se atropelam as clientelas dos aparelhos partidários. Esta situação foi alimentada e promovida por todos os partidos que já ocuparam poder, repito, por todos os partidos.
Não estou muito optimista de que do actual quadro político, a partidocracia, possa emergir uma solução, creio que só uma renovação da participação cívica dos cidadãos, desconfiados e descrentes na classe política, poderá, creio, pressionar a mudança.
No entanto, quanto mais não seja por uma questão de dignidade e solidariedade, bens em desuso nas tomadas de decisão política, não ameacem mais o bem-estar dos miúdos.
Talvez não saibam, mas há miúdos que passam fome, vão crescer mal.

A HISTÓRIA DO MIÚDO QUE TINHA SONO

Num destes dias à saída da escola a Professora Teresa cruzou-se com o Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros, e caminharam juntos alguns minutos.
Olá Velho, agora não nos temos encontrado, o trabalho este final de ano é mais que muito, lá do Ministério estão sempre a lembrar-se de burocracias que não servem para nada e só atrapalham.
É verdade, não temos conversado.
Tenho uma cena com um miúdo lá na sala daquelas que tu gostas de ouvir.
Então conta Teresa, já estou curioso. Os miúdos, quase sempre são engraçados.
Estava o meio da aula quando reparei que o Sérgio estava a dormir profundamente com a cabeça em cima da mesa. Eu parei, fiquei a olhar para ele, os colegas riram-se e ele nem se mexeu.
E depois?
Cheguei-me ao pé dele e de mansinho acordei-o. Olhou para mim espantado e disse, adormeci.
Pois foi, tens sono? E ele respondeu-me, Setôra, levanto-me todos os dias às sete e só saio da escola às seis da tarde. À terça e à quinta vou às seis e meia treinar futebol lá no clube, fico bué cansado. Todos os dias tenho que fazer os TPCs e a minha mãe e o meu pai que chegam só às oito fazem o jantar e só vamos dormir às dez. Como a gente gosta ainda ficamos um bocado no computador e depois custa mesmo levantar de manhã. Ando sempre cheio de sono.
E que fizeste a seguir?
Olha Velho, não digas a ninguém, mas combinei com os colegas, continuámos a aula sem barulho e deixei-o dormir os dez minutos que faltavam para o fim. Quando o Sérgio saiu, combinámos que amanhã ao intervalo eu lhe explicava o trabalho que realizámos hoje.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

PASSANDO MAL, NÃO SE APRENDE. Não se esqueçam. Por favor

Nos tempos que correm torna-se muito difícil fugir à reflexão sobre os efeitos devastadores que as dificuldades económicas estão a assumir na vida de milhões de portugueses.
O Público de hoje refere um estudo do ISEG a divulgar nos próximos dias, em que se aponta para que cerca de 40% das crianças e adolescentes vivem em situação de pobreza, sendo que esse quadro de privação afecta sobretudo os padrões e a qualidade da alimentação. O estudo sublinha também, entre outros indicadores a merecer séria reflexão, por exemplo na campanha eleitoral em curso, que o grupo etário 0-17 anos é o mais vulnerável ao risco de pobreza tendo ultrapassado o dos mais velhos.
As perspectivas para o futuro próximo não parecem particularmente animadoras. Sabemos que estamos num período económico recessivo, sem criação de riqueza e que devido aos baixos salários, continuamos um dos países mais assimétricos da Europa pelo que ter trabalho não chega para fugir ao risco de pobreza. Por outro lado, relembro um estudo de há uns meses realizado pelo I junto das autarquias dos distritos de Lisboa, Porto, Setúbal, Coimbra e Faro que revelou que quase metade dos alunos da educação pré-escolar e do 1º ciclo recebe apoios sociais sendo que em alguns concelhos a percentagem de crianças carenciadas atinge os 65%, número verdadeiramente impressionante. Acresce que em muitos concelhos a maioria das crianças apoiadas integram o escalão A dos apoios, o que se destina aos agregados com rendimentos mas baixos.
Estes indicadores sobre as dificuldades que afectam a população mais nova são algo de assustador. Esta realidade não pode deixar de colocar um fortíssimo risco no que respeita ao desenvolvimento e sucesso educativo destes miúdos e adolescentes e portanto, à construção de projectos de vida bem sucedidos. Como é óbvio, em situações limite como a carência alimentar, estaremos certamente em presença de outras dimensões de vulnerabilidade que concorrerão para futuros preocupantes.
É por questões desta natureza que a contenção das despesas do estado, imprescindíveis, como sabemos, deveriam ser feitas com critérios de natureza sectorial e não de uma forma cega e apressada, mas naturalmente mais fácil e que, entre outras consequências poderão empurrar milhares de crianças para situações de fragilidade e risco com implicações muito sérias.
Relembro a história que já aqui contei e que me aconteceu há uns anos em Inhambane, Moçambique, quando ao passar por uma escola para gaiatos pequenos o Velho Bata me dizer que se mandasse traria um camião de batata-doce para aquela escola. Perante a minha estranheza explicou que aqueles miúdos teriam de comer até se rir, “só aprende quem se ri”, rematou o Velho Bata.
Pois é, putos com fome não aprendem e vão continuar pobres.

domingo, 29 de maio de 2011

A NORMALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA (Take 2)

A realidade teima sempre em ir mais longe que a ficção. Eu sei que é um lugar comum mas não me ocorre nada de mais criativo. Ainda a poeira não assentou sobre o episódio do espancamento de uma miúda por outras duas, com a assistência incentivadora de terceiros que filmam e divulgam o espectáculo, quando surge mais um novo e gravíssimo incidente. Ao que parece, por causa de um telemóvel, uma adolescente esfaqueou gravemente uma outra.
Sinto, por isso, necessidade, agora mais justificada, de retomar algo que aqui deixei há poucos dias e que me parece o mais preocupante destes tipo de casos, a normalização da violência, ou seja, a banalidade e gratuitidade com que se recorrem a comportamentos altamente violentos para dirimir as relações entre adolescentes e não só, com é óbvio.
Os comportamentos agressivos em contexto escolar, bullying por exemplo, são tão antigos quanto a instituição escolar, sendo certo que os estudos destes fenómenos são mais recentes. A violência entre jovens fora do contexto escolar também está longe de ser um fenómeno novo. Actualmente, é também mais objecto de referências fora dos contextos educativos pois o volume e a gravidade de algumas situações, bem como a divulgação dos estudos e alguma mediatização verificada, colocaram este problema na agenda como é fácil verificar consultando a imprensa ou a grande catedral deste tipo de informação, o YouTube.
Em vários estudos muito recentes constata-se que os adolescentes tendem encarar a violência entre si como normal. Creio que é inquietante mas não pode ser surpreendente. A escola, desde sempre, espelha as realidades sociais e o quadro de valores prevalecente nos contextos que serve. A sociedade da informação e os sistemas de valores actuais banalizaram a violência, não são os adolescentes que a banalizaram. A violência é objecto de jogos de vídeo e computadores, é passatempo de claques e grupos, entra a qualquer hora pelas nossas casas dentro. Estarão eventualmente recordados de que num estudo recente entre jovens namorados alunos do ensino superior se constatou, ao que parece com surpresa, um nível altíssimo de violência na relação.
Por outro lado, a escola, por ser o espaço onde os adolescentes passam a maior parte do seu tempo é, naturalmente, o espaço onde emergem e se tornam visíveis os problemas e inquietações que os alunos carregam. No entanto, não é possível considerar-se que a escola é mágica e omnipotente pelo que tudo resolverá. Tudo pode envolver a escola, mas nem tudo é da exclusiva responsabilidade da escola.
Apesar disso, creio que na escola, para além de muitíssimos outros aspectos, a violência entre jovens é um fenómeno complexo, existem duas questões que me parecem essenciais e contributivas para lidar com a situação. Em primeiro lugar é importante criar nos alunos vitimizados a convicção de que se podem queixar e denunciar as situações e encontrar dispositivos de apoio que garantam a protecção da vítima pois o medo de represálias é o principal motivo da não apresentação da queixa. è importante também que os actores da escola saibam detectar nos alunos sinais que indiciem vitimização.
Em segundo lugar, é preciso contrariar no limite do possível a ideia de impunidade, de que não acontece nada ao agressor. Nesta perspectiva e do meu ponto de vista, a intervenção de hoje de Marinho Pinto, Bastonário dos Advogados, manifestando-se contra a prisão preventiva dos autores da agressão e do responsável pela sua divulgação, é parte do problema. O Bastonário baseia-se numa interpretação sua da lei para fazer um discurso que objectivamente favorece a ideia de impunidade o que tem efeitos sociais devastadores. As escolas, tal como a comunidade em geral podem e devem assumir atitudes, discursos e montar dispositivos que, visivelmente, dêem aos indivíduos um sinal de que não existe tolerância para determinados comportamentos.
A agressão violenta entre os jovens não pode ser uma normalidade, algo de banal que já não ligamos.
A violência e o bullying entre adolescentes em contextos escolares ou na comunidade não serão, provavelmente, eliminados, mas poderão, acredito, ser minimizados, mas não só pela actuação da escola.

A PRISÃO, A VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA E O TRABALHO COMUNITÁRIO

Tal como o Público hoje refere tem vindo a aumentar o recurso à prisão domiciliária com a utilização da pulseira electrónica. Esta medida é tomada de acordo com alguns critérios e segundo os Serviços de vigilância electrónica a taxa de sucesso ronda os 94% o que parece sustentar esta alternativa.
Por outro lado, é também importante recordar que nos últimos anos tem vindo a acentuar-se o recurso à aplicação de penas de “trabalho a favor da comunidade” em vez da mais habitual medida de prisão. Segundo o Director Geral de Reinserção Social, em 2010 foram aplicadas 11166 penas deste tipo, enquanto em 1966 se contavam 124 casos.
Parece-me muito positivo este caminho, alternativo à prisão clássica, por assim dizer, que de há muito defendo sobretudo em situações que envolvam gente mais nova e conjugado com a obrigação de frequência de programas de formação escolar ou profissional.
Existe, no entanto, um discurso e um pensamento mais conservadores sustentados numa visão securitária que continuam a fazer-se ouvir defendendo a prisão como a medida mais correcta o que, comprovadamente, se reconhece não se verificar. Os estudos sobre a reincidência sugerem que as medidas de restrição de liberdade quando não acompanhadas por outro tipo de intervenção não a minimizam significativamente. Também se reconhece que frequentemente o universo prisional é uma escola e um factor de risco de agravamento de comportamentos de delinquência.
Como é óbvio tal entendimento não significa que nas situações de maior gravidade no crime cometido ou de risco de continuidade da actividade criminosa não seja de recorrer a medidas mais restritivas. De qualquer forma e sobretudo com gente mais nova a prisão dever ser de natureza excepcional e, desejavelmente, transitória.
Os comportamentos delinquentes são no fundo um desrespeito e agressão aos valores da comunidade pelo que parece lógico que em consequência desses comportamentos o seu autor seja colocado a desenvolver actividades que sirvam e “reparem” a comunidade “ofendida” e que, simultaneamente, forneçam sistemas de valores que possam influenciar e reabilitar os valores dos indivíduos envolvidos.
Apesar deste caminho de alteração na forma como a jusante lidamos com os comportamentos delinquentes de jovens e adultos, é fundamental que percebamos o que a montante contribui para a emergência desses comportamentos, ou seja, as causas. E também nesta matéria me parece de privilegiar intervenções de natureza comunitária.
Não há outro caminho.

TEMOS QUE SER AMIGUINHOS

A Senhora Ministra da Educação afirmou, refere o JN, que o país deveria funcionar como uma orquestra, em que todos os esforços individuais se conjugam para o resultado final.
A imagem utilizada pela Senhora Ministra que se encontrava num encontro regional de escolas de música, sendo apropriada ao contexto, é no mínimo curiosa se nos lembrarmos das dificuldades colocadas pela política do ME ao ensino artístico.
Por outro lado, estas palavras bonitas vêm na senda do famoso vídeo de arranque do ano lectivo. No seu habitual estilo materno-voluntarista a Dra. Isabel Alçada vem dizer que temos de ser amiguinhos e pensar sempre, mas sempre, no bem comum.
De facto, basta olhar para a cacofonia deprimente instalada na campanha eleitoral para se perceber com clareza como constituímos uma orquestra afinada em que apenas estará por definir o reportório que os maestros se propõem constituir para a orquestra.
Curiosamente as notícias que envolveram o ME a propósito dos edifícios da 24 de Julho e Parque Escolar mostram como afinada anda esta orquestra e, sobretudo, como todos remam, perdão, tocam, no mesmo sentido.
A Senhora Ministra da Educação saberá certamente que a conflitualidade de interesses complexa e agressiva e por vezes inconciliável nas sociedades actuais, transformam a metáfora da orquestra numa conversa destinada a crianças pequenas quando os adultos acham que por ser pequenas são parvas o que, deve dizer-se, acontece com bastante frequência.
Mas a Senhora Ministra é assim, optimista, ingénua e voluntariosa. É bonito. Temos que ser amiguinhos.

sábado, 28 de maio de 2011

AS TRAPALHADAS DO PORTUGAL DOS PEQUENINOS

A ver se eu consigo sintetizar e alguém me ajuda a perceber.
O Ministério da Educação era proprietário de um conjunto de edifícios na Avenida 24 de Julho. Certo.
O Ministério da Educação vendeu os edifícios a uma empresa pública, a Estamo. Estranho.
A empresa Estamo vendeu os edifícios à Parque Escolar, uma empresa pública tutelada pelo Ministério da Educação. Mais estranho ainda.
O Ministério da Educação paga uma renda mensal à Parque Escolar pelos edifícios da Avenida 24 de Julho que continua a ocupar. Agora já não é estranho, é uma trapalhada manhosa que a minha ignorância já não consegue acompanhar.
No entanto, dá para perceber como o universo das empresas públicas ou com capitais públicos são alavancas para esquemas duvidosos de gestão económica e financeira de bens resultantes dos nossos impostos.
O que é grave é que de uma forma geral e recorrente as entidades envolvidas nem se dêem ao trabalho de uma qualquer explicação que, no mínimo, devem a quem sustenta tal estado de coisas.
Ainda mais grave é que as trapalhadas do Portugal dos Pequeninos não são conjunturais, são estruturais.
Mudarão alguma vez?

ISTO NÃO ESTÁ NADA BEM

Uma equipa de investigação da Escola Nacional de Saúde Pública chegou à conclusão, refere o Público, de que cerca de 10% dos doentes que recorrem aos hospitais desenvolvem problemas de saúde acrescidos por erros de intervenção. Das pessoas afectadas, 10.8% acabam por falecer e também entre todos os casos ocorridos, apenas em 0.8% o próprio ou familiares são informados.
Estes indicadores não são substancialmente diferentes do que se verifica noutros países, o que não é mau.
Como é óbvio o factor erro está presente em qualquer actividade humana. A grande questão não é eliminá-lo mas, tanto quanto possível, minimizar o risco de ocorrência. No entanto, parece-me bem mais significativo e grave que só numa percentagem residual as pessoas vítimas destas circunstâncias ou os seus familiares sejam informadas do quadro real.
Se existem áreas em que a confiança nos profissionais e nas instituições é essencial, uma dessas áreas será a saúde, tal como a justiça, por exemplo.
Não podemos deixar instalar a ideia de que o recurso ao hospital seja uma ameaça pelo risco de erro profissional e de que, sobretudo, de que nada nos seja dito sobre o que nos acontece ou pode acontecer.
As dificuldades que enfrentamos são inúmeras, os níveis de confiança da maioria de nós face a diferentes aspectos estão já muito em baixo, todos os dias constatamos tal cenário.
Deixem-nos, pelo menos, confiar em que quando estamos doentes e procuramos ou precisamos de ajuda hospitalar, não vamos sofrer ou morrer com a ajuda.

TENHA PACIÊNCIA

Quando atentamos nos discursos anónimos dirigidos às dificuldades que enfrentamos parece emergir algum conformismo que pode ser sinónimo de desesperança ou resignação No entanto, algumas vozes alertam para a possibilidade de que este aparente conformismo se altere de forma turbulenta e com consequências imprevisíveis.
Esta atitude paciente recordou-me alguns episódios da minha infância que ainda agora me causam alguma perplexidade.
Na zona onde na altura habitava, era relativamente frequente que pessoas nos batessem à porta para, numa humilhante circunstância, pedir esmola, o mais degradante dos pedidos.
Nessa altura, sem a actual paranóia securitária que os tempos actuais determinam, ainda eram as crianças que acudiam a ver quem era. Eu assim fazia. E depois de verificar que era “um pobrezinho” (o tal tranquilizante diminutivo a que já uma vez me referi aqui no Atenta Inquietude) avisava a minha mãe. Sem eu nunca conseguir entender com que critérios, ela decidia dar ou não dar esmola, em dinheiro ou géneros. Mas a minha grande perplexidade, que se mantém até hoje, tem a ver com o facto de que, quando decidia não ser caridosa, a minha mãe mandava-me de volta para dizer ao pobrezinho “tenha paciência”. Devo dizer que ainda hoje esta memória me deixa embaraçado. Então o homem, ou mulher, não tem que comer, não tem trabalho, não leva ajuda ou apoio e ainda tem que ter paciência. É extraordinário como até como caridade se oferecia conformismo.
Será que é possível esperar que as pessoas a quem roubaram a dignidade, cuja vida se transformou numa luta diária pela sobrevivência e com um horizonte centrado no amanhã, manterão a paciência que, no fundo, os outros, nós, esperamos que mantenham?
A bem da tranquilidade, é claro.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

E A DIGNIDADE PÁ?

O retrato é mais ou menos este.
O desemprego atinge acima de 600 000 pessoas com a expectativa de que aumente, sendo que mais de um terço não acedem ao subsídio de desemprego.
Existem cerca de 200 000 pessoas que já desistiram de procurar trabalho, estão inactivas e nem sequer constam das estatísticas.
O JN titula em primeira página que “319 000 matam a fome nos Bancos alimentares”.
No Público informa-se que em 2010 se encontravam 16 000 pessoas com salários em atraso.
Sendo certo que existe uma forte actividade no lado escuro da economia e que algumas pessoas vivem na condição de subsidiodependentes, a esmagadora maioria das pessoas envolvidas neste retrato vêem ameaçado ou perderam o seu maior bem, a dignidade.
A comunidade não pode cair no mais perigoso dos estados, a indiferença.

PRENDER NÃO BASTA

Foi anunciada a detenção de dois dos jovens envolvidos no mais recente e conhecido episódio trágico de violência.
Esta detenção fornece um importante sinal de combate à ideia instalada de impunidade que tem efeitos devastadores na percepção de confiança e segurança da maioria de nós.
No entanto, sem querer de forma alguma branquear ou desculpar, longe disso, os comportamentos em causa, parece-me importante que se reflicta para além da óbvia e “fácil” decisão de prender.
A prisão, de que Portugal tem níveis altíssimos, apesar dos constantes e públicos apelos ao aumento de penas e de mais gente não pode ser a única solução sobretudo quando envolve gente mais nova.
É frequente reclamar o abaixamento da idade susceptível de prisão que actualmente se situa, creio, dos 14 aos 16 anos internamento fechado em Centro Educativo, e a prisão comum a partir dos 16.
Segundo dados da Direcção Geral de Reinserção, cerca de 40% dos adolescentes internados voltam aos Centros Educativos ou às prisões após os 16 anos. Esta altíssima taxa de reincidência, mostra a falência do Projecto Educativo obrigatoriamente definido para todos os adolescentes internados. Este Projecto Educativo assenta em dois eixos fundamentais, formação pessoal e formação escolar e profissional. É neste âmbito que o trabalho tem que ser optimizado. É imprescindível que os meios humanos e os recursos materiais sejam suficientes para que se minimize até ao possível os riscos de reincidência. Ao que é conhecido, um dos jovens agora detidos já tem antecedentes criminais.
Fica certamente mais caro lidar com a delinquência em adultos do que investir na qualidade dos Centros Educativos para que sejam, de facto, educativos.
Apesar de, repito, a detenção constituir um importante sinal de combate à sensação de impunidade instalada, é minha forte convicção de que só prender não basta.

A HISTÓRIA DO RAPAZ QUE ERA MAU

Era uma vez um Rapaz que mudou de escola. Na escola para onde o rapaz foi ouviu-se dizer, não se sabe a quem, que vinha um aluno novo que era Mau. É verdade que não se conheciam as maldades que tinha feito lá por onde tinha andado mas que era Mau, isso era.
Quando o Rapaz chegou toda a gente reparava no Mau, como lhe chamavam, e relacionava-se com algum cuidado. Ele estranhou um pouco mas foi percebendo que era melhor não dizer nada. Os colegas olhavam para ele com reserva e não tinham grandes liberdades nos ditos e nas brincadeiras. Afinal nunca se sabe como pode reagir um Mau a alguma coisa de que não goste.
Os professores até ficaram um bocado surpreendidos, tinham ouvido falar no tal Mau que estava para chegar e aquele rapaz até nem lhes parecia assim tão Mau, antes pelo contrário, andava, como dizem os miúdos, "na sua" sem grandes agitações. No entanto, à cautela, estavam sempre de sobreaviso e desconfiados à espera que o Mau começasse a mostrar que realmente era um Mau. Eles tinham certeza de que era uma questão de tempo, o Rapaz, mais cedo ou mais tarde, iria mesmo revelar que era Mau.
E os dias iam-se desenrolando assim, os colegas a procurarem ter uma boa relação com o Mau e os professores atentos e solícitos para que o Rapaz não mostrasse que era Mau.
Ninguém tinha percebido que o Rapaz viva cheio de medo que descobrissem que afinal não era Mau e a sua vida se complicasse, os colegas podiam destratá-lo e os professores deixariam de estar tão atentos.
É que ele chamava-se só Francisco e lá na escola onde andava tinha o hábito de sempre que os colegas falavam para ele, responder começando as frases por "mau, mau". Para o arreliar tinham-lhe posto a alcunha do Mau.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

OS JUÍZES QUE MAL AJUÍZAM

O JN de hoje chama a atenção para uma efeméride que merece reflexão. Em 27 de Maio de 1911, completar-se-ão amanhã 100 anos, foi publicada a Lei de Protecção da Infância que criou o Tribunal Tutorial da Infância que de forma pioneira começou analisar de forma diferente crianças e adultos. De facto, uma tradição de 100 anos na institucionalização da justiça dedicada à infância é merecedora de registo.
A fórmula hoje consagrada no nosso quadro jurídico, o supremo interesse da criança é, por assim dizer, o princípio estruturante dos actuais Tribunais de Família e de Menores.
A questão é que por demasiadas vezes as decisões destes tribunais são tomadas ao arrepio de qualquer ideia de protecção dos supremos interesses da criança. A título de exemplo, o Público refere um trabalho realizado a Universidade do Minho que evidencia como, apesar da lei ser tendencialmente igualitária, muitas das decisões dos Tribunais de Família em situações em matéria de divórcio e de tutela parental, entregam as crianças à guarda da mãe apenas porque é a mãe, ou seja, baseiam-se numa representação social instalada sobre os papéis e as funções atribuídas aos géneros.
De facto, muitas vezes aqui me referi às “delinquentes” decisões de alguns juízes que apenas devem reconhecer “o supremo interesse da criança” como figura jurídica e não como princípio fundador inalienável das decisões que envolvam o bem-estar de crianças e jovens.
São conhecidas muitíssimas situações em que as consequências destas criminosas e inaceitáveis decisões foram trágicas, quer em Portugal, quer fora. O que será preciso acontecer de novo para que se reflicta seriamente na actuação de muitos juízes em matérias que envolvam menores?
Este cenário evidencia a necessidade urgente de que os Tribunais de Família e de Menores existam em todos os círculos, o que está longe de acontecer, que sejam dotados dos recursos humanos necessários a uma tramitação célere dos processos em apreciação e, aspecto fundamental, que se desenvolva um sólido trabalho de formação dos juízes destes tribunais.
Em nenhuma circunstância e muito menos quando envolve menores a administração do direito não é apenas um exercício de amanuense administrativo.

UMA HISTÓRIA ESTRANHA

Não me apercebi muito bem como começou, mas de mansinho tiro os olhos do jornal que estava a ler e vou deixando que a atenção se fixe na televisão e no início do debate, anunciado segundos antes, entre os líderes dos principais partidos concorrentes às eleições que se aproximam.
A estranheza da história começa quando no ecrã vejo uma mesa com seis miúdos e miúdas, treze catorze anos não mais, vestidos, eles à "homenzinho", elas, naturalmente, à "mulherzinha". Um dos gaiatos era o moderador, deu para perceber quando apresentou os intervenientes.
A estranheza continuou, aí eu já estava definitivamente agarrado ao ecrã e o jornal caídos aos pés, quando começo a ouvir, a propósito de cada tema introduzido pelo moderador, cada um dos miúdo a apresentar serenamente ideias e propostas sobre as quais os outros participantes a discutiam com a maior tranquilidade conseguindo, para espanto meu, discutir as ideias e propostas em vez de se discutirem a si mesmos, sempre sem elevar a voz e com a maior cordialidade. O moderador nunca referiu tempos utilizados por cada um, limitava-se a introduzir os temas deixando que a conversa fluísse com calma.
O debate prolongou-se por bastante tempo e eu continuava a atento, concordando e discordando com o que ia ouvindo mas percebendo sem grande esforço as diferenças e semelhanças entre as várias perspectivas em apreço.
Quando acabou, fiquei a pensar que afinal deixaria a minha cómoda condição de absentista e iria votar nas propostas que tinha ouvido e que, do meu ponto de vista, melhor serviriam o país.
Os miúdos, todos, tinham sido claros e estavam muito bem preparados.
De repente, sou acordado pelo toque do telefone poisado à minha beira.
Enquanto atendia continuava com uma sensação entre o embaraço culpabilizante e uma ideia ainda mais estranha. Se ouvíssemos mais os miúdos talvez a coisa fosse um bocadinho diferente.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A ATITUDE DOS MÉDICOS E A COMUNICAÇÃO COM O DOENTE NO PAÍS REAL

Ao que refere o Público, no âmbito do Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho adaptado à carreira médica são identificados os parâmetros de avaliação deste grupo profissional.
Como é óbvio, a avaliação de desempenho é uma ferramenta imprescindível à promoção da qualidade e eficácia de pessoas e instituições pelo que faz todo o sentido definir um modelo de avaliação para os médicos.
As minhas dúvidas começam quando entre os critérios se enuncia produtividade e "atitude profissional e comunicação" com colegas, superiores, doentes e utentes.
Sabe-se que existem muitos milhares de pessoas sem médico de família que lutam por uma consulta, sem garantia de a conseguir, indo a meio da noite para a porta do centro de saúde. Sabe-se que existem médicos de família que são responsáveis por milhares de doentes. Muitas das pessoas que recorrem às consultas são idosas que frequentemente sofrem de solidão que se minimiza no convívio com outros sós na sala de espera e na atenção de um médico que escuta, por vezes, mais a dor da alma que as dores do corpo.
Neste cenário como avaliar "atitude" e "comunicação". Já estive envolvido em circunstâncias, pessoais ou acompanhando familiares, em que o médico claramente estava pressionado pelo tempo que (não) podia dedicar, a atitude que não podia demonstrar, a comunicação que não podia estabelecer. As muitas pessoas com horas de espera na sala inibem-no na "atitude e comunicação" e pressionam-no na "produtividade".
Insisto que não está em causa a avaliação e a sua necessidade. Mas a realidade de muitos do centros de saúde em Portugal é ela própria a maior ameaça à "produtividade" e à "atitude e comunicação".

O GLUTÃO

O mercado não vai parar de nos surpreender. Agora chegou a Portugal o Glutão, um boneco que mama, chora para mudar de seio e arrota. Lindo menino (a).
Para completar o cenário, o Glutão é vendido com um dispositivo que as meninas (é um brinquedo para meninas) vestem e que simula uns seios aos quais se fixa o Glutão. Extraordinário, se não fosse pateta e disparatado, como bem refere no Público o Professor Mário Cordeiro, homem sensato e conhecedor de miúdos.
Para o seu desenvolvimento equilibrado e saudável os miúdos e miúdas não precisam de acelerar o tempo e amamentarem com seios artificiais aos seis, sete ou oito anos. A brincadeira necessária e promotora de desenvolvimento não tem nada a ver com o disparatado uso de seios postiços para fingir que alimentam um boneco que, por sua vez, chora para mudar de seio e arrota, num final feliz de bem alimentado. Curiosamente, na mesma peça, o psicanalista Carlos Amaral Dias acha absolutamente normal a situação. Que ele possa achar “normal” parece-me legítimo, a normalidade é algo de elástico e com uma latitude considerável. No entanto, o tempo dos miúdos, das fantasias e dos “faz de conta” têm limites que Carlos Amaral Dias devia conhecer e entender. Nem tudo serve para tudo.
Uma última nota para o nome Glutão. Aqui já a escolha me parece mais feliz. O brinquedo tem sido um sucesso de vendas pelo que Glutão parece um nome apropriado. A venda massiva não me espanta e não serve para explicar a bondade de um produto. Existe algo a que se chama manipulação que ajuda a entender.
Os mercados raramente se enganam.

AS CRIANÇAS DESAPARECIDAS QUE ESTÃO À VISTA

O calendário das consciências manda que hoje estejamos atentos às Crianças Desaparecidas. Segundo a Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas, no DN, em 2010 e nos primeiros meses de 2011 registaram-se 168 casos de desaparecimento de crianças com menos de 12 anos.
A este propósito algumas notas. Embora se saiba que muitos dos casos reportados acabem por ter, por assim dizer, um final feliz, o desaparecimento é temporário, reactivo a incidentes ou a resultados escolares, ou existe envolvimento dos próprios pais, alguns transformam-se em tragédias sem fim como o caso do Rui Pedro, desaparecido há 13 anos.
Uma situação desta natureza é uma tragédia absolutamente devastadora numa família. Nós pais, não estamos "programados" para sobreviver aos nossos filhos, é quase "contra-natura". Se a este cenário acresce a ausência física de um corpo que, por um lado, testemunhe a tragédia da morte mas, simultaneamente, permita o desenvolvimento de um processo de luto, a elaboração da perda como referem os especialistas, que, tanto quanto possível, sustente alguma reparação e equilíbrio psicológico e afectivo na vida familiar a situação é de uma violência inimaginável.
No entanto e a este propósito, creio que vale a pena não esquecer a existência de muitas crianças que estão desaparecidas mas à vista, situações que por desatenção e menos carga dramática passam mais despercebidas. Este cenário que afecta milhares de crianças e, por vezes, também assumem consequências devastadoras.
Muitas crianças vivem quase abandonadas dentro das famílias, sós e sem a atenção que necessitam para crescer. Vão sobrevivendo fechadas em ecrãs e em companhia de outra gente tão desaparecida quanto eles. Nestas situações só quando algo de mais complicado acontece é que se nota como estavam desaparecidas da atenção dos adultos, desaparecidas da preocupação dos adultos.
Com mais atenção teríamos, certamente, menos crianças desaparecidas.

FINALMENTE. No Facebook

Sim, é verdade, sempre afirmei que não alinhava na rede mas como sabem a carne é fraca. Era um desperdiçar de amigos que começava a embaraçar.
Logo que nasci registaram-me, deram-me um nome, José, e deram-me uma Cédula Pessoal, fiquei pessoa, Zé pessoa, é bom, lembro-me de puxar por ela para me matricular na escola primária.
Aos dez anos para poder realizar aquele intimidante exame da quarta classe tirei o Bilhete de Identidade, fiquei, assim, uma pessoa, um Zé com identidade. Foi importante, as fotos da época atestam a pose, a gravata e sobretudo o cabelo com uma popa de brilhantina feita pelo Américo Barbeiro com o maior dos esmeros, era o exame da quarta classe e o Mestre Barbeiro caprichou.
Aos dezoito anos fui à inspecção militar, deram-me uma caderneta militar e disseram que tinha sido o dia mais importante da minha vida porque, cito "tinha entrado mancebo no quartel e saído homem". A minha estranheza e o pedido de explicação motivaram um castigo no meu primeiro e único dia de relação com a instituição militar. Em todo o caso, a partir daquele dia a Pátria ganhou mais um "apto para todo o serviço".
A cidadania ganhou mais uma dimensão quando consegui o cartão de eleitor, não que pudesse eleger, alguns ainda se lembram, houve tempos em que não podíamos eleger.
Há pouco tempo atingi mais um patamar nesta narrativa, o de cidadão encartado, entreguei uma série de cartões e fiquei um Cidadão, com cartão é claro.
Hoje cumpriu-se o destino, entrei na rede, passei a existir, já me sentia um alienígena sem expressão social e, tinha que ser, aderi ao Facebook.
Estou certo que nos encontraremos por aqui e por lá, afinal vamos ser amigos.
Imagino.

A NORMALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA

O bullying em contexto escolar é tão antigo quanto a instituição escolar, sendo certo, no entanto, que a designação é recente e o estudo do fenómeno também. A violência entre jovens fora do contexto escolar também está longe de ser um fenómeno novo. Actualmente, é também mais objecto de referências fora dos contextos educativos pois o volume e a gravidade de algumas situações, bem como a divulgação dos estudos e alguma mediatização verificada, colocaram este problema na agenda.
Em vários estudos constata-se que os adolescentes tendem encarar a violência entre si como normal. Creio que é inquietante mas não pode ser surpreendente, veja-se o vídeo que hoje enche a imprensa. A escola, desde sempre, espelha as realidades sociais e o quadro de valores prevalecente nos contextos que serve. A sociedade da informação e os sistemas de valores actuais banalizaram a violência, não são os adolescentes que a banalizaram. A violência é objecto de jogos de vídeo e computadores, é passatempo de claques e grupos, entra a qualquer hora pelas nossas casas dentro. Estarão eventualmente recordados de que num estudo recente entre jovens namorados alunos do ensino superior se constatou, ao que parece com surpresa, um nível altíssimo de violência na relação.
Por outro lado, a escola, por ser o espaço onde os adolescentes passam a maior parte do seu tempo é, naturalmente, o espaço onde emergem e se tornam visíveis os problemas e inquietações que os alunos carregam. No entanto, não é possível considerar-se que a escola é mágica e omnipotente pelo que tudo resolverá. Tudo pode envolver a escola, mas nem tudo é da exclusiva responsabilidade da escola.
Apesar disso, creio que na escola, para além de muitíssimos outros aspectos, a violência entre jovens é um fenómeno complexo, existem duas questões que me parecem essenciais e contributivas para lidar com a situação. Em primeiro lugar é importante criar nos alunos vitimizados a convicção de que se podem queixar e denunciar as situações. Os directores de turma, figura central nas escolas mas com um papel muitas vezes negligenciado, teriam aqui um trabalho fundamental, podem definir-se canais e dispositivos de apoio que garantam a protecção da vítima pois o medo de represálias é o principal motivo da não apresentação da queixa e ainda detectar junto dos seus alunos sinais que indiciem vitimização. Em segundo lugar, é preciso contrariar no limite do possível a ideia de impunidade, de que não acontece nada ao agressor. As escolas podem assumir atitudes, discursos e montar dispositivos que, visivelmente, dêem aos alunos um sinal de que não existe tolerância para determinados comportamentos.
A violência e o bullying entre adolescentes em contextos escolares ou na comunidade não serão, provavelmente, eliminados, mas poderão, acredito, ser minimizados, mas não só pela actuação da escola.

terça-feira, 24 de maio de 2011

E NÃO SE PODE FAZER UMA ATENÇÃOZINHA?

Segundo o último relatório da Transparency International, Portugal é um dos 21 países em que existe "pouca ou nenhuma implementação" da Convenção anti-corrupção da OCDE. No mesmo relatório sugere-se o aumento das penas para este tipo de crimes e, naturalmente, mais eficácia e empenho no seu combate. Neste contexto faz também sentido lembrar que os últimos indicadores do Barómetro Global da Corrupção, também no âmbito da Transparency International, mostram que 83% dos portugueses acham que piorou a questão da corrupção e 75% não acredita na eficácia do combate.
Neste quadro parece-me importante não esquecer que a economia paralela representa cerca de 24% do PIB português, facto que, do meu ponto de vista, não deve ser desligado do fenómeno da corrupção.
Este outro lado da economia que envolve desde a fuga de capitais para paraísos "offshore" à habilidade individual da ausência de recibo no dia a dia, está completamente enraizado, é apenas uma questão de escala.
Este funcionamento quase que faz parte da nossa cultura, a do "dar um jeitinho", "fazer uma atençãozinha". Diversas vezes aqui tenho me referido a esse "traço" da nossa cultura cívica "a atençãozinha" ou à sua variante "dar um jeito". Trata-se de um fenómeno, um comportamento generalizado e com o qual parecemos ter uma relação ambivalente, uma retórica de condenação, uma pontinha de inveja dos dividendos que se conseguem e a tentação quotidiana de receber ou providenciar uma "atençãozinha" ou pedir ou dar um jeito, sempre "desinteressadamente", é claro.
Por outro lado, sentimos todos algo de muito significativo, acreditamos que não existe vontade política de combater a corrupção. A teia de interesses que ao longo de décadas se construiu envolvendo o poder político, a administração pública, central e autárquica, o poder económico, o poder cultural, a área da justiça e segurança, parte substantiva da comunicação social e toda a relação do dia a dia com a "atençãozinha" à recepcionista que nos passa para a frente na lista de espera ou ao funcionário de quem esperamos que possa dar um "jeito", dificulta seriamente um combate eficaz e mudança cultural nesta matéria. Este combate passará, naturalmente, por meios e legislação adequada, mas passa sobretudo pela formação cívica que promova uma outra cidadania. Estarão lembrados que há algum tempo atrás foram divulgados estudos evidenciando a nossa atitude tolerante para com a corrupção.
Certamente que poderíamos viver sem a "atençãozinha" ou o "jeitinho", mas não era a mesma coisa.

OS RESIGNADOS TRANSPARENTES

Devo confessar que fiquei verdadeiramente impressionado com um dado divulgado hoje e que, aliás, comentei num outro texto aqui deixado. Cerca de 200 000 pessoas terão deixado de procurar emprego, estão inactivas e não entram nas estatísticas do desemprego, a tal percentagem que a sondagem nunca mostra.
A maioria desta pessoas são mulheres e esta situação de inactividade parece decorrer, sobretudo da idade e das baixas qualificações.
Esta franja enorme de resignados, de desistentes, de pessoas a quem a vida roubou a dignidade constitui um verdadeiro murro no estômago, embora o nosso estômago vá ficando progressivamente mais resistente.
Estas pessoas que sabemos existir, mas não conseguimos identificar, têm, como outros grupos, a condição de transparentes sociais, o nosso olhar varre a paisagem humana à volta sem os distinguir.
Alguns relatos são absolutamente dramáticos e mostram como a perda da dignidade, alimenta a desesperança e a queda para dentro de si, no meio de todos. Mas são transparentes, já nem dos números constam.
No meio deste quadro emerge uma revoltante cacofonia circense, chama-se campanha eleitoral, em que aqueles que se propõem governar-nos se entretêm com minudências e umbiguismos pessoais de luta pelo poder que é mais uma pedrada na dignidade ferida ou roubada de milhares, muitos milhares, de portugueses.
Esta gente, os resignados transparentes, já nem tem, como diria o Sérgio Godinho no "Romance de um dia na estrada", um dia fraco, outro forte, só tem tempos fracos.
Só lhes resta mesmo, um dia a menos para a morte.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

AS CRIANÇAS REJEITADAS, AS ABANDONADAS E AS ADOPTADAS

O Público de hoje aborda a questão da adopção infantil em Portugal matéria que frequentemente aqui refiro. De 2008 para cá tem vindo a baixar significativamente o número dos candidatos à adopção e continuamos com uma elevada quantidade de crianças institucionalizadas, muitas das quais sem projectos de vida viáveis pese o empenho e os técnicos. Neste universo acresce a dificuldade enorme de algumas crianças em serem adoptadas devido a situações como doença, existência de irmãos ou uma idade já elevada. Assim, muitas crianças estarão mesmo condenadas a não ter uma família. Curiosamente, existem famílias interessadas na adopção de bebés que esperam até cinco anos porque entre os mais pequeninos passíveis de adopção, o número é menor.
As razões apontadas para o abaixamento das candidaturas prendem-se com questões económicas, um filho é um bem caro, mas também com o peso processual de uma iniciativa de adopção que leva a que a espera média de uma família se situe nos três anos segundo estudo realizado pela DECO. Como é óbvio, um processo de adopção é algo cuja qualidade não pode em momento algum ser hipotecada e o Plano Nacional de Adopção zela por isso. No entanto, parece claro que o processo carece de agilização de modo a que os candidatos à adopção não desistam assustados com a morosidade.
Ainda a propósito da questão da adopção e dos cuidados familiares aos miúdos algumas notas já aqui deixadas sobre as crianças abandonadas, rejeitadas e adoptadas.
Por estranho que possa parecer, existe uma outra realidade, menos perceptível em termos globais, mas conhecida por aqueles que lidam de mais perto com as crianças e que remete para a quantidade enorme de situações de crianças abandonadas e rejeitadas dentro das famílias, algumas destas famílias até com um funcionamento aparentemente normal.
Pode parecer surpreendente esta abordagem, mas muitas crianças vivem em famílias, diferentes tipos de família, que, por variadíssimas razões, as não desejam, as não amam, apenas as toleram, cuidam, pior ou melhor, sobretudo nos aspectos "logísticos". Em alguns casos, são mesmo crianças a que "não falta nada", dizem-nos. Na verdade falta-lhes o essencial, o abrigo de uma família.
Quando penso nestas situações lembro-me sempre de uma expressão que ouvi já há algum tempo a Laborinho Lúcio num dos encontros que tenho tido o privilégio de manter com ele.
Dizia Laborinho Lúcio que "só as crianças adoptadas são felizes, felizmente a maioria das crianças são adoptadas pelos seus pais”. Na verdade, muitas crianças não chegam a ser adoptadas pelos seus pais, crescem sós e abandonadas.
Existem mais crianças a viver narrativas desta natureza, abandonadas e ou rejeitadas dentro da família, do que se pode imaginar.

OS MANUAIS SEM ACORDO

O JN de hoje noticia que no próximo ano lectivo existirão alunos que estudarão por manuais escolares elaborados segundo o Acordo Ortográfico e, simultaneamente, poderão utilizar manuais com a escrita anterior ao Acordo, uma vez que só manuais adoptados este ano o respeitarão. Segundo o jornal, apenas os alunos do 2º ano terão todos os manuais adaptados. Está também definido que os professores deverão ensinar respeitando as novas regras ortográficas.
Não vou discutir de novo a pertinência e justificação do Acordo, não me convenço e enquanto for permitido manterei a escrita antiga, mas vamos cair numa situação curiosa.
São conhecidas e reconhecidas as dificuldades sentidas pelos nossos alunos no domínio da língua portuguesa escrita que, aliás, muitos estudos internos e internacionais sublinham.
Por outro lado, já o tenho referido no Atenta Inquietude, uma das características do nosso sistema educativo é o que designo por uma "excessiva manualização", ou seja, boa parte do trabalho realizado pelos alunos assenta no manual e respectivo caderno de exercícios.
Se pensarmos num cenário em que professores ensinam de uma forma e os manuais e exercícios solicitam outra tipo de resposta está instalado um ruído bem dispensável e que a confirmar-se a situação, criará muitíssimas dificuldades a alunos e professores acentuando os problemas já sentidos.
Este tipo de problemas era o que menos fazia falta a um universo que carece de tranquilidade, clareza, rumo, avaliação e regulação da qualidade.
Mais confusão não.

A GENTE VAI VIVER DE QUÊ?

Segundo o Público existirão cerca de 200 000 pessoas que já terão desistido de procurar emprego e que não constam dos números do desemprego, 688 000 pessoas o que corresponde uma taxa de 12,4%. Estas pessoas inactivas, devido à idade ou à falta de habilitações e em situação de desesperança, aumentariam, se fossem contabilizadas, a taxa de desemprego para 15,5%.
Sabemos também que entre os desempregados registados perto de metade não têm actualmente subsídio de desemprego devido aos ajustamentos nos apoios sociais. Sabe-se também que o memorando assinado com a FMI, BCE e FEEF obrigará o próximo governo a maiores cortes nesta áreas pelo que emerge uma terrível e angustiante questão. Esta gente vai (sobre)viver de quê?
Sendo de esperar um período recessivo e, portanto, sem crescimento, torna-se impossível criar a riqueza necessária e redistribuí-la de forma socialmente mais justa para minimizar esta tragédia.
É certo que em Portugal a chamada economia paralela corresponde a cerca de 24% do PIB e muita gente e muitas actividades estão envolvidas neste universo mas o potencial impacto social destes números é, no mínimo inquietante.
A questão mais estranha é que na campanha eleitoral que agora se iniciou seria imprescindível que os diferentes candidatos e projectos nos dissessem, entre outras coisas, como se propõem lidar com estes problemas, como lidar com perto de um milhão de portugueses fora do mercado de trabalho durante os próximos tempos e, muitos deles, sem apoios sociais que minimizem a luta pela sobrevivência.
Quando oiço as intervenções dos líderes as inquietações avolumam-se. Continuam centrados na luta pelo poder, na construção e rejeição de cenários de poder mas sem nos esclarecer o que de estrutural pensam fazer com esse poder que se propõem conquistar ou manter. Enredam-se em assuntos colaterais e irrelevantes face aos verdadeiros problemas e assistir a estes espectáculos chega a ser insultuoso.
A gente vai viver de quê?

VAIS APANHAR. Outro diálogo improvável

João Pedro, eu vou-te bater.
...
Não te aviso outra vez. Vais apanhar não tarda.
...
És mesmo teimoso. Depois se apanhares choras.
...
Já estou cansada de gritar, vais mesmo apanhar.
...
Dás cabo da minha paciência, vou ter que te bater.
Ó mãe, mas eu não estou a fazer nada.
É para não fazeres, levas mesmo. Ouviste?
Mas eu não estou a fazer nada, já disse, olha.
Não me respondas, levas mais.
Mas eu não percebo porquê.
É para aprenderes a não ser teimoso e fazer o que te digo.
Então mas eu não fiz nada, estou quieto.
Acabou-se. Nem mais uma palavra. Senão ainda te bato.

Este diálogo improvável, como todos os outros, foi inventado no mundo da realidade.

domingo, 22 de maio de 2011

OS CAMINHOS DO ENSINO SUPERIOR

O Público de hoje apresenta um trabalho muito interessante sobre o universo do ensino superior em Portugal sublinhando, entre outros aspectos, um forte enviesamento da oferta em várias dimensões.
O ensino superior em Portugal é, como muitíssimas outras áreas, vítima de equívocos e de decisões políticas nem sempre claras. Uma das grandes dificuldades que enfrenta prende-se com a demissão durante muito tempo de uma função reguladora da tutela que, sem ferir a autonomia universitária, deveria ter acautelado o completo enviesamento da oferta, pública e privada, que se verifica. Um país com a nossa dimensão não suporta tantos estabelecimentos de ensino superior, sobretudo, se atentarmos na qualidade. As regiões e autarquias reclamam ensino superior com a maior das ligeirezas. Durante algum tempo a pressão vinda da procura e a incapacidade de resposta do subsistema de ensino superior público associada à demissão da tutela da sua função reguladora, promoveu o crescimento exponencial do ensino superior com situações que, frequentemente, parecem incompreensíveis à luz de um mínimo de racionalidade e qualidade. Portugal contará com cerca de 160 instituições de ensino superior, como indicador relativo temos um rácio de 17,4 estabelecimentos por milhão de habitantes, enquanto a Espanha apresenta 7, um dado extraordinário.
Nesta matéria, a qualidade e o redimensionamento da rede, espera-se que o processo em curso de Avaliação e Acreditação gerido pela A3ES se revele um forte incentivo. Aliás, dados já divulgados apontavam para a descontinuidade de 1221 cursos o que é significativo. Temos uma oferta de ensino superior, universitário, politécnico e subsistema privado, completamente distorcida, cuja responsabilidade é, como disse, da tutela que se demitiu durante décadas da sua função reguladora escudando-se na autonomia universitária, designadamente no sistema público. Uma consulta à oferta de licenciaturas e mestrados por parte do ensino superior público e privado mostra com imperiosa se torna a racionalização dessa oferta.
Espera-se, no entanto, que o processo de avaliação e acreditação agora desencadeado, seja eficaz, não desenvolvido de uma forma cega e resistente às pressões políticas e dos lobbies que se alinham na defesa dos seus pontos de vista que, frequentemente remetem mais para questões de rentabilidade económica e influência política, do que da qualidade e da justificação científica.
Por outro lado, quando se referem questões de empregabilidade como critério de organização da oferta educativa importa considerar a necessidade de existência de cursos que apesar de alguma menor empregabilidade potencial, se inscrevem em áreas científicas de que não podemos prescindir com o fundamento exclusivo no mercado de emprego. Podemos dar como exemplo formações na área da filosofia ou nichos de investigação que são imprescindíveis num tecido universitário e social moderno. Será também importante que o processo permita desenvolver e incentive modelos de cooperação, universitário e politécnico, público e privado, que potencie sinergias, investimentos e massa crítica.
O enviesamento da oferta de que acima falava, alimenta a formação em áreas menos necessárias e não promove a formação em áreas carenciadas. Tal facto, conjugado com o baixo nível de desenvolvimento do país e com uma opinião publicada pouco cuidadosa na informação, leva a que se tenha instalado o equívoco dos licenciados a mais e destinados ao desemprego, quando continuamos a ser um dos países da UE com menos licenciados, já o disse aqui muitas vezes.

OS DISCURSOS DA CONFIANÇA

O Bastonário da Ordem dos Psicólogos entendeu por bem vir a terreiro referir-se à forma como os discursos e comportamentos da generalidade das lideranças políticas são pouco promotoras de confiança e da construção de expectativas positivas.
Em diferentes ocasiões tenho referido no Atenta Inquietude a importância do que tenho designado exactamente por uma dimensão psicológica da crise, a confiança, ou, mais claramente, a falta de confiança. Esta importância verifica-se em termos individuais, quando nos sentimos confiantes, sentimo-nos mais capazes, verifica-se em termos de grupo, a título de exemplo, uma equipa de futebol confiante será seguramente mais eficaz, verifica-se de forma genérica em qualquer instituição e, finalmente, poderemos também dizer que sociedades mais confiantes sentir-se-ão mais capazes de enfrentar dificuldades.
Assim sendo, parece importante que as lideranças, entre todas as suas competências e acções, sejam capazes e competentes no sentido de transmitir confiança. Acontece que as nossas lideranças, em matéria tão importante, subordinam, como sempre, as suas acções aos interesses imediatos, sobretudo partidários, ou seja, basicamente, quem governa faz discursos excessivamente optimistas, que muitas vezes parecem negar a realidade, pintando-a de rosa e quem está na oposição produz discursos e visões catastrofistas. Como é óbvio, os cidadãos têm cabeça, qualquer dos discursos são um péssimo contributo à confiança realista e informada que precisamos de sentir face a dificuldades e a desafios complexos.
Nos últimos tempos, em que se têm acentuado as consequências dramáticas da crise a nível do emprego e da diminuição dos apoios sociais por exemplo, seria ainda mais necessário um discurso que contribuísse para identificar um rumo e promovesse e envolvesse os cidadãos na convicção e confiança de que seremos certamente capazes de ultrapassar, ainda que com momentos dolorosos, os tempos que vivemos.
O problema é que muita desta gente e dos seus discursos e comportamentos são parte do problema, dificilmente serão parte da solução.

sábado, 21 de maio de 2011

AS ARRUADAS

Deve haver uma qualquer razão que eu próprio não consigo entender muito bem, mas quando se aproximam campanhas eleitorais gosto imenso de observar um evento que dá pelo nome de “arruadas”, o passeio de um qualquer candidato pela via pública ou por espaços públicos, designadamente as feiras embora concorram com as praças. É certo que em qualquer altura a deslocação de uma figura política ao que gostam de chamar o “país real” é já uma amostra, mas em campanha pela conquista de mais um voto o espectáculo é deveras estimulante. Sim, eu sei que é estranho mas mesmo assim acho piada.
Tentem entender o meu ponto de vista e reparem, por exemplo, no comportamento e atitude das figuras de segunda linha que aparecem sempre coladas aos “importantes”. Normalmente, seguem um passo atrás de qualquer entidade que leve uma câmara de televisão a segui-la. Os figurantes constituem um grupo numeroso. Por este facto, nem sempre cabem no ecrã e então, assiste-se, por vezes de forma pouco discreta ao esforço para aparecerem. Compõem um sorriso circunspecto e enquanto a entidade é entrevistada é ver os figurantes a inclinar a cabeça em sinal de aprovação ao mesmo tempo que procuram compor um ar inteligente e condescendente para com a comunicação social. Têm a secreta esperança de merecer um primeiro plano que constitua prova de vida.
Acho também muito estimulante o papel dos “operacionais”, quase sempre os elementos das “juventudes partidárias” os que fazem o alarido, agitam as bandeiras e gritam as palavras de ordem e que, numa preventiva iniciativa para que não fiquem tão à rasca mais tarde, vão fazendo a sua formação que lhes permita uma carreira aparelhística ou, pelo menos, a esperança de um empurrãozinho na vida profissional.
Uma outra parte do espectáculo é o comportamento dos anónimos que se cruzam com a arruada e expressam o que lhes vai na alma face às cores do desfile fazendo com que a arruada pare ou acelere o passo em busca de melhor ambiente. Outra gente anónima que entra na arruada é a que se bate pelos brindes que obrigatoriamente são distribuídos pelas segundas figuras da comitiva. A luta e o melhor posicionamento pela conquista de um boné, saco ou esferográfica é um exemplo de empreendimento e esforço que se esperam recompensados.
Mas o que eu gosto mesmo, é de ver o entusiasmo com que a generalidade dos candidatos é abraçado e abraça muitíssimas vezes, distribui beijinhos pelas criancinhas e velhinhas com um carinho e de uma forma tão genuína que enternece. Então nestes dias de calor a coisa é ainda mais agradável e o ar fresco e disponível dos candidatos é de uma autenticidade convincente. Acho mesmo que as eleições nunca deveriam realizar-se no Verão pois as arruadas fazem-se melhor com tempo fresco.
Não sei se vos convenci, mas como diz o povo, “cá p´ra mim” as arruadas são mesmo o que de melhor as eleições têm. O resto é conhecido e pouco interessante.

A HISTÓRIA DO HOMEM DO AVESSO

Era uma vez um Homem que vivia do avesso, diziam as pessoas. Tudo começou cedo. Em pequeno o Homem chorava e fazia birras e os pais exclamavam “é mesmo ao avesso, não se cala com nada”. Ao entrar na escola, a situação manteve-se pois o Homem tinha tendência para fazer ao contrário do que lhe pediam, falava quando era para estar calado, imaginava quando era para copiar, protestava com facilidade e ria-se quando devia estar sério. Os professores sempre acharam que tinham um aluno do avesso. Quando acabou de crescer do avesso continuava, diziam. Arranjou um emprego esquisito, ganhando pouco, mas também trabalhando pouco, para ter tempo para ler. Ainda protestava, quando o tempo era de estar calado. Aliás, passava o tempo a dizer que as pessoas se calavam a tudo o que lhes acontecia. Nunca teve um carro e passava as curtas férias num banco de jardim onde continuava os seus protestos. Toda a gente achava que o Homem continuava do avesso.
Um dia, cansado, resolveu calar-se definitivamente, não falar com ninguém. Ninguém mais lhe ouviu uma palavra. As pessoas afirmavam, “agora é um tipo às direitas” e o Homem continuou infeliz para sempre.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

VENDE-SE PORTEFÓLIO REFLEXIVO DE APRENDIZAGEM

No âmbito do alarido entre Sócrates e Passos Coelho sobre o Programa Novas Oportunidades, de que ambos um dia podem vir a precisar, o I retoma a sua peça de há uns tempos sobre eventuais fraudes na aquisição de certificações e que aqui comentei.
O caso reportava existência acessível e a preços razoáveis, de materiais para constituir uma peça notável e extraordinariamente inovadora chamada Portefólio Reflexivo de Aprendizagem, (quem terá inventado tal pérola de tão fino recorte científico?), algo considerado imprescindível ao processo de qualificação.
Estamos todos de acordo que um dos nossos principais problemas e, portanto, um dos principais desafios que como país enfrentamos, é o da qualificação dos nossos cidadãos.
Dito isto, parece obviamente importante que sejam desenvolvidos os dispositivos adequados à qualificação das pessoas. É neste contexto que apareceu o Programa Novas Oportunidades, sobre o qual afirmei no início "O lançamento de um Programa com o objectivo de estruturar e incrementar os processos de qualificação de sujeitos que abandonaram o sistema é, obviamente de saudar. Parece-me também de sublinhar o interesse e significado que o Reconhecimento e Validação de Competências pode assumir para pessoas com largo trajecto profissional, sem certificação escolar, mas que tiveram acesso a um processo de reconhecimento de competências profissionais entretanto adquiridas e a aquisição de equivalências aos processos de escolarização formal".
No entanto, o desenvolvimento posterior do Programa e as sucessivas intervenções dos responsáveis do Programa, o Comissário Capucha e o inenarrável Dr. Lemos por exemplo, rapidamente evidenciaram, e evidenciam, o enorme equívoco, ou melhor, embuste, de confundir qualificação com certificação, ou seja, é possível passar milhares de certificados de 9º e 12º anos num mês mas é, obviamente, impossível qualificar milhares de pessoas em tão pouco tempo. É neste quadro que se tem desenvolvido o Programa e que é bem conhecido por parte de quem acompanhe os Centro Novas Oportunidades onde, pese o esforço e dedicação de muitos técnicos, se verifica uma enorme pressão para que se "produzam" certificados.
Voltando ao início, o aumento exponencial de pessoas com certificados seria uma boa notícia, se todo este processo não estivesse inquinado por um fingimento que embaraça.
Talvez conheçam aquela história sobre uma mãe que ao ser informada pela escola de que o filho chumbaria no 9º ano pela segunda vez, respondeu, "Não pode ser, o meu filho não pode chumbar, eu tirei o 9º ali no Centro de Oportunidades e foi o meu filho que me fez o trabalho que não eu percebo nada de computadores e agora vão chumbá-lo, não pode ser".
É só uma anedota e não passará disso mesmo. Ou não.

A JUSTIÇA EM ALERTA VERMELHO

De há uns tempos para cá fomo-nos familiarizando com a emissão de alertas. Se chove vêm os alertas, se faz frio, vêm os alertas, se faz calor vêm os alertas, se faz vento vêm os alertas, se não acontece nada vêm os alertas.
Tenho até para mim que a banalização de emissão de alertas pode desencadear um efeito perverso levando ao desenvolvimento de uma atitude de indiferença pois tendemos pela habituação a desvalorizar o aviso.
Deve ser o mesmo fenómeno que se passa na justiça portuguesa. Apesar de não ter havido a emissão formal de alertas o que se tem passado ao longo de décadas no sistema de justiça português fez bater no fundo os níveis de confiança e credibilidade. São recorrentes a demora, a manha nos processos judiciais com a utilização de legislação complexa, ineficaz e cirurgicamente construída para ser manhosamente usada por quem a construiu. É uma justiça manifestamente marcada pelas desigualdades de tratamento, etc.
Nos últimos dias os agentes da justiça têm insistido em oferecer-nos mais alguns exemplos deprimentes do estado a que a justiça chegou.
Estou a lembrar-me do delinquente e terrorista acórdão do Tribunal da Relação do Porto que absolve um médico psquiatra que, comprovadamente, violou uma paciente grávida e com depressão porque, refere o acórdão, não foi violento. Hoje temos mais uma referência ao episódio pouco edificante que envolve pagamentos extras a uma procuradora que é mulher do Ministro da Justiça sendo que outros colegas nas mesmas condições não o obtiveram e a decisão notável de um procurador que mandou em paz uma colega que apanhada em flagrante a conduzir alcoolizada e em contramão por uma movimentada rua de Cascais, sendo que a decisão foi posteriormente justificada com um arrazoado de considerações de natureza jurídico-processual que só servem que o cidadão comum se convença da protecção corporativa.
Lamentavelmente, este tipo de situações já não nos surpreende, apenas acentua um aspecto que do meu ponto de vista mais fragiliza a vida democrática, a falta de confiança dos cidadãos num pilar essencial das sociedades, a justiça.
Também aqui a recessão afunda-nos, a confiança definha e a retoma tarda. O que é tão grave, ou mais, como o que se verifica na vida económica.

NÃO É POR MEDIR MUITAS VEZES A FEBRE QUE ESTA BAIXA

A temática da introdução de mais momentos de avaliação no nosso sistema educativo é recorrente e cíclico. O CDS-PP no seu programa eleitoral defende a introdução de exames nacionais em todos os ciclos e o ME promove a realização, ainda que com carácter facultativo, de provas de âmbito nacional no 2º ano do 1º ciclo.
Estas provas promovidas pelo ME a que muitas escolas aderem, cumprem o objectivo de procurar indicadores sobre a eficácia do sistema, o que me parece importante no sentido de promover qualidade, exigência e rigor no sistema educativo esperando-se que as provas sejam adequadas, bem feitas e fiáveis em termos de resultados.
Os alunos prestam estas provas e, se funcionar como se espera, os resultados servirão de regulador ao trabalho desenvolvido pelas escolas. Conhece-se a tentação de se facilitarem os dispositivos de avaliação para inflacionar resultados. Este risco está também presente, é óbvio, em exames nacionais como, aliás, está patente nas discussões aquando da sua realização.
Neste quadro, não vejo vantagens, independentemente dos custos em tempo, meios e procedimentos, na introdução de mais exames como forma de melhorar a qualidade. Esta ideia parece decorrer da estranha convicção de que se medir muitas vezes a febre, esta irá baixar o que é, no mínimo, ingénuo.
A qualidade promove-se, é certo, com a avaliação rigorosa e regular das aprendizagens, naturalmente, mas também com a avaliação do trabalho dos professores, com a definição de currículos adequados, com a estruturação de dispositivos de apoio a alunos e professores eficazes e suficientes, com a definição de políticas educativas que sustentem um quadro normativo simples e coerente e modelos adequados de organização e funcionamento das escolas, com a definição de objectivos de curto e médio prazo, etc. O problema é que de há muitos anos a educação anda à deriva das agendas políticas.
A defesa de mais exames, como muitas vezes é feita, este é mais um exemplo, corre o risco de sustentar um discurso demagógico, as referências a exigência e a rigor vendem bem, que deixa de lado os aspectos mais essenciais.

SEM QUERER

Olhei.
Não me viram.
Disseram, foi sem querer.
Chamei.
Não me ouviram.
Disseram, foi sem querer.
Pedi.
Não me deram.
Disseram, foi sem querer.
Gritei.
Não se calaram.
Disseram, foi sem querer.
Chorei.
Não me secaram as lágrimas.
Disseram, foi sem querer.
Perdi-me.
Não me procuraram.
Disseram, foi sem querer.
Parti.
Não me seguiram.
Disseram, foi sem querer.
Não desisti.
Fui por querer. Ser.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

LICENCIADOS, DESEMPREGADOS E PRECÁRIOS

Com a divulgação pelo INE dos devastadores números do desemprego em que, como sempre em situação de crise, as franjas mais atingidas são os mais novos (a entrada no mercado de trabalho) e os mais velhos (extinção de postos de trabalho e falta de qualificação) alguma imprensa volta à questão do elevado número de licenciados jovens no desemprego. É verdade que existe uma franja muito significativa de jovens licenciados entre os desempregados mas a imprensa não pode tratar a questão como se o desemprego dos jovens fosse causado por terem qualificação. Mais uma vez, creio que se justificam algumas notas.
Primeiro, os jovens licenciados não estão no desemprego por serem licenciados, estão no desemprego porque temos um mercado pouco desenvolvido e ainda insuficientemente exigente de mão de obra qualificada e estão no desemprego porque, por desresponsabilização da tutela, a oferta de formação do ensino superior é completamente enviesada distorcendo o equilíbrio entre a oferta e a procura tal como a peça do Público indicia. Os trabalhos jornalísticos sobre esta questão deveriam ir mais longe no sentido de se perceber como a demissão e a negligência da tutela do ensino superior permitiram a instalação de oferta de ensino superior completamente desequilibrada (cursos em excesso em várias áreas) e a instalação de cursos de banda estreita, oferecidos com publicidade enganosa, obviamente destinados a dificuldades na entrada no mercado de trabalho. Uma pesquisa sobre a designação de muitos cursos além de coisas verdadeiramente anedóticas mostraria bem como qualificando à partida de forma tão direccionada (a banda estreita), rapidamente se esgota a capacidade de absorção do mercado de trabalho. Alguns exemplos retirados da página da DGES sobre a oferta de mestrados, cinco anos de formação universitária, a duração mais habitual: Políticas de Bem Estar em Perspectiva: Evolução Conceito e Actores; Gestão e Sustentabilidade no Turismo; Envelhecimento Activo; Fruticultura Integrada; Psicoacústica; Design do Produto; Marketing Relacional; Negócios Internacionais; Resolução Alternativa de Litígios; Solicitadoria de Execução;bBiorremediação; Marketing Research; Aconselhamento e Informação em Farmácia; Ciências da Complexidade; Estudos Sociais da Ciência; Gestão de Mercados de Arte; Instituições e Justiça Social, Gestão e Desenvolvimento; Novas Fronteiras do Direito; Branding e Design de Moda; Estudos Regionais e Locais; Design e Desenvolvimento de Fármacos; Alimentação - Fontes, Cultura e Sociedade; Ciências da Paisagem; Psicomotrocidade Relacional; Anatomia Artística; Gestão Integrada de Relvados Desportivos e Ornamentais; História Marítima; Geomática Ambiental; Comunicação de Moda; Comunicação e Desporto; Ciências Gastronómicas; As Humanidades na Europa: Convergências e Aberturas; Metropolização, Planeamento Estratégico e Sustentabilidade; Gestão de Pessoas. Conhecendo-se a realidade social e económica do país será curioso perceber o nível de empregabilidade de alguma desta oferta formativa, não estando em causa, não conheço, a qualidade dos seus contéudos.
No que respeita ao mercado de trabalho é, mais uma vez, de sublinhar que muitas empresas, sobretudo as de menor dimensão (as que asseguram cerca de 95% do emprego), provavelmente também devido ao baixo nível de qualificação dos empresários (é um dos mais baixos da UE e, estranhamente, nunca é associado a esta questão), revelam-se as mais avessas à contratação de mão de obra qualificada. Deve também sublinhar-se que este universo, pequenas e médias empresas, salvo algumas excepções de nicho, é também o segmento com menor inovação e desenvolvimento pelo que a absorção de mão de obra qualificada é ainda mais difícil.
Por outro lado, se atentarmos em dados da OCDE e do INE, sabemos que um trabalhador licenciado ganha em média mais 80% que alguém com o ensino secundário. Um indivíduo com a escolaridade básica recebe em média menos 57% que alguém com o Ensino Secundário. Apenas 7.5% de pessoas com o 9º ano recebem duas vezes mais que a média nacional enquanto licenciados a receber duas vezes mais que a média são quase 60%. Os filhos de pais licenciados têm 3,2 vezes mais probabilidades de obter uma licenciatura. Entre os 25 e os 34 anos, 19% dos jovens tem uma licenciatura enquanto na OCDE a média é 32%. Em Portugal, o número de licenciados é metade da média da União Europeia. Na franja entre os 35 e 44 anos a percentagem ainda baixa para 13%. Um indivíduo com apenas o básico corre um risco de pobreza 20 vezes superior ao de um indivíduo com um curso superior.
Quanto à questão da precariedade que atinge os jovens licenciados à entrada no mercado de trabalho, aspecto dramático e inibidor da construção de projectos de vida, é bom ser absolutamente claro, esta situação não atinge os jovens licenciados por serem licenciados, atinge toda a gente que entra no mercado de trabalho porque a legislação e regulação do mercado conduzem a esta situação, trata-se dos efeitos da agenda liberal e não o efeito da qualificação dos jovens, é bom que se entenda.
Deste quadro, releva a absoluta imprudência de passar a mensagem de que a formação é irrelevante, o desemprego é o destino como muitas vezes esta questão é tratada, embora o trabalho de hoje do Público coloque algumas das questões que aqui aflorei de forma telegráfica.
A qualificação profissional, de nível superior ou não, é essencial como também é essencial a racionalidade e regulação da oferta do ensino superior e, naturalmente, a regulação eficaz do mercado de trabalho minimizando o abuso do recurso à precariedade.
Como sempre que abordo estas matérias, finalizo com a necessidade de, uma vez por todas evitar o discurso "populista" do país de doutores. Trata-se de um enorme erro e pode desincentivar a busca por qualificação o que terá consequências gravíssimas.

A HISTÓRIA DO PREGUIÇOSO

Era uma vez um Rapaz a quem chamavam Preguiçoso. O Rapaz andava na escola e o seu rendimento era mau. Os professores achavam que ele tinha capacidade para fazer melhor mas entendiam que ele não se esforçava, por isso lhe chamavam Preguiçoso. Tinha um comportamento tranquilo, até bastante tranquilo. Passava muito tempo só e raramente era visto envolvido nas brincadeiras dos colegas que também não se admiravam. Afinal, era Preguiçoso.
Quando os professores falavam com o Preguiçoso e o incentivavam a trabalhar , pois achavam-no muito capaz, o Preguiçoso encolhia os ombros e ficava na sua, sem grande agitação, com um ar fechado e sem um sobressalto que permitisse pensar em que se empenharia nas actividades.
Na verdade, o Preguiçoso não se chamava Preguiçoso. Pouca gente sabia, aliás, na escola ninguém sabia, mas ele chamava-se Cansado, isso mesmo, Cansado.
O Cansado, também muito poucas pessoas sabiam, tinha uma vida bastante complicada. Os pais estavam os dois desempregados e o dinheiro escasseava. Estava Cansado de ouvir os pais lamentarem-se pela falta de condições para ele e a irmã viverem melhor. Estava cansado de sentir a falta de tudo, os pais, também Cansados, pouca disponibilidade arranjavam para os filhos. Estava Cansado de pensar que o que não tinha lhe fazia falta para vir a ter e, por isso, não se sentia com força para remar, não sabia para onde. Sentia-se Cansado e perdido.
Os Cansados e perdidos quando estão na escola, às vezes, parecem preguiçosos.
E nós ficamos descansados.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

DÓI-ME AQUI DENTRO, NÃO SEI ONDE

Ao que parece e de acordo com especialistas, estão aumentar em Portugal os pedidos de ajuda face a sintomas de mal-estar psicológico em crianças e adolescentes. Este dado, obviamente a merecer reflexão, não é provavelmente uma surpresa para os mais atentos ao universo dos miúdos.
Os tempos estão difíceis e crispados para os adultos, seguramente para boa parte dos adultos, e para os miúdos a estrada também não está fácil de percorrer. Alguns vivem, sobrevivem, em ambientes familiares disfuncionais que comprometem o aconchego do porto de abrigo, afinal o que se espera de uma família. Alguns percebem, sentem, que o mundo deles não parece deste reino, o mundo deles é um bairro insustentável que, conforme as circunstâncias, é o inferno onde vivem ou o paraíso onde se acolhem e se sentem protegidos. Alguns sentem que o amanhã está longe de mais e um projecto para a vida é apenas mantê-la. Alguns convencem-se que a escola não está feita para que nela caibam, uns por uma razão, outros por outra razão. Alguns sentem que podem fazer o que quiserem porque não têm nada a perder e muito menos acreditam no que têm a ganhar.
Alguns destes miúdos vão carregar para a escola a dor de alma que sentem mas não entendem, por vezes.
Não, não tenho nenhuma visão idealizada dos miúdos, nem acho que tudo lhes deve ser permitido ou desculpado e também sei que alguns fazem coisas inaceitáveis e, portanto, não toleráveis. Só estou a dizer que muitas vezes a alma dói tanto que a cabeça e o corpo se perdem e fogem para a frente atrás do nada que se esconde na adrenalina dos limites.
Espreitem a alma dos miúdos, sem medo, com vontade de perceber porque lhes dói e surpreender-se-ão com a fragilidade e vulnerabilidade de alguns que se mascaram de heróis para uns ou bandidos para outros, procurando todos os dias enganar a dor da alma.
Eles não sabem, eu também não, o que é a alma. Um gaiato dizia-me uma vez, “dói-me aqui dentro, não sei onde”.

DESEMPREGO E SOBRESSALTO SOCIAL

Em Abril estavam registados nos Centros de Emprego 4617 famílias com os dois elementos do casal na situação de desemprego, uma situação devastadora que nos últimos meses aumentou fortemente segundo o IEFP. Apesar do número de Abril ser um pouco mais baixo que o de Março, também sabemos que o abaixamento de número global de desempregados registados não corresponde a subida do emprego pelo que, provavelmente, o número real de famílias com todos os elementos desempregados é bem maior e em risco de subida uma vez que se prevê o aumento do desemprego.
Nos termos do negócio, a que chamam ajuda, que o FMI, o FEE e o BCE realizou com o estado português, incluem-se mais cortes nos chamados apoios sociais que envolvem, entre outras situações, os casos de desemprego.
Sabemos todos, embora alguns esqueçam, que os mercados não têm alma, são amorais e as pessoas são activos ao serviço dos interesses dessas entidades, os mercados.
Por isto tudo e voltando ao aumento extraordinário do número de casais de desempregados, seria absolutamente necessário que se entendesse e assumisse que o negócio em curso com a famosa troika não pode de forma alguma esquecer as pessoas, sobretudo as que mais vulneráveis e em risco de exclusão vão ficando.
Neste cenário exigir-se-ia ou, pelo menos, esperar-se-ia, que os discursos políticos da pré-campanha se centrassem nas pessoas e na forma como colocar a economia e o desenvolvimento ao serviço das pessoas e não na retórica e demagogia da caça ao voto e ao efeito mediático, bem como na protecção dos interesses dos mercados acreditando-se contra toda a evidência que do bem-estar dos mercados advirá bem-estar para as pessoas.
Corremos o sério risco de ficar à beira não de um sobressalto cívico como agora se fala, mas de um sobressalto social que pode assumir contornos imprevisíveis.

CERTIFICAÇÃO E QUALIFICAÇÃO NÃO SÃO SINÓNIMOS

Não tinha intenção de retornar a um tema que muitas vezes aqui tenho abordado, o Programa Novas Oportunidades, mas a polémica entre a manhosa habilidade de José Sócrates e a ignorância militante de Passos Coelho levam-me a tal.
A prosa de Sócrates assenta na realização de uma avaliação externa. No entanto, antes de me referir à avaliação algumas notas retomadas de textos anteriores. Estamos todos de acordo que um dos nossos principais problemas e, portanto, um dos principais desafios que como país enfrentamos, é o da qualificação dos nossos cidadãos. Já aqui me tenho referido a esta questão e à importância transcendente que ele assume em termos de futuro viável para Portugal. Recorrentemente são disponibilizados números pelas diferentes agências internacionais que sublinham esta questão.
Dito isto, parece obviamente importante que sejam desenvolvidos os dispositivos adequados à qualificação das pessoas. É neste contexto que apareceu o inevitável Programa Novas Oportunidades, sobre o qual afirmei no início "O lançamento de um Programa com o objectivo de estruturar e incrementar os processos de qualificação de sujeitos que abandonaram o sistema é, obviamente de saudar. Parece-me também de sublinhar o interesse e significado que o Reconhecimento e Validação de Competências, a génese do Novas Oportunidades, pode assumir para pessoas com largo trajecto profissional, sem certificação escolar, mas que tiveram acesso a um processo de reconhecimento de competências profissionais entretanto adquiridas e a aquisição de equivalências aos processos de escolarização formal". Neste contexto radica a ignorância de Passo Coelho.
No entanto, o desenvolvimento posterior do Programa e as sucessivas intervenções os responsáveis do Programa rapidamente evidenciaram, e evidenciam, o enorme equívoco, ou melhor, embuste, de confundir qualificação com certificação, ou seja, é possível passar milhares de certificados de 9º e 12º anos em pouco tempo mas é, obviamente, impossível qualificar milhares de pessoas em pouco tempo. É neste quadro que se tem desenvolvido o Programa e que é bem conhecido por parte de quem acompanha os Centros Novas Oportunidades onde, pese o esforço e dedicação de muitos técnicos, se verifica uma enorme pressão para que se "produzam" certificados. O contacto frequente com os profissionais envolvidos pode ser elucidativo.
No que respeita à avaliação e aos seus resultados parece-me que estamos perante um novo equívoco. É óbvio que as pessoas envolvidas expressaram uma opinião genericamente positiva, acedem a diplomas que lhes certificam competências, acedem a algumas experiências e competências, a equipamentos informáticos, etc. Parece-me aliás, estranho que apenas um terço revelem que o Programa teve pelo menos um aspecto positivo. A questão é a qualificação que efectivamente recebem, sublinho, qualificação e sobre isso a avaliação não incide, conforme confirmou ao Público Joaquim Azevedo da Universidade Católica, a entidade responsável pela avaliação externa. Este é o grande equívoco da avaliação externa, a avaliação de um programa de qualificação deve avaliar se os envolvidos ficaram mais qualificados, não se ficaram mais felizes e com melhor auto-estima, aspectos certamente importantes mas que mascaram os objectivos do programa. O Primeiro-ministro retoma um argumento demagógico e habitual, são as elites que contestam alguns dos aspectos do Programa. Não sei exactamente quais são as elites a que se refere, mas como é óbvio, são as pessoas melhor informadas, mais conhecedoras dos programas de formação e qualificação, que em melhor condição estarão para reflectirem sobre os mesmos.
Gostava de poder afirmar que as muitas histórias e exemplos que se conhecem sobre todo este processo fossem irrelevâncias residuais. O problema é que todos nós sabemos que não são, apesar dos esforços e empenhamento, repito, dos técnicos envolvidos nos Centros Novas Oportunidades.
O ruído agora instalado não passa de mais um episódio cacofónico da luta pelo poder cheia de habilidades e demagogia.