A agenda das consciências
determinou para amanhã o Dia da Criança. A liturgia variada associada à efeméride
vai acontecer como de costume. As visitas, os passeios, as festas, etc., as
idas a espectáculos de todas as naturezas mostrarão uma comunidade preocupada
em fazer as crianças felizes. Muitas estão e parecem divertir-se, felizmente. Algumas outras terão de passar por um
dia cansativo.
A imprensa fará eco dos múltiplos
eventos dirigidos às crianças, ouvirá por uma vez as crianças e produzir-se-ão,
certamente, muitos discursos dirigidos aos miúdos e ao seu mundo.
Claro, neste dia, ouvi-las sobre
o que pensam do mundo, do seu mundo e da vida das pessoas, é "giro".
É verdade que passa depressa, amanhã já não as ouvimos sobre o que as inquieta
e lá voltam os miúdos, muitos, a gritar e a agitar-se para se fazerem ouvir.
Tudo bem, pois que seja. Este
tipo de efemérides serve também para isso mesmo, a encenação, sempre
bem-intencionada da preocupação que descansa as consciências.
É verdade, felizmente, que muitas
crianças vivem felizes, por assim dizer, adoptadas pelos pais, acolhidas pela
escola e pela comunidade, são o futuro a crescer.
No entanto e nestas alturas
lembro-me com frequência do Mestre Almada que na Cena do Ódio falava sobre,
"a Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de
Camões". De facto, apesar da vaga de discursos e iniciativas em nome das
crianças, muitos passam mal, muito mal, todos sabemos. Não cabem no Dia da
Criança.
Não cabem os que diariamente são
vítimas de crimes e maus-tratos.
Não cabem muitos dos que vivem
numa instituição esperando por uma família que nunca virá.
Não cabem os que, por várias
razões, são alvo de discriminação e a quem são negados direitos básicos.
Não cabem os que vivem em
famílias que os não desejam e mal os suportam.
Não cabem os que apenas comem o
que refeição única na escola lhes possibilita.
Não cabem os que vivem em
famílias a quem roubaram a dignidade do trabalho e que, por isso, sobrevivem
envergonhadamente na pobreza que nos deveria envergonhar a nós.
Não cabem os que a escola não
consegue ajudar a construir um futuro a que valha a pena aceder e sofrem
políticas educativas pouco amigáveis para os miúdos.
Não cabem os que sofrem de
solidão e isolamento sem que se perceba como não estão bem.
Na verdade, estes miúdos de que
acabei e falar por vezes parece que não existem, são transparentes, nem os
vemos. Por isso, comemora-se o Dia Mundial da Criança com a convicção ingénua
ou voluntarista de que, como dizia Pessoa, "o melhor do mundo são as
crianças" e que elas são felizes, todas.
O que, obviamente, não
corresponde à realidade mas os poetas ... são uns fingidores.
E sabem o que é mais inquietante?
Para o ano vou voltar com este
texto, não prescreve.
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