Parece-me de leitura interessante
a entrevista de Miguel Mealha Estrada ao Observador. É psicanalista pediátrico
e psicoterapeuta e a sua entrevista é centrada na saúde mental de crianças e
adolescentes e na sua ligação com o contexto escolar. No entanto a forma como a escola é entendida bem como as sua referências ao uso do metilfenidato (Ritalina) suscitam algumas notas.
Como ainda há poucos dias aqui
referi a saúde mental de crianças e adolescentes em Portugal é verdadeiramente
preocupante, consumo de antidepressivos e tranquilizantes acima da média
europeia, 13% face a 8% de média Europeia até aos 16 anos e com dados de 2016.
Um estudo da U. de Coimbra de 2015 8% por cento dos adolescentes portugueses
que frequentam o 8.º e o 9 º ano apresentam sintomatologia depressiva e 19%
estarão em risco de desenvolver a doença.
Este estudo envolveu um programa de
prevenção a promover em meio escolar, com a participação dos pais, que pareceu
indiciar bons resultados.
Em 2012 esteve em Portugal um
especialista nesta área, Peter Wilson, que, naturalmente, referia a necessidade
de que nas escolas e na comunidade próxima existam apoios aos professores, às
famílias e às crianças com dificuldades emocionais, a única forma, entende, apoiado
na sua experiência, de minimizar e ajudar neste tipo de problemas que, não
sendo acautelados, têm quase sempre efeitos devastadores em termos pessoais e
sociais. Segundo Peter Wilson, os estudos em Inglaterra sugerem a existência de
três crianças com problemas do foro emocional em cada sala de aula pelo que o
apoio é muito mais eficaz e económico prestado na escola ou na comunidade
próxima a alunos, famílias e professores. Este entendimento é partilhado,
creio, pela generalidade dos profissionais e famílias, também em Portugal e os
dados conhecidos apontam nesse sentido.
Miguel Mealha Estrada também
defende a aproximação da questão da saúde mental à escola. No entanto, julgo
que o seu entendimento merece reflexão.
Sobre a escola afirma: “A escola não deve ser só para o ensino.”
É uma frase que está no livro.
Então para que deve ser a escola?
“A escola deve ser para um verdadeiro ensino”.
E um verdadeiro ensino é…
É a escola ser um centro terapêutico, de apoio e desenvolvimento à
criança e à família. Porquê? Porque não existe uma criança isolada, a criança é
a família. O primeiro ensino que temos de dar às crianças é elas regularem-se
emocionalmente. Esse é o verdadeiro ensino: as crianças terem estabilidade
emocional, psicológica e cognitiva para conseguirem aprender. Muitas crianças
não têm espaço, emocional e mental, para aprender. As crianças identificadas
com problemas de saúde mental necessitam de um apoio estruturado, contínuo, e a
escola devia englobar a saúde mental num verdadeiro ensino, de uma maneira
realmente eficaz.
É claro que tudo o que é afirmado
é pertinente mas … a escola não é uma comunidade terapêutica, a escola é uma
comunidade educativa e este entendimento pode alimentar alguns equívocos.
E na verdade, se a escola for uma
comunidade educativa, a escola é amigável para a saúde mental das crianças e
adolescentes, como também é amigável para a saúde cívica, para a saúde física,
para … o bem-estar global e desenvolvimento. A aproximação das questões da saúde mental à educação escolar estabelecida há muito pelo Mestre João dos Santos não é o mesmo que transformar a escola numa comunidade terapêutica.
Esta visão sobre a escola pode
fazer correr o risco de perder de vista a essência da educação escolar criando um
padrão de atribuição de “competências” que a educação escolar não vai ter
capacidade para responder. Parece-me que temos de insistir na qualidade do
trabalho e nos recursos de apoio a alunos e professores para uma escola pública
de qualidade e na existência suficiente e competente de apoios na comunidade, para
crianças, adolescentes e família.
A entrevista tocou ainda uma
matéria de particular relevância em que o discurso de Miguel Mealha Estrada me
suscitou alguma reserva pela abordagem que me pareceu ligeira, as crianças consideradas
com hiperactividade e com défice de atenção.
Diz o entrevistado. "Existem médicos que não receitam ritalina
por causa do narcisismo, porque têm uma ideologia que não é científica. Então,
arranjam pseudorazões para medicar mais tarde a criança quando não há motivos,
a não ser os ideológicos, não os científicos, para atrasar a toma do
medicamento." E ainda entre outras afirmações “O uso da ritalina não se generalizou. Isso pode acontecer — crianças
que não precisam dela — mas é raro, por isso vamos esquecer isso.”
Não, lamento mas não podemos
esquecer, precisamos de reflectir. De novo algumas notas.
Como se sabe o metilfenidato, (com
nome comercial de Ritalina, Concerta ou Rubifen)
Esta medicação é usada na
terapêutica das situações de alegados problemas de comportamento,
hiperactividade, défice de atenção ou instabilidade. No entanto, é também usada
como “auxílio” aos resultados escolares sendo também conhecida pelo “comprimido
da inteligência”.
Esta preocupação tem sido objecto
de intervenções recorrentes. Recordo que no Relatório anual do Conselho
Nacional de Educação “Estado da Educação 2015” chamava-se a atenção para a
questão do consumo de medicação por parte de crianças e adolescentes para
alegados problemas de comportamento, hiperactividade, défice de atenção ou
instabilidade.
Em 2010 prescreveram-se no SNS
133 562 e em 2016 o número foi 270 492. É ainda de considerar que em 2015 63%
do volume do fármaco foi usado entre os 10 e os 19 anos e 26% até aos 9 anos.
Os adultos consumiram “apenas” 7% do volume total de prescrições. Em 2016
baixou ligeiramente o consumo.
São valores impressionantes e
altamente preocupantes e que estão em linha com os dados do Infarmed que tem
alertado para o disparar do consumo do metilfenidato com os nomes correntes de
Ritalina, Concerta ou Rubifen.
Face a este cenário e em
diferentes intervenções públicas, especialistas como Mário Cordeiro, Gomes
Pedro ou Ana Vasconcelos têm revelado sempre uma atitude cautelosa e prudente
face esta hipermedicação ou sobrediagnóstico e alertado para os riscos destas
práticas que, aliás, não se verificam em todos os países. Este tipo de
discurso, cauteloso e prudente, que subscrevo, contrasta com a ligeireza, que
não estranho, de Miguel Palha que referia há algum tempo no Público as
“centenas” de crianças que na sua clínica solicitam “diariamente” o fármaco opinando numa reportagem televisiva que ainda se prescreve de menos.
Como tantas vezes aqui já escrevi
sabemos todos que existe um conjunto de problemas que pode afectar crianças e
adolescentes, esses problemas devem ser abordados, se necessário com medicação,
evidentemente, mas, felizmente, não são tantos as situações como por vezes
parece. Inquieta-me muito a ligeireza com que frequentemente são produzidos
"diagnósticos" e rótulos que se colam aos miúdos, dos quais eles
dificilmente se libertarão e que pela banalização da sua utilização se produza
uma perigosa indiferença sobre o que se observa nos miúdos. Aliás, é curioso
perceber o que se passa noutros países e verificar as acuais orientações.
Inquieta-me ainda a ligeireza com
que muitos miúdos aparecem medicados, chamo-lhes "ritalinizados", sem
que os respectivos diagnósticos conhecidos pareçam suportar seguramente o
recurso à medicação. A sobreutilização ou uso sem justificação do metilfenidato
e de outros fármacos tem riscos, uns já conhecidos, outros em investigação. Conheço vários casos, alguns com contornos inquietantes.
Esta matéria, avaliar e explicar
o que se passa com os miúdos e adolescentes, exige um elevadíssimo padrão ético
e deontológico além da óbvia competência técnica e científica.
Neste sentido parece-me pouco
prudente o discurso de Miguel Mealha Estrada sobre esta questão.
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