Era uma vez um Homem. Era cinzento, com um ar entre o triste e o zangado, assim uma daquelas pessoas a quem parece que a vida lhes deve sempre alguma coisa. Tinha um trabalho sem mais interesse do que a sua manutenção, uma mulher chata que depois do jantar, da novela e do ajeitar dos filhos, a frase mais estimulante que conseguia articular era qualquer coisa do tipo “amanhã não te esqueças do pão”.
Os filhos, rapaz e rapariga, usavam permanentemente uns auscultadores, barreira para a conversa, pequena que fosse. Os amigos, com quem já pouco se dava, pareciam que também não estavam muito interessados na sua companhia. A família, na sua maioria, era uma lembrança de quando era pequeno, até a pessoa de que ele mais gostava, a irmã, vivia longe.
Os seus dias cumpriam-se rigorosamente iguais, com as mesmas rotinas, o mesmo desencanto e a mesma desesperança de quem não acredita, em nada. Mesmo os fins-de-semana eram passados entre a cama e o sofá, sempre com a televisão por perto. Esta vida durou anos e nada se alterou. Na verdade, os filhos cresceram, partiram para cumprir a sua estrada, a mulher e ele próprio envelheceram, mas a vida, essa permaneceu como sempre. Um dia, recebeu a notícia de que já se podia reformar. Entrou em pânico.
Naquela terra os reformados tinham uma vida muito chata, mesmo cinzenta, e ele, ele não se sentia preparado para ter uma vida assim.
8 comentários:
Infelizmente como este, são aos milhões. O comodismo é mais fácil que a atividade. Quantos(as) vivem na vida fácil e dela?
Mas que belo texto este. Parabéns! Um retrato fiel de uma das piores características do ser humano, e que infelizmente jorra por aí aos pontapés.
Obrigado, vão passando
O comodismo não é mais fácil do que a actividade. Grande parte das pessoas é que se revelam tão imbecis que preferem pensar assim (ou não pensar sequer). Eu conheço dezenas de conformados e a vida todos eles é uma realidade terrível e deprimente. Por outro lado os activos são pessoas felizes porque tudo na vida vale a pena. Faz tudo parte da essência de estarmos cá e não há desafios difíceis mas sim aliciantes. O único problema dos activos é quando ficam reféns dos conformados, mas é sempre possível dar a volta.
Será que "grande parte das pessoas se revelam imbecis"?
Se utilizarmos uma forma de identificação intelectual com um sujeito chegamos à empatia com o mesmo. A partir desse pressuposto até chegamos à conclusão que a maneira do homem ser feliz era essa.Tanto mais que a reforma o apavorou.A rotina do trabalho desaparecia.
Cada qual tem direito à liberdade de ser feliz como quer.
Há pessoas (vidas) assim...
Em matéria de felicidade individual,
quem sou eu para julgar os outros?!!!
saudações
Anónimo Paz, empatia não exactamente aquilo que descreve. Por outro lado, nada no texto lhe permite entender que o homem era feliz. No entanto, pode achar que sim, tudo bem, a felicidade é como um homem quiser, como o Natal
Zé Morgado
EMPATIA (grego empátheia)
"Forma de identificação intelectual ou afectiva com uma pessoa, uma ideia ou uma coisa".
A leitura que eu faço do texto realmente nada me diz que o homem é feliz.
Mas para criar o contraditório (o homem da vida chata não o pode fazer) vesti-lhe a pele e cheguei à conclusão que também o poderia ser.
Vidas iguais em pessoas que se consideram felizes, grassam por aí.
Desculpe-me a ousadia do contraditório.
saudações
e muito apreço por quase tudo o que o Senhor escreve.
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