Creio que se pode aceitar a ideia de que um dos atributos das relações de vizinhança, em desaparecimento dos nossos estilos de vida, sobretudo nas comunidades urbanas, é uma esforçada vontade saber o que se passa com toda a gente, ou seja, o velho alcovitar, coscuvilhar ou a mais recente fórmula, a “cusquice”. Todos reconhecemos aquela vizinha que, atrás da persiana, controla quem entra e quem sai da casa da frente e comenta na mercearia os visitantes “estranhos” que a D. Maria recebe.
Vem esta introdução a propósito de uma trágica notícia que apareceu na imprensa nos últimos dias. Duas irmãs com deficiência auditiva severa e mutismo terão sido vítimas de abuso continuado por parte de pai que, ao que parece, fomentava o abuso da rapariga mais velha por parte de outros indivíduos. A rapariga tem dois filhos, um recém-nascido, que serão consequência deste quadro de miséria humana. O caso foi conhecido porque a moça mais nova falou na escola do que se passava. No entanto, é aqui que se justifica a introdução que fiz, a moça mais velha ter-se-á queixado a vizinhas dos tratos que sofria. As vizinhas confirmaram que sabiam do que se passavam mas que não se quiseram meter.
Este “lavar de mãos” negligente que posso entender,mas custa a aceitar, é quase um paradigma da “normalidade” e da indiferença com que sem um sobressalto assistimos ou sabemos de situações em que pessoas, crescidas ou pequenas, são vítimas de sofrimento da mais variada natureza.
Um outro exemplo desta atitude e que hoje volta a ser notícia, é o facto de muitos portugueses serem “aliciados” para trabalhos agrícolas em Espanha, o exemplo de hoje é o das vinhas de La Rioja citado no DN, e que acabam em situação de escravatura. Custa a acreditar que ninguém, do lado de cá ou do lado de lá, saiba do que se passa. O mais provável é que, como no primeiro exemplo, sabe-se, mas “é melhor não se meter nisso”.
É por isso que, apesar de tudo, gosto das atentas vizinhas “cuscas” que contam tudo na mercearia.
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