Não, o título não indica um regresso a uma visão clínica, é apenas um indicador de preocupação.
O Público divulga os resultados de um inquérito realizado pela Federação Nacional de Educação (FNE) relativamente à aplicação do tal
decreto, esse mesmo, o 54, o do novo regime jurídico da educação inclusiva
Com base na resposta de 615 docentes e 70 direcções de
escolas e agrupamentos surgem alguns indicadores, 60% dos professores afirmam
que “não se sentem preparados para esclarecer os encarregados de educação sobre
as dúvidas acerca da aplicação do diploma”, em linha com o facto de que 52% dos
professores afirmam que eles próprios “não compreendem as definições das novas
nomenclaturas do diploma”, cerca de 58% dos inquiridos “afirmam não compreender
ou ter dificuldades na compreensão deste princípio” (a abordagem multinível) ou
que 91% entende “que o tempo necessário para que as escolas aplicassem o novo
diploma não foi suficiente”.
Relativamente às direcções, cerca de 30% diz que as suas
escolas e agrupamentos não estão a aplicar o diploma, 83,91% expressa dúvidas ou
dificuldades na operacionalização do normativo e 61,39% considera não ter tido
apoio no processo de aplicação.
A apreciação global é, de resto, crítica não só no processo como
também sublinha o impacto negativo no apoio prestado aos alunos.
A natureza e características deste trabalho requer alguma
prudência na sua análise embora os indicadores sejam de considerar seriamente.
Aliás, vão no mesmo sentido de muito do que aqui tenho escrito e defendido
publicamente sobre este universo.
Assim sendo, recupero notas que, lamentavelmente, são
actuais e ganham mais sentido.
A alteração do quadro legal anterior (DL 3/2008) era
necessária desde o seu início. Também em relação ao 54/2018 entendi que
continua uma “tradição" que não me parece adequada, um normativo não tem
que integrar doutrina científica ou modelos mas, fundamentalmente, princípios,
orientações, definição de recursos e dispositivos de regulação. Recordo que
estamos falar de um “regime jurídico”.
Também sabemos que os processos de mudança estão sujeitos a
dúvidas e sobressaltos pelo que a gestão das políticas públicas deve ter isso
em consideração. Também a forma como foi colocado em vigor me pareceu potenciar
prováveis dificuldades, constrangimentos e dúvidas correndo-se o sério risco de
hipotecar o potencial de mudança.
Inscrito também no mantra da flexibilização, as práticas em
muitas comunidades educativas continuam associadas a uma “azáfama grelhadora”
que burocratiza e desgasta sem que o benefício pareça compensar o custo.
Os testemunhos conhecidos em vários espaços e de diferentes
formas sobre o que vai acontecendo pelas escolas nesta matéria e o trabalho
agora divulgado pela FNE ilustram com clareza a enorme sombra de dúvidas
e dificuldades que refere boa parte dos intervenientes, professores do ensino
regular, docentes de educação especial, técnicos e pais que estão genuinamente
empenhados em que todo corra o melhor possível.
Apesar dos bons exemplos que felizmente sempre conhecemos e
também merecem divulgação, a realidade, recorrendo a uma terminologia presente
no DL 54/2008, acomoda muitos professores e técnicos perdidos na mudança de
paradigma, perdidos nas orientações e na inadequação dos recursos, nas medidas
voluntaristas que quase parecem querer “normalizar” e “incluir” alunos,
“entregando-os” nas salas de ensino regular, remetendo-os para "espaços
outros" (agora já não se chamam "unidades") ou mesmo
aconselhando a sua permanência em casa provocando exclusão e sofrimento,
incumprimento de direitos, desespero nas famílias e também em professores e
técnicos.
Às dúvidas, muitas, surgem respostas que com frequência
começam por “eu acho …”, “nós decidimos …”, “na minha escola”, “no meu grupo
…”, etc.
Existem muitos casos de alunos com necessidades especiais,
sim com necessidades especiais, “entregados” na sala de aula em nome da
inclusão e que …se sentem e estão excluídos.
Este cenário também está, do meu ponto de vista, associado
ao referido “excesso de doutrina” que cria ruído e diferentes leituras com o
óbvio risco de que “é preciso que tudo mude para que tudo fique (quase) na
mesma”. Parte da formação que se tem desenvolvido neste contexto parece estar a
contribuir para as dificuldades e não para as soluções. Aliás, registo também
com muita curiosidade a forma com tanta gente que promoveu entusiasticamente o
3/2008 rapidamente aderiu à “revolução”, ao “novo paradigma” desencadeados pelo
54/2018.
Sim, também sei e reafirmo, há gente e escolas a realizar
trabalhos notáveis como sempre aconteceu. Merecem divulgação e reconhecimento.
É insustentável afirmar como o ME insistentemente faz que
apenas se verificam problemas pontuais. Não é verdade, não se verificam apenas
alguns incidentes próprios dos processos de mudança, não me digam que estamos
na antecâmara da educação de qualidade para todos embora registe o entusiasmo
contagiante de alguns discursos sobre a “revolução” em curso e a construção da
anunciada escola inclusiva de 2ª geração, algo que ainda não consegui perceber
o que significará. Mas, certamente, serei mais um dos “desencantados” que não
se convertem aos amanhãs que cantam.
Seria muito bom que eu estivesse errado mas a questão é que
educação de qualidade para todos é bem mais exigente em recursos e apoios que
uma sala de aulas para todos.
Continuo a entender que o processo de mudança ganharia se
durante algum tempo, antes da publicação, o normativo estivesse em discussão e
trabalho nas escolas, identificando e antecipando os processos decorrentes da
mudança, as dificuldades e as necessidades em matéria de ajustamento de
recursos, organização e procedimentos. Teria estimulado uma apropriação
participada e permitiria construir com mais coerência e maior tranquilidade o
trabalho a desenvolver pelas equipas das escolas quando, de facto, entrasse em
vigor. Este entendimento também transparece no trabalho da FNE
Recordo que o DL 54/2018 foi publicado em Julho de 2018 para
entrar em vigor em Setembro e a Lei 116/2019 foi publicada em 13/9/2019 ontem
para entrar em vigor … a 14/09/2019.
Ao fim de mais de quarenta anos nesta lida o cansaço cresce
e algum desencanto cresce. A idade também já não me permite optimismos ingénuos
e aceitar que a realidade é o que me dizem que é e não o que nela vejo, oiço,
leio.
Recorrendo a uma expressão aqui do Alentejo, deixem lá ver o
que se segue.
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