sábado, 7 de dezembro de 2019

O ESTADO DE SAÚDE DA CHAMADA EDUCAÇÃO INCLUSIVA.


Não, o título não indica um regresso a uma visão clínica, é apenas um indicador de preocupação.
O Público divulga os resultados de um inquérito realizado pela Federação Nacional de Educação (FNE) relativamente à aplicação do tal decreto, esse mesmo, o 54, o do novo regime jurídico da educação inclusiva
Com base na resposta de 615 docentes e 70 direcções de escolas e agrupamentos surgem alguns indicadores, 60% dos professores afirmam que “não se sentem preparados para esclarecer os encarregados de educação sobre as dúvidas acerca da aplicação do diploma”, em linha com o facto de que 52% dos professores afirmam que eles próprios “não compreendem as definições das novas nomenclaturas do diploma”, cerca de 58% dos inquiridos “afirmam não compreender ou ter dificuldades na compreensão deste princípio” (a abordagem multinível) ou que 91% entende “que o tempo necessário para que as escolas aplicassem o novo diploma não foi suficiente”.
Relativamente às direcções, cerca de 30% diz que as suas escolas e agrupamentos não estão a aplicar o diploma, 83,91% expressa dúvidas ou dificuldades na operacionalização do normativo e 61,39% considera não ter tido apoio no processo de aplicação.
A apreciação global é, de resto, crítica não só no processo como também sublinha o impacto negativo no apoio prestado aos alunos.
A natureza e características deste trabalho requer alguma prudência na sua análise embora os indicadores sejam de considerar seriamente. Aliás, vão no mesmo sentido de muito do que aqui tenho escrito e defendido publicamente sobre este universo.
Assim sendo, recupero notas que, lamentavelmente, são actuais e ganham mais sentido.
A alteração do quadro legal anterior (DL 3/2008) era necessária desde o seu início. Também em relação ao 54/2018 entendi que continua uma “tradição" que não me parece adequada, um normativo não tem que integrar doutrina científica ou modelos mas, fundamentalmente, princípios, orientações, definição de recursos e dispositivos de regulação. Recordo que estamos falar de um “regime jurídico”.
Também sabemos que os processos de mudança estão sujeitos a dúvidas e sobressaltos pelo que a gestão das políticas públicas deve ter isso em consideração. Também a forma como foi colocado em vigor me pareceu potenciar prováveis dificuldades, constrangimentos e dúvidas correndo-se o sério risco de hipotecar o potencial de mudança.
Inscrito também no mantra da flexibilização, as práticas em muitas comunidades educativas continuam associadas a uma “azáfama grelhadora” que burocratiza e desgasta sem que o benefício pareça compensar o custo.
Os testemunhos conhecidos em vários espaços e de diferentes formas sobre o que vai acontecendo pelas escolas nesta matéria e o trabalho agora divulgado pela FNE ilustram com clareza a enorme sombra de dúvidas e dificuldades que refere boa parte dos intervenientes, professores do ensino regular, docentes de educação especial, técnicos e pais que estão genuinamente empenhados em que todo corra o melhor possível.
Apesar dos bons exemplos que felizmente sempre conhecemos e também merecem divulgação, a realidade, recorrendo a uma terminologia presente no DL 54/2008, acomoda muitos professores e técnicos perdidos na mudança de paradigma, perdidos nas orientações e na inadequação dos recursos, nas medidas voluntaristas que quase parecem querer “normalizar” e “incluir” alunos, “entregando-os” nas salas de ensino regular, remetendo-os para "espaços outros" (agora já não se chamam "unidades") ou mesmo aconselhando a sua permanência em casa provocando exclusão e sofrimento, incumprimento de direitos, desespero nas famílias e também em professores e técnicos.
Às dúvidas, muitas, surgem respostas que com frequência começam por “eu acho …”, “nós decidimos …”, “na minha escola”, “no meu grupo …”, etc.
Existem muitos casos de alunos com necessidades especiais, sim com necessidades especiais, “entregados” na sala de aula em nome da inclusão e que …se sentem e estão excluídos.
Este cenário também está, do meu ponto de vista, associado ao referido “excesso de doutrina” que cria ruído e diferentes leituras com o óbvio risco de que “é preciso que tudo mude para que tudo fique (quase) na mesma”. Parte da formação que se tem desenvolvido neste contexto parece estar a contribuir para as dificuldades e não para as soluções. Aliás, registo também com muita curiosidade a forma com tanta gente que promoveu entusiasticamente o 3/2008 rapidamente aderiu à “revolução”, ao “novo paradigma” desencadeados pelo 54/2018.
Sim, também sei e reafirmo, há gente e escolas a realizar trabalhos notáveis como sempre aconteceu. Merecem divulgação e reconhecimento.
É insustentável afirmar como o ME insistentemente faz que apenas se verificam problemas pontuais. Não é verdade, não se verificam apenas alguns incidentes próprios dos processos de mudança, não me digam que estamos na antecâmara da educação de qualidade para todos embora registe o entusiasmo contagiante de alguns discursos sobre a “revolução” em curso e a construção da anunciada escola inclusiva de 2ª geração, algo que ainda não consegui perceber o que significará. Mas, certamente, serei mais um dos “desencantados” que não se convertem aos amanhãs que cantam.
Seria muito bom que eu estivesse errado mas a questão é que educação de qualidade para todos é bem mais exigente em recursos e apoios que uma sala de aulas para todos.
Continuo a entender que o processo de mudança ganharia se durante algum tempo, antes da publicação, o normativo estivesse em discussão e trabalho nas escolas, identificando e antecipando os processos decorrentes da mudança, as dificuldades e as necessidades em matéria de ajustamento de recursos, organização e procedimentos. Teria estimulado uma apropriação participada e permitiria construir com mais coerência e maior tranquilidade o trabalho a desenvolver pelas equipas das escolas quando, de facto, entrasse em vigor. Este entendimento também transparece no trabalho da FNE
Recordo que o DL 54/2018 foi publicado em Julho de 2018 para entrar em vigor em Setembro e a Lei 116/2019 foi publicada em 13/9/2019 ontem para entrar em vigor … a 14/09/2019.
Ao fim de mais de quarenta anos nesta lida o cansaço cresce e algum desencanto cresce. A idade também já não me permite optimismos ingénuos e aceitar que a realidade é o que me dizem que é e não o que nela vejo, oiço, leio.
Recorrendo a uma expressão aqui do Alentejo, deixem lá ver o que se segue.

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