Merece leitura e reflexão a entrevista do Público a Matilde
Sirgado da direcção do Instituto de Apoio à Criança e coordenadora do Projecto
Rua. Trata-se de um programa de apoio a crianças e jovens até aos 18 anos que “usam
a rua como estratégia de sobrevivência” e, naturalmente, o objectivo é
construir um projecto de vida que as tire da
A situação actual, 80 crianças acompanhadas no ano passado
face às 1800 apoiadas em 2000.
De facto o decréscimo é significativo, felizmente, mas
continuamos a ter crianças e jovens em situação de grande vulnerabilidade mas já não se
encontram como há alguns anos “crianças de rua”. As situações actuais estão
mais ligadas a fugas do contexto familiar ou de instituições, criam situações
de risco severo em matéria de exclusão ou delinquência, mas os contornos são
diferentes.
Esta questão que ainda merece preocupação recordou-me uma
experiência pessoal de há alguns anos, passou-se em Moçambique e creio que já
aqui contei.
Dessa vez estive duas semanas em Maputo com o Mestre
Malangatana, o Velho como lhe chamava, um Homem enorme que já partiu, deixou a
obra e as memórias. Estávamos a fazer um trabalho de formação de professores no
Centro Popular criado por ele na terra onde nasceu, Matalana, a uns quilómetros
de Maputo.
Já tenho partilhado algumas histórias desta graça que a vida
me concedeu. Durante toda a estadia jantávamos invariavelmente no Piri-piri, um
muito conhecido restaurante na Av. 24 de Julho.
Logo na primeira noite à saída do restaurante, sou
completamente submerso por um grupo de moluenes, nome porque são conhecidos os
miúdos e adolescentes que vivem na rua em Maputo tal como os "capitães da
areia" das ruas de Salvador de que falava outra grande figura, Jorge
Amado. Os moluenes tentavam vender-me toda a espécie de “arte popular” a preços
“mesmo, mesmo bons”.
Quando viram que vinha acompanhado do Velho, contiveram-se e
o Velho Malangatana falou no seu jeito impossível de descrever, “crianças, este
branco, o Zé Morgado, é meu amigo, é boa pessoa, é inteligente, vocês não
enganem este branco”.
Os miúdos protestaram que não queriam enganar-me e com
alguma surpresa, um deles mais velhito aproximou-se para me oferecer um dos
batiques que vendia. Perante o meu embaraço na aceitação, disse-me com um
sorriso maior que a cara, “sou eu que faço, também me chamo Morgado”. É
verdade, o batique estava assinado com um visível e inesperado “Morgado”. Hoje,
já passados alguns anos, o batique do Morgado de Maputo ocupa um lugar de
relevo na minha casa, na minha cabeça e no meu coração.
Mas de maior relevo ainda, é o lugar de Malangatana, um
Mestre.
Nunca me senti tão positivamente discriminado. Em várias das
noites seguintes recebi uma oferta bonita dos moluenes, as crianças da rua.
Daquelas prendas bonitas que só se dão aos amigos do Velho, do Mestre como eles
lhes chamavam.
Privilégio meu.
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