terça-feira, 13 de agosto de 2019

CRIANÇAS DE RUA


Merece leitura e reflexão a entrevista do Público a Matilde Sirgado da direcção do Instituto de Apoio à Criança e coordenadora do Projecto Rua. Trata-se de um programa de apoio a crianças e jovens até aos 18 anos que “usam a rua como estratégia de sobrevivência” e, naturalmente, o objectivo é construir um projecto de vida que as tire da
A situação actual, 80 crianças acompanhadas no ano passado face às 1800 apoiadas em 2000.
De facto o decréscimo é significativo, felizmente, mas continuamos a ter crianças e jovens em situação de grande vulnerabilidade mas já não se encontram como há alguns anos “crianças de rua”. As situações actuais estão mais ligadas a fugas do contexto familiar ou de instituições, criam situações de risco severo em matéria de exclusão ou delinquência, mas os contornos são diferentes.
Esta questão que ainda merece preocupação recordou-me uma experiência pessoal de há alguns anos, passou-se em Moçambique e creio que já aqui contei.
Dessa vez estive duas semanas em Maputo com o Mestre Malangatana, o Velho como lhe chamava, um Homem enorme que já partiu, deixou a obra e as memórias. Estávamos a fazer um trabalho de formação de professores no Centro Popular criado por ele na terra onde nasceu, Matalana, a uns quilómetros de Maputo.
Já tenho partilhado algumas histórias desta graça que a vida me concedeu. Durante toda a estadia jantávamos invariavelmente no Piri-piri, um muito conhecido restaurante na Av. 24 de Julho.
Logo na primeira noite à saída do restaurante, sou completamente submerso por um grupo de moluenes, nome porque são conhecidos os miúdos e adolescentes que vivem na rua em Maputo tal como os "capitães da areia" das ruas de Salvador de que falava outra grande figura, Jorge Amado. Os moluenes tentavam vender-me toda a espécie de “arte popular” a preços “mesmo, mesmo bons”.
Quando viram que vinha acompanhado do Velho, contiveram-se e o Velho Malangatana falou no seu jeito impossível de descrever, “crianças, este branco, o Zé Morgado, é meu amigo, é boa pessoa, é inteligente, vocês não enganem este branco”.
Os miúdos protestaram que não queriam enganar-me e com alguma surpresa, um deles mais velhito aproximou-se para me oferecer um dos batiques que vendia. Perante o meu embaraço na aceitação, disse-me com um sorriso maior que a cara, “sou eu que faço, também me chamo Morgado”. É verdade, o batique estava assinado com um visível e inesperado “Morgado”. Hoje, já passados alguns anos, o batique do Morgado de Maputo ocupa um lugar de relevo na minha casa, na minha cabeça e no meu coração.
Mas de maior relevo ainda, é o lugar de Malangatana, um Mestre.
Nunca me senti tão positivamente discriminado. Em várias das noites seguintes recebi uma oferta bonita dos moluenes, as crianças da rua. Daquelas prendas bonitas que só se dão aos amigos do Velho, do Mestre como eles lhes chamavam.
Privilégio meu.

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