Os tempos vão estranhos. Os discursos que circulam nos
inúmeros suportes são excessivamente contaminados por agendas, muitas vezes
ocultas. A produção e circulação de informação e conhecimento são
excessivamente determinadas pela “pós-verdade”, pelos “factos alternativos” ou,
em inglês é mais sofisticado, em “fake news”.
Os padrões éticos da nossa vida política, económica e social
baixaram e a mentira, as mentiras, são regra, deixaram de ser excepção seja
qual for a designação. Os últimos dias têm sido particularmente elucidativos.
Lembrei-me, nesta inquietação, de uma obra, lamentavelmente
pouco divulgada, do Professor António Bracinha Vieira, um homem enorme, um
mestre que me marcou e recordo de vez em quando pela sua lucidez e densidade
cultural e científica.
O livro, "Ensaio sobre o termo da história - trezentos
e sessenta e cinco aforismos contra o Incaracterístico" é um notável
ensaio sobre o que Bracinha Vieira chama de tempo da Absurdidade em que
predomina o Incaracterístico e organiza-se em 365 parágrafos antológicos, os
"aforismos", que combatem esse personagem dominante, o
Incaracterístico. A primeira edição do livro é de 1994, foi objecto de alguma
discussão num círculo diminuto e é evidente em muitos dos aforismos uma espécie
de premonição do que agora vivemos
Partilho convosco os aforismos 15 e 18.
"Instalou-se no
jargon cripto-anglófono do Incaracterístico uma inversão radical do sentido das
palavras liberal, liberalismo (ainda presas a um étimo comum com liberdade)
insinuando sob o totalitarismo da Absurdidade uma negaça de democracia.
Decidido a desnaturar conceitos prestigiosos dos quais nem sequer consegue
discernir o alcance, o Incaracterístico investe esses termos de um significado
oposto ao que lhes cabia."
"A democracia da
Absurdidade exerce-se num cenário oposto ao da cidade-estado: o
Incaracterístico elege o Incaracterístico, e todas as alternativas em jogo a
ele conduzem. Os sujeitos cujos nomes são designados logo surgem nos
ecrãs-circo da Grande Absurdidade, preenchendo hiatos entre a publicidade
mercantil, sem se aperceberem que são mercadoria de outras espécies. Dali
debitam os seus sirénicos e sorumbáticos cantos. e a escolha entre eles é o
fiel da liberdade do Incaracterístico".
A pensar.
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