Continuam a suceder-se os
trágicos episódios de violência sobre as mulheres. Ontem e hoje, dia que foi
considerado Dia de Luto Nacional pelas vítimas de violência doméstica, foram
conhecidos novos casos.
Como sabemos o mundo da violência
doméstica é bem mais denso e grave do que a realidade que conhecemos, ou seja,
aquilo que se conhece, apesar de recorrentemente termos notícias de casos
extremos, é "apenas" a parte que fica visível de um mundo escuro que
esconde muitas mais situações que diariamente ocorrem numa casa perto de si. É
também preocupante que diferentes estudos realizados em Portugal evidenciam um
elevado índice de violência presente nas relações amorosas entre gente mais
nova mesmo quando mais qualificada. Muitos dos intervenientes remetem para um
perturbador entendimento de normalidade o recurso a comportamentos que
claramente configuram agressividade e abuso ou mesmo violência.
O fenómeno da violência doméstica
é muito complexo e requer uma abordagem em diferentes dimensões, educação e
formação, sistema judiciário e código penal, Tribunais e juízes vocacionados
para estas problemáticas, questão que tem estado na agenda, código e molduras
penais, apoios e protecção das vítimas, etc.
Não sei o impacto da existência de
um Dia de Luto Nacional mas não sou muito optimista. No entanto se servir para
desencadear um verdadeiro movimento no âmbito da cidadania e dos diferentes
universos envolvidos de reflexão e desenvolvimento de iniciativas concertadas, eficazes e com
recursos já será um contributo.
Um dos aspectos que por vezes é
negligenciado no mundo da violência doméstica prende-se com as crianças
presentes nesses contextos familiares e o impacto que nelas pode causar este tipo de experiência. Umas notas breves a este propósito.
Em primeiro lugar recordar que os
dados disponíveis sugerem que em cada ano e em termos médios, 10 crianças ou
adolescentes ficam órfãs na sequência de um episódio de violência doméstica.
Muitos porque perdem a mãe por homicídio realizado por marido ou companheiro,
outros porque os pais foram presos ou se suicidaram após o crime. Não é
necessário sublinhar o impacto destas situações na vida de crianças e
adolescentes.
Parece-me também de considerar o
elevadíssimo número de crianças que assistem a cenas de violência doméstica e
dos efeitos prováveis dessas vivências. Segundo o Relatório relativo a 2017
produzido pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das
Crianças, é de 12,5% a percentagem de casos sinalizados devido a exposição à
violência doméstica.
Para além de sublinhar os danos
potenciais que esta exposição pode provocar nas crianças gostava de chamar a
atenção para um outro potencial efeito nas crianças que assistem a episódios,
por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que
são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das
queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite
pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios.
Numa avaliação por defeito aos
casos participados de violência doméstica estima-se que cerca de metade serão
testemunhados por crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas situações
não reportadas, pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes também
vítimas, serão em número bem mais elevado.
Através de um processo de
modelagem social que nem sempre a educação escolar consegue contrariar muitas
crianças poderão replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os
comportamentos a que assistiram e que, tal como podem produzir efeitos traumáticos,
poderão adquirir aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de normalidade.
Neste contexto e com o objectivo
de contrariar uma espécie de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem
à violência doméstica, replicam a violência, a sociedade é violenta, quando
crescem são violentos em casa e assim sucessivamente, importaria que os processos
educativos e de qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e quadro
de valores.
Não há nada de novo na afirmação
desta necessidade.
Finalmente, a referência a uma
questão hoje colocada na imprensa pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Os processos
de regulação parental decorrem nos Tribunais de Família e Menores enquanto os
processos de violência doméstica de correm nos Tribunais Criminais.
Acontece que, felizmente e desde
há algum tempo, as crianças são ouvidas nos processos de regulação parental mas,
segundo a APAV, também o deveriam ser nos processos que envolvem violência
doméstica a que muito provavelmente assistiram ou foram expostos e teriam certamente algo a dizer.
Esta situação mostra a
necessidade de concertação e coesão na intervenção neste universo nas suas
múltiplas dimensões.
Acresce que a intervenção junto
das famílias e a tentativa de contrariar dinâmicas disfuncionais, violência
doméstica por exemplo, não dispõe dos meios e recursos suficientes.
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