No DN de ontem tropecei, coisas
do tempo de férias, com a história comovente do Sr. Vítor. Trata-se de um dos
últimos sapateiros que em Lisboa trabalhavam em oficinas minúsculas na entrada de
prédios da Baixa e que devido a um incêndio no prédio e às incidências de um
mercado de que não faz parte ver-se-á sem local para continuar a sua arte.
O Sr. Vítor recordou-me uma
figura que durante muitos anos me esteve próxima, os anos da infância e adolescência.
A nossa estrada, seja mais longa
ou mais curta, quase nunca a percorremos sós, embora em alguns trajectos isso
possa acontecer. As pessoas que vamos encontrando vão-se arrumando em nós, umas
foram apenas um cruzamento de que já nem a memória regista, outras passaram,
ficou uma impressão, positiva ou negativa, que se recorda, quando a memória
acende. Algumas, menos, percorrem connosco a estrada, ainda e sempre, nas
subidas e nas descidas. Algumas outras continuam sempre a caminhar connosco,
mesmo quando já andam, porque pararam a sua estrada, ficam na nossa.
Uma destas pessoas foi o Sr.
Fernando, o Sapateiro, desculpem a maiúscula, ele merece. Era o Sapateiro da
minha terra, terrinha nessa altura. O Sr. Fernando tinha uma oficina pequena,
onde cabia a sua bancada baixinha e uns armários onde tinha alguns sapatos para
vender. Foi das pessoas mais bem-dispostas com a vida que conheci. Sempre com
ideias sobre histórias e partidas que nós miúdos ouvíamos encantados.
Estou a vê-lo, num banco
pequenino, de avental de lona grossa muito polido do uso e sempre com alguns de
nós a ouvir as histórias a que a D. Rosa, a mulher, quando estava, abanava a
cabeça com ar de “não tens juízo”. O Sr. Fernando foi ainda um homem que me,
nos, mostrou muito mundo. Naquele tempo, numa família sem carro e sem grande
orçamento, conhecíamos o mundo através de excursões a que se chegava com as
poupanças de serões e horas extra. Era o Sr. Fernando que as organizava, um
passeio à Nazaré, uma viagem de cinco dias ao Norte, um passeio à serra da
Estrela, uma viagem de três dias ao Algarve, e, não esqueço, até chegámos a ir
a Badajoz, ao Estrangeiro, pois claro, e foi o Sr. Fernando que nos levou ao
Estrangeiro, batíamos palmas quando passávamos a fronteira, sempre um momento
tenso, não vá a Guarda descobrir as garrafas de Coca-Cola que vinham escondidas
na roupa e mais os rebuçados.
Era o Sr. Fernando que sempre que
alguém adormecia no autocarro, soprava uma gaita aos nossos ouvidos que até os
neurónios estremeciam. E era o Sr. Fernando que arranjava umas pensões
manhosas, onde nos arrumávamos por famílias e que nos pareciam de muitas
estrelas quando ainda não tinham inventado as estrelas nos hotéis. E era o Sr.
Fernando, uma pessoa que não me lembro de ver aborrecida.
E é o Sr. Fernando que, de vez em
quando, como hoje, aparece para matar saudades e andar um bocadinho na minha
estrada, ele que já cumpriu a dele. Partiu há já uns anos.
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