Os nossos dias são agora marcados pela tragédia da pandemia e pela campanha eleitoral. A campanha iniciou-se ontem, mas sem que se possa estranhar, é pouco provável que tenhamos aquilo que se espera de uma campanha, confronto de ideias (programas) e que esse confronto, apesar de acalorado pelas motivações, seja sempre adequado em termos cívicos de modo que nós cidadãos possamos também nos sintamos esclarecidos e motivados para a participação fundamental no exercício do voto. A ver vamos.
Entretanto e como não podia deixar de ser, o país continua
viver e a mostrar o que, muito provavelmente, não será matéria de campanha
eleitoral.
Com chamada a primeira página lê-se no JN que, de um universo
de 2605 arguidos ou condenados à utilização de pulseira electrónica, mais de
metade está envolvido em crime de violência doméstica e que muitos dos restantes
indivíduos controlados por este dispositivo são vítimas de violência doméstica.
Este cenário é desta configuração desde 2015.
É um quadro inquietante, pelo volume, pela gravidade e pela
prevalência que persiste apesar de algumas pouco significativas mudanças.
Acresce que o mundo da violência doméstica é bem mais denso
e grave do que a realidade que conhecemos, ou seja, aquilo que se conhece,
apesar de recorrentemente termos notícias de casos extremos, é
"apenas" a parte que fica visível de um mundo escuro que esconde
muitas mais situações que diariamente ocorrem numa casa perto de si.
Por outro lado, para além da gravidade e frequência com que
continuam a acontecer episódios trágicos de violência doméstica e como
recorrentemente aqui refiro, é ainda inquietante o facto de que alguns estudos
realizados em Portugal evidenciam um elevado índice de violência presente nas
relações amorosas entre gente mais nova mesmo quando mais qualificada. Muitos
dos intervenientes remetem para um perturbador entendimento de normalidade o
recurso a comportamentos que claramente configuram agressividade e abuso ou
mesmo violência.
Importa ainda combater de forma mais eficaz o sentimento de
impunidade instalado, as condenações são bastante menos que os casos reportados
e comprovados, bem como alguma “resignação” ou “tolerância” das vítimas face à
situação de dependência que sentem relativamente ao parceiro, à percepção de
eventual vazio de alternativas à separação ou a uma falsa ideia de protecção
dos filhos que as mantém num espaço de tortura e sofrimento. Felizmente este
cenário parece estar em mudança, mas demasiado lentamente. Os sistemas de
valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão,
também e obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época.
Torna-se ainda necessário que nos processos de educação e
formação dos mais novos possamos desenvolver esforços que ajustem quadros de
valores, de cultura e de comportamentos nas relações interpessoais que
minimizem o cenário negro de violência doméstica em que vivemos. A educação e o
desenvolvimento que sustenta constitui a ferramenta de mudança mais potente de
que dispomos.
É uma aposta que urge e tão importante como os conhecimentos
curriculares. Percebe-se também por estas questões a importância da abordagem
do universo da “Cidadania e Desenvolvimento” nas escolas e para todos os
alunos.
Entretanto, torna-se fundamental a existência de
dispositivos de avaliação de risco e de apoio como instituições de acolhimento
acessíveis para casos mais graves e, naturalmente, um sistema de justiça eficaz
e célere.
A omissão ou desvalorização desta mudança é a alimentação de
um sistema de valores que ainda “legitima” a violência nas relações amorosas,
que a entende como “normal”.
Tudo isto tem como efeito a continuidade dos graves
episódios de violência que regularmente se conhecem, muitos deles com fim
trágico.
2 comentários:
Este é um assunto que nos envergonha a todos.
Estou certo que esses "mais novos" a que o José Morgado se refere já foram dos alunos que assistiram, na escola, a ações de formação de "violência no namoro", "violência de género", "violência doméstica"... ou será que faltaram?
É necessário insistir, não é fácil. Muitos alunos não aprendem todos os conteúdos das aulas a que assistem.
Enviar um comentário