A nossa vida está agora submersa numa preocupação gigantesca
e de diferentes dimensões de que dificilmente nos alheamos, mesmo que
brevemente. No entanto, parece-me também importante que não esqueçamos outras
questões.
Por estes dias, o Observatório da Violência no Namoro, uma
iniciativa da Associação Plano i no âmbito do Programa UNi+, divulgou alguns dados
relativos aos últimos três anos que continuam a ser preocupantes.
Neste período foram registadas 284 denúncias, 266 de
jovens mulheres e em que 91,9% dos agressores são homens.
Acontece ainda destas queixas colocadas ao Observatório
apenas 22,5% foram denunciadas às autoridades. É ainda de considerar pelo que
significa que das 284 queixas apresentadas, apenas 29 foram de vítimas actuais,
sendo 115 de testemunhas e 140 de ex-vítimas.
Como também sabemos as denúncias às autoridades e mesmo a
estruturas de apoio representam apenas uma parte do universo de violência no âmbito das
relações de namoro.
Acrescento um outro grupo de dados relativos ao estudo sobre
a Violência no Namoro 2019, que a União de Mulheres Alternativa e Resposta
(UMAR) tem vindo a realizar nos últimos anos tendo como participantes jovens.
O número de jovens, que namoram ou já namoraram que refere
ter sofrido pelo menos uma forma de violência por parte do parceiro(a) é de 58%
sendo que em 2018 era de 56%. Um dado ainda mais inquietante é manutenção de
taxa dramaticamente elevada de jovens que que entendem estas práticas como
“normais”, 67% no inquérito deste ano e 68,5% no estudo anterior.
Os comportamentos considerados envolvem difamação, o recurso
às redes sociais para chantagear o outro, o hábito de intromissão no telemóvel
ou nos bolsos, as agressões físicas e a coacção para práticas sexuais não
desejadas, etc.
Um outro trabalho também promovido pela Associação Plano i, “Violência
no Namoro em Contexto Universitário: Crenças e Práticas”, envolvendo apenas
jovens e jovens adultos com frequência ou formação universitária” confirma os
indicadores do trabalho desenvolvido pela UMAR, 54,7% dos jovens em Portugal já
sofreram pelo menos um acto de violência no namoro. Sublinho que estamos a
falar de estudantes universitários o que torna tudo ainda mais preocupante.
O que ainda me parece mais inquietante é a manutenção sem
grandes alterações destes indicadores ao longo dos anos o que talvez ajuda a
perceber como a violência doméstica parece indomesticável.
Os dados convergem no indiciar do que está por fazer em
matéria de valores e comportamentos sociais. Acresce que como referi e sabemos,
boa parte das situações de abuso não são objecto de queixa.
Este conjunto de dados é preocupante, gostar não é
compatível com maltratar, mas creio que não é surpreendente, lamentávelmente. Os dados sobre
violência doméstica em adultos que permanece indomesticável deixam perceber a
existência de um trajecto pessoal anterior que suporta os dados destes e de
outros trabalhos sobre violência no namoro e que se mantêm inquietantes. Aliás, nos últimos anos a maioria das queixas de violência
doméstica registadas pela APAV foram de mulheres jovens embora seja um drama presente em todoas as idades.
Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem
mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores
sociais presentes em cada época. De facto, e reportando-nos apenas aos dados
mais gerais, é criticamente relevante a percentagem de jovens, incluindo estudantes
universitários, que afirmam um entendimento de normalidade face a diferentes
comportamentos que evidentemente significam relações de abuso e maus-tratos.
Como todos os comportamentos fortemente ligados à camada
mais funda do nosso sistema de valores, crenças e convicções, os nossos padrões
sobre o que devem ser as relações interpessoais, mesmo as de natureza mais
íntima, são de mudança demorada. Esta circunstância, torna ainda mais
necessária a existência de dispositivos ao nível da formação e educação de
crianças e jovens; de uma abordagem séria persistente nos meios de comunicação
social; de um enquadramento jurídico dos comportamentos e limites numa
perspectiva preventiva e punitiva e, finalmente, de dispositivos eficazes de
protecção e apoio a eventuais vítimas.
Só uma aposta muito forte na educação, escolar e familiar,
pode promover mudanças sustentadas nesta matéria. É uma aposta que urge e tão
importante como os conhecimentos curriculares.
Entretanto e enquanto não muda, "só faço isto, porque
gosto de ti, acreditas não acreditas?"
Apesar da natureza e gravidade fora do comum dos dias que vivemos e para os quais não estávamos preparados, talvez seja de não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano de muita gente.
Apesar da natureza e gravidade fora do comum dos dias que vivemos e para os quais não estávamos preparados, talvez seja de não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano de muita gente.
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