quarta-feira, 4 de abril de 2018

"MIMOS A MAIS" É COISA QUE NÃO EXISTE


O Público de ontem retomou mais um episódio da vida trágica de um jovem americano que em 2013, com 16 anos e alcoolizado atropelou mortalmente 4 pessoas. O caso ficou conhecido porque o jovem escapou a uma pena de prisão efectiva com base no entendimento aceite em Tribunal de pertencer a uma família muito rica e ser muito “mimado”.
Em 2016 o Público retomou esta situação com uma peça na qual dei uma pequena colaboração.
Espero que o jovem, como todos os que já alguma vez tropeçaram, possa retomar um caminho positivo para si e para a comunidade.
Não é reconhecido nenhuma sustentação científica para o “distúrbio” alegado em tribunal mas, provavelmente, pelas especificidades e cultura do sistema jurídico americano o Tribunal entendeu como atenuante substantivo para o comportamento do jovem.
As minhas notas de hoje remetem mais para a ideia tão frequentemente afirmada de que os comportamentos inadequados de crianças e adolescentes se devem a “mimos a mais”. Tal como afirmei no trabalho do Público e em texto para a Visão é um entendimento que me “tira do sério”, não existem "mimos a mais". Ponto.
Tal justificação costuma servir depois para se afirmar a ideia de que as crianças hoje em dia têm muitos mimos que as “estragam”, dito de outra maneira, têm “afecto” a mais ou ainda “gosta-se de mais” das crianças. Estes discursos, que alguns profissionais destas áreas também subscrevem, merecem-me alguma reserva pois assentam, do meu ponto de vista, num equívoco.
De uma forma geral, as crianças não terão afecto a mais, poderão, isso sim, ser objecto de “mau afecto”. É essa falta de qualidade que lhes poderá ser prejudicial. Não é mau por ser muito, é mau porque asfixia, é tóxico, não deixa que os miúdos cresçam, distorce a percepção da criança de si própria e do seu funcionamento, não permite o estabelecimento de uma relação saudável, protectora e promotora da autonomia das crianças, uma condição fundamental para o seu desenvolvimento positivo. No entanto, não é este tipo de reflexão que leva muitos de nós a falar dos “mimos a mais”.
Insisto, as crianças não têm elogios ou mimos a mais. O que se passa mais frequentemente é que recebem “nãos” de menos. Na verdade, muitos adultos, pais, sendo quase sempre capazes de dar os mimos, mostram-se muitas vezes incapazes de dar os “nãos”, de estabelecer os limites e as regras que, como sempre digo, são tão necessárias às crianças como respirar e alimentar-se. Estes “nãos” são outros mimos imprescindíveis na educação de crianças e adolescentes nos seus diferentes contextos de vida.
As regras e os limites são bens de primeira necessidade. Tal como com os afectos, nenhuma dieta educativa pode prescindir de regras e limites.
Ficando sem “nãos” muitas crianças, a coberto da ideia dos “mimos a mais”, transformam-se em pequenos ditadores que infernizam a vida de toda a gente, a começar pela sua própria vida. Não crescem saudavelmente.
Neste contexto, apoiar e ajudar os pais a desenvolverem de forma confiante comportamentos de disponibilidade e escuta de crianças e adolescentes, a assumirem com firmeza e sem culpa a necessidade de definir regras e limites, de mostrar afecto sem que se sintam a dar “mimos” a mais que “estragam” os filhos, só pode resultar em bom trabalho, para os pais e para os filhos.
De pequenino é que se constrói … o destino.

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