quarta-feira, 27 de julho de 2011

A DESPEDIDA

Colegas, desculpem, só mais um minuto antes de acabar a reunião. Como alguns sabem, embora me falte algum tempo de carreira, decidi pedir para aceder à situação de reforma e creio que esta será última reunião que farei convosco.
Gostava de vos dizer que a magia que me trouxe à profissão, contribuir para que os miúdos se façam gente e ir assistindo a essa narrativa, se manteve desde o primeiro até ao último dia. Descobri essa magia há muitos anos com a minha professora da primária que me fez querer ter esta missão como forma de vida. Foi um privilégio. Agradeço aos miúdos com quem me cruzei o caminho que fizeram comigo, Não fui bem sucedida com todos, mas com todos tentei ser bem sucedida. Vou tranquila.
Devo dizer-vos também que a sombra e abrigo que encontrei em muitos colegas ao longo destes anos foram alento e incentivo para que essa magia e encanto se mantivessem. Por isso agradeço também às companhias, muitas, que comigo foram fazendo esta estrada.
Finalmente, embora leve a magia do que vos falei, também carrego o desencanto que apressou a partida. Sei que os tempos são difíceis e são diferentes, mas o desencanto foi-se instalando de mansinho e não derivado dos problemas novos que os miúdos trazem, esses a gente tem que pensar que para problemas novos, soluções novas. Decidiram que os papéis são mais importantes que os miúdos e têm vindo a encharcar a escola e os professores com burocracia, legislação e orientações que apenas atrapalham e retiram qualidade e disponibilidade. Depois de décadas sem uma avaliação que discriminasse o mérito e combatesse a mediocridade, voltam-nos uns contra os outros de uma forma inexplicável que arruinou o clima de trabalho em muitas escolas. A escolas foram-se transformando em espaços privilegiados para o confronto de interesses outros que não os dos miúdos. Assistimos a discursos de gente responsável que denigre de forma leviana a imagem dos professores. Comecei a sentir que o meu bem mais precioso, a dignidade, estava ameaçado e nesse bem não deixo que toquem. Por isso, decidi partir.
Queria só pedir-vos que, se por acaso, alguns dos miúdos perguntarem por mim no próximo ano, digam-lhes que hei-de aparecer. Os professores não se reformam.
E eu sou uma professora. Até um dia destes.

3 comentários:

MafaldaContestataria disse...

Sinto que a minha mãe poderia ter escrito ou vir a escrever algo muito semelhante a este texto Professor...
e isso não tem nada de animador.
Mafalda Antunes

Zé Morgado disse...

Lamento Mafalda, mas não pretendia ser animador. Uma despedida quase nunca é animadora

Hélia disse...

Tenho a certeza que muitos de nós poderiam ter escrito este texto. Só não fiz a minha despedida porque ainda há filhos a estudar para serem caixas de supermercado ou merceeiro... sem desprestígio para qualquer um deles.
Os meninos também me dão algum alento para seguir em frente...confesso que a vontade de desistir, às vezes, parece querer falar mais alto!
O que é que fizeram aos cravos de Abril?
Por que valores é que a minha geração lutou?