A crónica de Luís Francisco hoje no Público recordou-me um longínquo episódio que carrego num cantinho da mochila e de que não me orgulho particularmente.
Tendo terminado a 4ª classe e não havendo liceu oficial na margem sul, o Externato Frei Luís de Sousa era inacessível, os meus pais entenderam que com 9 anos era complicado ir para Lisboa, não havia ainda a ponte e a escola mais perto dos barcos era o velho Passos Manuel. Assim, com ajuda de uns familiares mais “letrados”, encontraram uma antiga professora que fazia “ensino doméstico” em Almada com um grupo pequeno que estava oficialmente matriculado no Liceu Camões, onde fomos fazer os exames do 1º ciclo do liceu como alunos externos.
Mesmo assim era uma experiência. Apanhava um autocarro para Cacilhas e um outro para Almada descendo na zona “nobre”, mesmo à beira do mítico Café Central onde viria a fazer boa parte do meu percurso estudantil. Acontece ainda que essa paragem era das mais frequentadas de Almada tendo sempre gente.
Quase à porta do Central, com público garantido, estavam reunidos os ingredientes necessários para uma bela exibição da rapaziada em crescimento no corpo e no juízo, descer dos autocarros com estes ainda em andamento.
Com alguma imodéstia, não era mau na performance e a adrenalina da assistência fazia desafiar a velocidade do desempenho.
Claro que a coisa um dia correu mal. Como de costume, abri a porta dos velhos autocarros da Piedense, olhei para a potencial plateia, antecipei o aplauso e lancei-me. Faltou velocidade e cumprimento nas pernas e o resultado foi lastimável. Espalhei-me ao comprido. Quando olhei para o meu lado estava o saco donde escorria a sopa que levava para o almoço, comer fora era um luxo. Usava uma daquelas marmitas antigas de “dois andares” encaixados, um para a sopa e outro para o “conduto”, também ele a sair do saco misturado com a sopa e eu com as calças rasgadas, joelhos e mãos a sangrar, a olhar de soslaio para a assistência, esperando ouvir a todo o momento um monumental assobio pela actuação desastrada.
Juntos os cacos do almoço e da minha auto-estima estilhaçada e reprimindo as lágrimas que as esfoladelas sérias de joelhos e mãos pediam, afastei-me com um ar que, quero acreditar, convenceu aquela a gente a não patear o infortunado artista.
Embora actualmente não passe com regularidade por ali, quando o faço, sinto ainda que estão a olhar para mim e para o meu almoço espalhados pelo chão. Inconscientemente, ando um bocadinho mais depressa.
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