terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

DE CONSCIÊNCIA TRANQUILA

 Parece que não pára de crescer o conhecimento de situações de vacinação indevida sendo que já foi prometido um regime sancionatório e terão sido desencadeadas investigações por parte do Ministério Público.

O que é ainda mais inquietante é a tranquilidade com que, aparentemente, recebemos estas notícias, sustentando a ideia de que “já estávamos à espera” e … “é sempre assim”.

Diversas vezes aqui tenho referido a esta espécie de traço da nossa cultura cívica, "a atençãozinha" ou a sua variante "dar um jeito" em escala variada. Trata-se de um fenómeno, um comportamento, profundamente enraizado e com o qual parecemos ter uma relação ambivalente, uma retórica de condenação, uma pontinha de inveja dos dividendos que se conseguem e a tentação quotidiana de receber ou providenciar uma "atençãozinha" ou pedir ou dar um jeito, sempre "desinteressadamente", é claro.

A teia de interesses que ao longo de décadas se construiu envolvendo o poder político, a administração pública, central e autárquica, o poder económico, o poder cultural, a área da justiça e segurança, parte da comunicação social e toda a relação do dia a dia com a "atençãozinha" à recepcionista que nos passa para a frente na lista de espera ou ao funcionário de quem esperamos que possa dar um "jeito", dificulta seriamente qualquer alteração substantiva neste modo de funcionar.

Depois, da vacina para o amigo aos “negócios” de milhões, é só uma questão de escala.

Combater este cenário passará, naturalmente, por meios e legislação adequada, mas passa sobretudo pela formação cívica que promova uma outra cidadania

Do meu ponto de vista, e devido justamente à complexa teia de interesses instalada, mais do que não querer mexer seriamente na questão da corrupção, a questão é não poder e vejamos porque não se pode.

Nas últimas décadas, temos vindo a assistir à emergência de lideranças políticas que, salvo honrosas excepções, são de uma mediocridade notável. Temos uma partidocracia instalada que determina um jogo de influências e uma gestão cuidada dos aparelhos partidários ou próximos donde são, quase que exclusivamente, recrutados os dirigentes da enorme máquina da administração pública e instituições e entidades sob tutela do estado.

A alteração desta teia sem fim que se estende a todos os domínios apesar das muitas e honrosas excepções de ética, seriedade e competência será uma tarefa gigantesca.

Como sempre nestas ocasiões e de acordo com o “script” clássico, veja-se as declarações de alguns dos envolvidos na cedência de vacinas a quem as não deveria receber, ouvimos que estão de “consciência tranquila” ou a variante "nada me pesa na consciência". Acredito que tal possa acontecer pois, para este pessoal, “consciência” não significa certamente o mesmo que para a maioria das pessoas.

Certamente que poderíamos viver sem a "atençãozinha" ou o "jeitinho", mas não era a mesma coisa.

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