sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

DEFINITIVAMENTE, MALTRATAR NÃO É GOSTAR

 A nossa vida está agora submersa numa preocupação gigantesca e de diferentes dimensões de que dificilmente nos alheamos, mesmo que brevemente. No entanto, parece-me também importante que não esqueçamos outras questões.

Foram divulgados os dados relativos a 2020 do estudo sobre a Violência no Namoro que a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) tem vindo a realizar nos últimos anos promovendo a prevenção primária de violência de género. O trabalho envolveu 4598 jovens de escolas de todos os distritos do continente e ilhas, do 7.º ao 12.º ano de escolaridade.

Alguns indicadores relevantes. 67% dos jovens inquiridos, média de 15 anos de idade, consideram legítima a violência no namoro. Destes, 26% acham legítimo o controlo, 23% a perseguição, 19% a violência sexual, 15% a violência psicológica, 14% a violência através das redes sociais e 5% a violência física.

De registar ainda que 25% acham aceitável insultar durante uma discussão, 35% que é aceitável entrar nas redes sociais sem autorização, 29% que se pode pressionar para beijar e 6% entendem como aceitável empurrar/esbofetear sem deixar marcas.

São dados profundamente inquietantes. Em cerca de 5000 jovens com uma média de 15 anos de idade 67% acham normal algum tipo de violência nas relações de namoro e 58% referem já ter sofrido pelo menos uma forma de violência.

O que torna a situação ainda mais complexa é a manutenção sem grandes alterações destes indicadores ao longo dos anos, incluindo trabalhos com estudantes do ensino superior, o que talvez ajude a perceber como a violência doméstica parece indomesticável.

Os dados convergem no indiciar do que está por fazer em matéria de valores e comportamentos sociais. Acresce que como sabemos, boa parte das situações de abuso não são objecto de queixa.

Este conjunto de dados é preocupante, gostar não é compatível com maltratar, mas creio que não é surpreendente, lamentavelmente. Os dados sobre violência doméstica em adultos que permanece indomesticável deixam perceber a existência de um trajecto pessoal anterior que suporta os dados destes e de outros trabalhos sobre violência no namoro e que se mantêm inquietantes. Aliás, nos últimos anos a maioria das queixas de violência doméstica registadas pela APAV foram de mulheres jovens embora seja um drama presente em todas as idades.

Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época. De facto, e reportando-nos apenas aos dados mais gerais, é criticamente relevante a percentagem de jovens, incluindo estudantes universitários, que afirmam um entendimento de normalidade face a diferentes comportamentos que evidentemente significam relações de abuso e maus-tratos.

Como todos os comportamentos fortemente ligados à camada mais funda do nosso sistema de valores, crenças e convicções, os nossos padrões sobre o que devem ser as relações interpessoais, mesmo as de natureza mais íntima, são de mudança demorada. Esta circunstância, torna ainda mais necessária a existência de dispositivos ao nível da formação e educação de crianças e jovens; de uma abordagem séria persistente nos meios de comunicação social; de um enquadramento jurídico dos comportamentos e limites numa perspectiva preventiva e punitiva e, finalmente, de dispositivos eficazes de protecção e apoio a eventuais vítimas.

Só uma aposta muito forte na educação, escolar e familiar, pode promover mudanças sustentadas nesta matéria. É uma aposta que urge e tão importante e sublinha a necessidade óbvia de matérias desta natureza serem objecto de abordagem na educação escolar sendo que não terão de o ser de uma forma “disciplinarizada”. Não me parece que haja outro caminho

Entretanto e enquanto não muda, "só faço isto, porque gosto de ti, acreditas não acreditas?"

Retomo como iniciei. Apesar da natureza e gravidade fora do comum dos dias que vivemos e para os quais não estávamos preprarados, talvez seja de não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano de muita gente.

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