A nossa vida está agora submersa numa preocupação gigantesca e de diferentes dimensões de que dificilmente nos alheamos, mesmo que brevemente. No entanto, parece-me também importante que não esqueçamos outras questões.
Foram divulgados os dados relativos a 2020 do estudo sobre a
Violência no Namoro que a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) tem
vindo a realizar nos últimos anos promovendo a prevenção primária de violência
de género. O trabalho envolveu 4598 jovens de escolas de todos os distritos do
continente e ilhas, do 7.º ao 12.º ano de escolaridade.
Alguns indicadores relevantes. 67% dos jovens inquiridos,
média de 15 anos de idade, consideram legítima a violência no namoro. Destes,
26% acham legítimo o controlo, 23% a perseguição, 19% a violência sexual, 15% a
violência psicológica, 14% a violência através das redes sociais e 5% a
violência física.
De registar ainda que 25% acham aceitável insultar durante
uma discussão, 35% que é aceitável entrar nas redes sociais sem autorização,
29% que se pode pressionar para beijar e 6% entendem como aceitável empurrar/esbofetear
sem deixar marcas.
São dados profundamente inquietantes. Em cerca de 5000
jovens com uma média de 15 anos de idade 67% acham normal algum tipo de
violência nas relações de namoro e 58% referem já ter sofrido pelo menos uma forma
de violência.
O que torna a situação ainda mais complexa é a manutenção
sem grandes alterações destes indicadores ao longo dos anos, incluindo trabalhos com estudantes do ensino superior, o que talvez ajude
a perceber como a violência doméstica parece indomesticável.
Os dados convergem no indiciar do que está por fazer em
matéria de valores e comportamentos sociais. Acresce que como sabemos, boa
parte das situações de abuso não são objecto de queixa.
Este conjunto de dados é preocupante, gostar não é
compatível com maltratar, mas creio que não é surpreendente, lamentavelmente.
Os dados sobre violência doméstica em adultos que permanece indomesticável
deixam perceber a existência de um trajecto pessoal anterior que suporta os
dados destes e de outros trabalhos sobre violência no namoro e que se mantêm
inquietantes. Aliás, nos últimos anos a maioria das queixas de violência
doméstica registadas pela APAV foram de mulheres jovens embora seja um drama
presente em todas as idades.
Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem
mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores
sociais presentes em cada época. De facto, e reportando-nos apenas aos dados
mais gerais, é criticamente relevante a percentagem de jovens, incluindo
estudantes universitários, que afirmam um entendimento de normalidade face a
diferentes comportamentos que evidentemente significam relações de abuso e
maus-tratos.
Como todos os comportamentos fortemente ligados à camada
mais funda do nosso sistema de valores, crenças e convicções, os nossos padrões
sobre o que devem ser as relações interpessoais, mesmo as de natureza mais
íntima, são de mudança demorada. Esta circunstância, torna ainda mais
necessária a existência de dispositivos ao nível da formação e educação de crianças
e jovens; de uma abordagem séria persistente nos meios de comunicação social;
de um enquadramento jurídico dos comportamentos e limites numa perspectiva
preventiva e punitiva e, finalmente, de dispositivos eficazes de protecção e
apoio a eventuais vítimas.
Só uma aposta muito forte na educação, escolar e familiar,
pode promover mudanças sustentadas nesta matéria. É uma aposta que urge e tão
importante e sublinha a necessidade óbvia de matérias desta natureza serem
objecto de abordagem na educação escolar sendo que não terão de o ser de uma
forma “disciplinarizada”. Não me parece que haja outro caminho
Entretanto e enquanto não muda, "só faço isto, porque gosto de ti, acreditas não acreditas?"
Retomo como iniciei. Apesar da natureza e gravidade fora do comum dos dias que vivemos e para os quais não estávamos preprarados, talvez seja de não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano de muita gente.
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