As iniciativas e referências desencadeadas pela passagem dos
75 anos da libertação de Auschwitz fazem-nos lembrar tempos de terror, tempos de
holocausto.
Não podem ser esquecidos estes tempos, sobretudo, numa época
em que a intolerância, o racismo, o atropelo a direitos de minorias, a
violência, o ódio, a exclusão, parem estar a crescer, estão muito perto de cada um de
nós.
Acho que muitos de nós chegámos a acreditar que algumas
páginas da história estariam viradas de vez e seriam história. Muitos de nós sentimo-nos perplexos porque …são presente.
Sabemos que os comportamentos e discursos fortemente ligados à camada
mais funda do nosso sistema de valores, crenças e convicções são de mudança
demorada. Esta circunstância, torna ainda mais necessária a existência de
dispositivos ao nível da formação e educação de crianças e jovens e de uma
abordagem séria e persistente nos meios de comunicação social que assentem na
promoção da tolerância e respeito pela diferença pelos direitos humanos.
Se olharmos para a mediocridade da generalidade das
lideranças actuais mais evidente se torna que só uma aposta muito forte na
educação, escolar e familiar, pode promover mudanças sustentadas neste quadro
de valores.
É uma aposta que urge e tão importante como os conhecimentos
curriculares.
3 comentários:
Amigo João, permite que te agradeça o teu texto com duas cartinhas das minhas:
Caldas da Raínha, janeiro de 2040
Escrevo esta cartinha no dia em que se comemora os 95 anos da libertação de Auschwitz. Para que não se mate a memória do holocausto, para recordar que, no final da segunda década deste século, alguns bonsais humanos incentivavam práticas escolares reprodutoras da proto-história da humanidade.
A militarização da escola operada pela Prúsia do século XIX era reforçada por medidas absurdas emanadas de um poder público, que desconhecia que o adestramento não define a educação, que a educação é incompatível com uma organização autoritária da vida.
Há cerca de vinte anos, num tempo de pós-verdade, assistimos a um “regresso ao passado”. O pesadelo cessou, felizmente. Hoje, libertos de “militarizações”, os tempos são outros. Mas continua a ser necessário denunciar o autoritarismo, que fez do sistema educacional alemão do Terceiro Reich o ninho da serpente.
Nas cartas, que escrevi à Alice, vos falava de pássaros. Nesta, evocarei a simbólica pomba da paz, com ramo de oliveira no bico. Simbolicamente, anunciava o nascer de um novo tempo, onde práticas educacionais fósseis não faziam mais sentido.
Hoje, estão nas prateleiras dos museus da pedagogia. Mas, vinte anos atrás professaurios as reproduziam, condicionando sementeiras de humanidade, condenando sucessivas gerações de aves a uma sub-vida. Mesmo com o pombal aberto, as jovens aves não se arriscavam em voos divergentes.
Confirmando essa metafórica evidência, em pleno século XXI, ainda eram muitas as escolas onde se “dava aula”, na ignorância de que a aula não ensinava e de que havia muitos modos de aprender. No século XIX, num tempo em que já se questionava se seria possível ensinar a todos como se fosse um só, o Eça das Conferências do Casino escrevia: As crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo. O professor domina e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino.
Mais de cem anos decorridos, a pretrexto de juvenis indisciplinas, de curriculares flexibilizações, ou de baixos índices de proficiência – que a escola da aula produzia! – burocratas e políticos boçais criavam a aparência do novo e deixavam tudo como dantes.
Mas, au bout du chagrin, uns fenêtre ouverte, une fenetre eclairé … e o amigo João, pai amoroso, responsável, preocupado com o futuro dos seus filhos, procurou e encontrou uma escola onde algumas professoras éticas ousaram criar um núcleo de projeto. Com os jovens a seu cuidado, começaram a construir projetos de vida e a produzir conhecimento útil à comunidade. Na produção de currículo, contemplaram a dimensão da consciência planetária, para obstar à destruição da vida em comum. Porque, nesses sombrios tempos, a Austrália estava sendo devastada pelo fogo. As geleiras estavam derretendo. Tragédias provocadas pela humana incúria, faziam perecer milhões de animais e aceleravam a extinção de espécies. Os Estados Unidos e o Irão ameaçavam começar aquilo que poderia ser a terceira (e última) guerra mundial…
Na contracorrente, o João, o Manuel, o Diogo, a Magda, a Conceição, o António, o André, o Bernardo e tantos outros amorosos educadores, anunciavam tempos de paz, a ultrapassagem da proto-historia da humanidade.
Santa Comba, janeiro de 2040
Enquanto estivermos vivos, é nosso dever falar aos que não eram nascidos, para que saibam até onde se pode chegar – palavras de Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz.
Um psiquiatra holandês, que assistiu à libertação do campo da morte dizia ser preciso anotar, “para todos ficarem a saber e nunca mais acontecer”. E fez-se necessário contar e recontar o terror, há vinte anos, quando contornos de novas inquisições e ditaduras ressurgiam. Duas décadas atrás, quando a extrema-direita e o populismo aumentavam a sua influência, citando Goebbels, negando o desastre climático e as câmaras de gás, foi necessário refrescar memórias.
Auschwitz aconteceu numa Europa supostamente culta, humanizada, mas que sucumbiu numa orgia de violência e desintegração humana sem precedentes. Primo Levi sobreviveu a Auschwitz, mas não resistiu à recordação de horrores e se suicidou. O seu último livro – “Os que Sucumbem e os que se Salvam” – reflete o temor de que tudo viesse a repetir-se.
Após a segunda guerra mundial, os Estados Unidos lançaram um projeto de reconstrução e de reestruturação econômica de países europeus: o chamado Plano Marshall. Mas, por se ter aliado a Hitler, Mussolini e Franco, o ditador Salazar privou o seu país dessa preciosa ajuda.
Nasci, exatamente, seis anos após o primeiro dia do pós-guerra e a meio dos quarenta e oito anos da ditadura de Salazar. Passando pela terra onde nasceu o ditador (Santa Comba), dolorosas recordações me assaltaram: as fomes infligidas aos vossos trisavôs, a injusta prisão do vosso bisavô, os maus-tratos por que passou a geração deste vosso avô.
Na escola do tempo de ditadura, o professor enchia-nos de pontapés, socos na cara e, pegando-nos pelos cabelos, batia a nossa cabeça contra o quadro negro. Nos idos de sessenta, conheci um professor que distribuía tapas pelas razões mais comezinhas. Mas do que ele gostava mesmo era da cruel “chamada ao quadro”. Quando o “Senhor Engenheiro” – ele não permitia que o tratassem por professor e nisso estava certo – sadicamente acariciava a caderneta dos alunos e a abria numa página ao acaso, um silêncio tumular prenunciava a tormenta – quem seria a vítima do dia? O suspense era quebrado, quando um nome era pronunciado e muitos suspiros de alívio se ouviam em surdina. “Fulano de tal! Ao quadro! Já!” – E o fulano lá ia, como ovelha para a degola.
O Dimas fazia parte do grupo dos mártires. Já havia sido contemplado com humilhações, que lhe deterioraram a auto-estima de jovem com quinze anos feitos.
Naquele dia, o “Engenheiro” estava mais carrancudo que o habitual. As tábuas do estrado rangeram de um modo mais tenebroso que o habitual. Os momentos que precederam o momento fatal pareceram ainda mais longos que o habitual. O “Engenheiro” apoiou os cotovelos na secretária e os seus dedos passearam pelas páginas da caderneta. A sua voz saiu mais cavernosa que o habitual. Mas o que era habitual não aconteceu.
O Dimas escutou o seu nome, mas não se levantou. Ouvimos um gotejar semelhante ao da chuva no telhado. Mas, lá fora, o dia estava solarengo. Era o Dimas, sentado na sua carteira, hirto… urinando.
Abraço fraterno!
José
Olá José Pacheco, na verdade é também com a memória que se percebe o presente e se constrói o futuro. Também na educação. Abraço.
Enviar um comentário