quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

A MEDIATIZAÇÃO DA POBREZA


Escrevi este texto no final da tarde de ontem mas apenas hoje que já não é Natal o divulgo, não queria atrapalhar o espírito natalício, seja lá isso o que for. Na verdade, o Natal não é quando um homem quiser.
A não ser num exercício romântico em torno da ideia do clochard francês que escolhe a rua como acto de resistência e projecto de vida, o sem-abrigo é, por natureza e condição, isso mesmo, um sem-abrigo.
Numa sociedade que procura e promove os níveis de bem-estar que já atingimos e que nunca nos satisfazem, a falta de um abrigo, é, creio, a mais despojada das condições sendo que modelos de desenvolvimento e políticas dirigidas a mercados e não a pessoas têm produzido legiões de desabrigados.
Um abrigo, uma casa, grande ou pequena, constitui uma espécie de céu protector para cada um de nós. É também verdade, que não basta o abrigo para ser protector, nas mais das vezes, para além da falta de abrigo existe um mais sério problema de abandono e solidão.
De vez em quando, por diferentes razões, agora porque é Natal e as consciências obrigam, descobre-se a existência de sem-abrigo e pessoas sós nas nossas cidades, Então, durante algum tempo, aparecem ad nauseam notícias e peças televisivas que "cobrem" iniciativas variadas, almoços, jantares, distribuição de bens, etc., muitas vezes de um nível intrusivo absolutamente inaceitável. Já perdi a conta às reportagens sobre os jantares de Natal que estão a ser "oferecidos" a "pobrezinhos" de Lisboa, do Porto e de outras cidades do País.
As entrevistas, de uma forma geral, são obscenas e insultam a dignidade dos entrevistados, "este senhor" ou "esta senhora" que têm uma refeição "muito boa", "estou muito contente", "está tudo muito bem", têm um aspecto lavadinho e composto e agradecem muito a quem lhes oferece tal experiência muito caridosa.
Não questiono, evidentemente, a genuína intenção das pessoas e instituições que se disponibilizam para minimizar dificuldades, muitas delas durante todo o ano, embora o problema não seja o cobertor mas, fundamentalmente, o abrigo e a solidão. As pessoas e as instituições desenvolvem um trabalho e um esforço notáveis. A minha questão é o lado voyeurista e quase predatório com que boa parte da comunicação social, sobretudo televisiva, trata pessoas a que poucas vezes dedica atenção. As perguntas e reportagens, sem decoro nem respeito, que esforçados e incompetentes “profissionais” realizam são quase insultuosas e atentatórias dos direitos das pessoas. Esta forma de mediatização da pobreza, sazonal como é evidente, é um verdadeiro escândalo que nos deveria envergonhar a todos, a começar pelos (ir)responsáveis editoriais.
As pessoas sem-abrigo, "só" não têm abrigo, não são adereços fornecidos por uma qualquer produção para montar espectáculos televisivos. Ainda lhes restará, acredito, o que ninguém pode perder, a dignidade.

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