quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A REFORMA DO ESTADO. A implosão do ensino público

O Guião da Reforma do Estado que andou a ser longamente preparado por Paulo Portas refere, no que respeita à educação, a "prioridade relevante" à regulamentação do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, há meses apresentado e que  “clarifica e actualiza, entre outras, as matérias relativas à autonomia, iniciativa, abertura e fiscalização de estabelecimentos particulares e cooperativos”, dando-lhes novos poderes, de acordo com o Guião de Paulo Portas que mantém a retórica da autonomia das escolas públicas mas que em termos práticos é um fingimento basta atentar na gestão dos recursos humanos, na organização da rede ou nas questões curriculares.
Ainda no que respeita às escolas privadas, o "Reforma do Estado" em modo Portas prevê “um novo ciclo de contratos de associação” com colégios, associado a critérios de superação do insucesso escolar. “O Ministério da Educação pode e deve abrir concursos para que, desde logo, nalguns territórios em que as instituições educativas, continuadamente, apresentam resultados escolares com maiores dificuldades e níveis de insucesso, haja uma maior abertura da oferta e uma saudável concorrência de projetos de escola”, afrma-se no Guião sublinhando os bons resultados das escolas privadas nos rankings nacionais.
Nada de surpreendente a não ser o despudor de tornar mais explícita a estratégia de fortalecimento do ensino privado assumindo, por exemplo, com clareza que em situações de insucesso o caminho não é melhorar a escola pública que continuará a degradar-se, mas substituí-la pela resposta educativa privada com a novidade de grupos de professores se poderem assumir como gestores de escolas independentes, actualmente públicas num modelo importado cujos bons resultados estão por demonstrar.
Claro que, como não podia deixar de ser lá vem o cheque-ensino ainda que em fase experimental. Recordo que o ensino vocacional defendido por Nuno Crato foi implantado em 13 escolas em fase experimental e sem que tivesse sido concluída a avaliação, aliás desfavorável, subiu este ano lectivo em 3000% o número de turmas envolvidas, de resto com fortíssimos problemas no desenho da oferta e na constituição das turmas. O Guião também sublinha a aposta no ensino vocacional cujo modelo, o preconizado por Crato e decalcado do modelo dual alemão, tem sido criticado em Relatórios da OCDE e da UNESCO que entendem, bem, que a colocação dos alunos com piores resultados escolares em ensino de carácter técnico e vocacional, muito cedo, em vez da aposta nas aquisições escolares fundamentais, aumenta a desigualdade social.
Como foi referido na altura da divulgação do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, o diploma foi considerado, evidentemente, como “muito positivo” pela Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo.
Nuno Crato, afirmou que “o Estado não se restringe a apoiar turmas, como existe neste momento com os contratos de associação, mas também apoia alunos, o que abre um caminho mais directo a uma liberdade de escolha e a uma concorrência entre escolas e entre sistemas” com base em cinco modalidades de contrato com os estabelecimentos privados: contratos de associação, patrocínio, cooperação, desenvolvimento de apoio às famílias e contratos simples de apoio às famílias.
Estas duas últimas modalidades têm por objectivo “apoiar a frequência de escolas de ensino particular e cooperativo por parte de todos os alunos do ensino básico e do ensino secundário, não abrangidos por outros contratos”, e terão como instrumento o cheque ensino atribuído às famílias que, sob o princípio interessante e a considerar da liberdade de escolha, matriculem os seus filhos em estabelecimentos privados.
Deixando de lado as outras modalidades, designadamente no que respeita a custos para o Estado, as tais contas que nunca dão certas, os números dizem o que os interesses ditam, embora com alguma segurança se possa afirmar que no ensino público que o custo é menor, sobretudo após os cortes brutais de investimento e de recursos humanos, funcionários e professores, e a questão dos contratos de associação que apesar de assentes num princípio correcto, têm servido frequentemente como formas de financiamento injustificado e encapotado do ensino privado, vejamos, de novo a questão do cheque-ensino, também conhecido como cheque-educação.
Quero antes de mais sublinhar de novo que a existência de um subsistema educativo de ensino privado é absolutamente necessário para, por um lado permitir alguma liberdade de escolha, ainda que condicionada, por parte das famílias e, por outro lado, como forma de pressão sobre a qualidade do ensino público. Também já tenho referido que a chamada liberdade de educação, a escolha livre por parte dos pais dos estabelecimentos, públicos ou privados, em que querem os seus filhos educados, no modelo actual do nosso sistema educativo é, do meu ponto de vista, um enorme equívoco.
No que respeita às escolas públicas, conheço muitas situações de grande dificuldade ou mesmo impossibilidade de matrícula de uma criança em diferentes escolas da mesma zona, situação que as mudanças actuais, concentração de alunos em agrupamentos e mega-agrupamentos, estão a agravar e que muitas famílias sentem.
Por outro lado, no que respeita ao cheque-ensino e à liberdade de escolha dos pais, as experiências de vários países, sempre referidas, assentam genericamente num princípio que quando se fala entre nós desta hipótese é sempre esquecido e que também não consta dos princípios hoje enunciados por Nuno Crato, isto é, a obrigatoriedade (a questão central) de aceitar qualquer criança. A proposta agora conhecida creio que também não contempla, evidentemente, esta obrigatoriedade, talvez a proposta já não fosse tão bem acolhida pela generalidade dos estabelecimentos de ensino. Acresce que os estudos sobre os efeitos deste tipo de modalidades não são conclusivos, longe disso, como há meses um trabalho no Público sublinhava.
Na verdade, como todos sabemos, sem um carácter de obrigatoriedade muitas instituições de ensino privado não receberão nunca alguns alunos, independentemente de poderem ser financiados de formas diferenciadas.
Não é uma questão económica, é uma questão de defender a instituição de situações de risco que lhe comprometam a imagem de excelência ou a posição nos rankings, sejam os dos resultados escolares sejam os do "capital social" que detêm. A cultura mais generalizada entende os estabelecimentos de ensino privado como exclusivos e muitos deles são profundamente selectivos na população que acolhem, aliás muitos pais "compram", por assim dizer, essa exclusividade.
Por outro lado e curiosamente, aos estabelecimentos de ensino privado é concedido um nível de autonomia pedagógica e curricular superior à escola pública que não pode ser apenas justificado por serem privados, pois a autonomia é uma ferramenta de desenvolvimento da qualidade, também na escola pública.
Insisto de há muito que a melhor forma de proteger a liberdade de educação é uma fortíssima cultura de qualidade, autonomia e exigência na escola pública e uma acção social escolar eficaz e oportuna. Assim teremos mais facilmente boas escolas, públicas ou privadas.
No entanto, cada vez é mais claro que este não é o entendimento de quem actualmente gere os destinos da educação em Portugal. Questões de agenda, evidentemente.

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