segunda-feira, 20 de julho de 2020

QUANDO A GENTE GOSTA, É CLARO QUE A GENTE CUIDA


A Professora Isa Gomes, do 1.º ciclo e uma das docentes que participou na iniciativa “Estudo em Casa”, afirmou numa entrevista ao Expresso e em resposta à habitual questão “que anda a ler?” que “Leituras? Não sou muito de leituras. Não sou muito de ler livros, mas sempre adorei tê-los”.
Como seria de esperar, as águas agitaram-se com a ingénua confissão da Professora e percebe-se a reacção. Como se sabe vivemos num país com hábitos de leitura bastante robustos em todas as franjas etárias. Nos últimos meses não acontece nenhuma zoomificada aparição televisiva que não seja emoldurada por visíveis e preenchidas estantes carregadas de livros. Os índices de leitura real e digital da imprensa chamada de referência são altíssimos. As tiragens no mercado livreiro das boas obras da actual literatura em português atingem números extraordinários. As bibliotecas de diferente natureza são frequentadas regularmente por adultos e crianças.
Neste contexto, o assumir dos seus comportamentos de leitora representa, por assim dizer, uma espécie de saída do armário que, do meu ponto de vista, deve sublinhar-se.
Um pouco mais a sério e sobre as questões da leitura e da construção de hábitos de leitura algumas notas em linha com o que aqui já tenho afirmado.
Segundo os dados do PISA 2018, 22% dos alunos de 15 anos entende que “ler é uma perda de tempo” e 31% afirma que só lê quando é obrigado.
Nunca é demais sublinhar a importância dos livros e dos hábitos de leitura na vida das crianças. São ferramentas cruciais de construção pessoal e cívica, de construção e acesso ao conhecimento, informação e à cultura pelo que repesco umas notas.
São múltiplos os estudos que sublinham essa importância, no trajecto escolar e no trajecto pessoal, como também muitos trabalhos mostram que os hábitos de leitura são pouco consistentes entre as crianças, adolescentes e jovens como, sem surpresa, também o são entre a população em geral. Também se sabe que mesmo a leitura de obras integradas no trabalho escolar é substituída pelo recurso a resumos e fichas que se encontram facilmente.
Sabemos ainda o quanto é positivo que os pais ou outros “mais crescidos” se envolvam com as crianças, mesmo em idade de jardim-de-infância, em práticas de leitura e de actividades com os livros para, por exemplo, contar histórias a partir das imagens. Lembro-me de ouvir o Mestre João dos Santos afirmar que as crianças aprendem a ler desde que abrem os olhos.
É verdade que os estilos de vida actuais ou a quantidade de tempo que muitas crianças passam nas instituições educativas podem minimizar a disponibilidade familiar para este tipo de actividades depois de dias muito compridos e cansativos para todos.
Também sei que os livros e materiais desta natureza têm uma concorrência fortíssima com outro tipo de materiais, jogos ou consolas por exemplo, e que nem sempre é fácil levar as crianças a outras opções, designadamente aos livros.
Apesar de tudo isto também sabemos todos que é possível fazer diferente, mesmo que pouco diferente e com mudanças lentas.
Como várias vezes tenho afirmado e julgo consensual, a questão central, embora importante, não assenta nos livros, bibliotecas (escolares ou de outra natureza) ou na presença crescente e atractiva dos "tablets", a questão central é o leitor, ou seja, o essencial é criar leitores que, quando o forem, procurarão o que ler, livros por exemplo, espaços ou recursos, biblioteca, casa ou escola e suportes diferente, papel ou digital.
Aliás e no que se refere suporte digital, o PISA 2018 também mostra que tem aumentado o tempo médio passado pelos alunos ligados à internet, média de 2.8 horas diárias durante a semana e 3.5horas ao fim-de-semana. Estes indicadores sugerem um caminho a explorar.
Creio que também estaremos de acordo que um leitor se constrói desde o início do processo educativo. Desde logo assume especial importância o ambiente de literacia familiar e o envolvimento das famílias neste tipo de situações, através de actividades que desde a educação pré-escolar e 1º ciclo deveriam ser estimuladas, por vezes são, e para as quais poderiam ser disponibilizadas aos pais algumas orientações.
Nos primeiros anos de escolaridade é fundamental uma relação estreita com a leitura, não só com os aspectos técnicos, por assim dizer, da aprendizagem da leitura e da escrita da língua portuguesa, mas um contacto estreito e regular com a actividade de leitura, seja do que for considerando as motivações e culturas diferenciadas apresentadas pelos alunos.
Só se aprende a ler lendo, só se aprende a escrever, escrevendo, etc.
Voltando à entrevista da Professora Isa a minha dúvida é como se torna compatível o entendimento de que “não dou aulas, ajudo os miúdos a quererem saber mais” com “Não sou leitora, nunca fui muito de ler livros”. Não terá uma tarefa fácil e, provavelmente, os alunos também não.
Como diz Caetano Veloso, “Quando a gente gosta, é claro que a gente cuida”.

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