Retomo uma questão que frequentemente aqui abordo, a violência doméstica, mas hoje numa perspectiva que apesar de alguns avanços continua a ter contornos inquietantes, a situação das crianças e adolescentes envolvidas em contextos de violência doméstica.
De acordo com o relatório anual de
2021 da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e
Jovens, as situações que envolveram violência doméstica estavam entre as que
maior subida tiveram relativamente a 2020.
No Público de hoje trata-se a dramática
situação ocorrida em 2020 de uma criança de nove anos que experienciou diversos
episódios de violência doméstica que culminaram com o assassinato da mãe e o
suicídio do pai, tendo a criança assistido a esta tragédia.
O relatório desta situação foi
elaborado pela Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica
que sublinha o facto da criança não ter sido considerada vítima de violência
doméstica e que a Comissão de Protecção de Crianças Jovens terá desenvolvido uma
intervenção “claramente desadequada” pois não “conseguiu identificar e
caracterizar a situação grave de perigo em que esta criança se encontrava, não
percepcionou a agudização do conflito familiar em que estava envolvida, não a
tratou realmente como um autónomo sujeito de direitos e não se mostrou
habilitada a definir uma linha de rumo capaz de garantir a sua protecção e
promoção do desenvolvimento”. Uma avaliação no mesmo sentido é dirigida à
equipa de saúde familiar que conhecia também a situação.
A imprensa de hoje refere um
trabalho de uma equipa do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade
Lusófona que envolveu 1205 crianças filhas de 1010 mulheres que nos anos de 2014,
2015 e 1016 apresentaram queixa por violência doméstica.
Em termos sintéticos, a taxa de
retenção no seu trajecto escolar é cinco vezes a superior à restante população
escolar, revelam mais perturbação da sua saúde mental e mobilizam mais
comportamentos ilícitos em contexto escolar, maiores níveis de consumo de
álcool ou drogas. Trata-se de facto, de um quadro preocupante e indicador do
caminho que importa percorrer.
Em Setembro de 2021 foi
formalmente anunciada a constituição de 31 equipas para apoio a crianças e
jovens vítimas de violência doméstica. Estas equipas integram as Respostas de
Apoio Psicológico para crianças e jovens atendidos ou acolhidos na Rede
Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.
Importa ainda registar que em
Julho de 2021 foi finalmente aprovado o estatuto de vítima para as crianças e
jovens em contexto de violência doméstica algo reclamado de há muito pelo
Instituto de Apoio à Criança e pela a Ordem dos Advogados.
Para além de sublinhar os danos
potenciais que esta exposição pode provocar nas crianças ou adolescentes, como o
estudo agora divulgado mostra de forma bem elucidativa, gostava de chamar a
atenção para um outro potencial efeito nas crianças que assistem a episódios,
por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que
são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das
queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite
pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios e nas potenciais
consequências. Nesse sentido, operacionalização das equipas de apoio foi uma
boa notícia e desejo que o trabalho esteja em desenvolvimento.
Numa avaliação por defeito aos
casos participados de violência doméstica, estima-se que cerca de um terço serão
testemunhados por crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas situações
não reportadas, pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes também
vítimas, serão em número bem mais elevado.
Este quadro lembra o velho adágio
"Filho és, pai serás", ou seja, num processo de modelagem social
muitas crianças tenderão a replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os
comportamentos a que assistiram e que, tal como podem produzir efeitos
traumáticos, poderão adquirir aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de
normalidade.
Não é certamente por acaso que
estudos recentes em Portugal evidenciaram números elevadíssimos de violência em
casais de jovens namorados universitários, uma população já com níveis de
qualificação significativos.
Neste contexto e com o objectivo
de contrariar uma espécie de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem
à violência doméstica, replicam a violência, a sociedade é violenta, quando
crescem são violentos em casa, e assim sucessivamente, importa que os processos
educativos e de qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e o quadro
de valores.
Não é nada de novo, a afirmação
desta necessidade.
A questão é que a intervenção
junto das famílias e a tentativa de contrariar dinâmicas disfuncionais,
violência doméstica por exemplo, não dispõe dos meios e recursos suficientes e
os riscos para crianças e jovens são significativos.
Como afirma, Benedict Wells em “O
fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se
sabe quando nos vai atingir”.
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