Na imprensa de hoje lê-se que o Conselho Económico e Social irá desencadear um estudo sobre a população que aposta na popular “raspadinha”. O trabalho envolve a colaboração de Pedro Morgado e Luís Aguiar-Conraria da Universidade do Minho e quatro outras entidades.
A raspadinha é um dos mais populares jogos sociais da “oferta”
da Santa Casa da Misericórdia e de estudos anteriores sabe-se que perto de 80% dos
jogadores pertence às classes mais desfavorecidas, D e E, 61% jogam regular ou
frequentemente e 37.5% dos apostadores estão acima dos 55 anos.
Antes de mais uma nota prévia já aqui sublinhada. Neste cenário parece completamente despropositado o lançamento de uma nova “raspadinha do Património Cultural” cuja receita se destina a financiar a valorização e recuperação do património cultural. Como? O reforço do financiamento da valorização e recuperação do património é suportado pelas classes sociais mais desfavorecidas que, também por isso, são as mais susceptíveis de ser atraídas pela miragem de um ganho imediato e, aparentemente, de baixo investimento, mas na verdade com um enorme risco de adição. Aliás a percepção e estudo deste risco é um dos objectivos da investigação agora anunciada.
É de recordar um trabalho desenvolvido por Pedro Morgado (um
dos responsáveis do trabalho a desenvolver) e Daniela Vilaverde da Escola de
Medicina da Universidade do Minho e divulgado em 2020 na The Lancet Psychiatry
que mostra como a relação de muitos apostadores portugueses com a vulgar
“Raspadinha” tem vindo configurar um comportamento aditivo, indutor de
sofrimento e mal-estar social e familiar. Dados de 2018 mostram que os gastos
nestas apostas foram de 1594 milhões de euros, 160€ por ano em média por
apostador o que é superior ao que se verifica em muitos países, 14€ por em Espanha,
por exemplo.
A verdade é que para além do caso particular da Raspadinha
tem aumentado de forma geral o investimento dos portugueses nos “jogos sociais”
da Santa Casa e nas apostas online. De facto, o Totobola e depois o
Euromilhões, o Totoloto, posteriormente a Raspadinha, fortemente apelativa pela
possibilidade de retorno imediato e grande acessibilidade, e mais recentemente
as apostas online estabeleceram-se firmemente na vida de muitos de nós e
criaram mesmo uma imagem criadora de futuro que nos move. Provavelmente e para
muitas pessoas, será a única imagem criadora de futuro.
Importa reconhecer que as imagens criadoras de futuro são
imprescindíveis, tanto mais quando atravessamos tempos duros em que a esperança
também tem sido revista em baixa e dificilmente vislumbramos a recuperação.
Creio que esta perspectiva é parte importante desta equação
e apesar de sabermos que a decisão de apostar é sempre de natureza individual,
o contexto em que muita gente vive, os estilos de vida e quadro de valores são
variáveis que também devem ser consideradas.
Por outro lado e em termos culturais, também encontramos
algumas pistas para entendimento. Julgo poder afirmar-se que em muitos lares
portugueses e em muitas conversas e talvez mais do que nunca, uma das frases
mais ouvidas é “nunca mais me sai o Euromilhões, (ou a raspadinha) para deixar
de trabalhar”. Muito provavelmente, cada um de nós já ouviu, pensou ou disse
esta expressão alguma vez ou vezes e que não será usada apenas pelos cidadãos
com maiores dificuldades.
Acho curiosa a sua utilização. Entendo, naturalmente, a
ideia subjacente à primeira parte. Um prémio de valor substantivo
representaria, seguramente, a hipótese de acesso a um patamar superior de
bem-estar económico, desejado, naturalmente, por toda a gente. O que de facto
me parece mais interessante é o complemento “para deixar de trabalhar”. É certo
que nem todas as expressões devem ser entendidas no seu valor “facial”, mas é
também verdade que a recorrente afirmação deste desejo acaba por ilustrar a
relação que muitos de nós estabelecemos com o lado profissional da nossa vida,
isto é, “quero livrar-me dele o mais depressa possível”. Não será grave, mas é
um indicador que possibilita várias leituras.
Neste contexto e cultura sabem qual é a minha inquietação para além
dos riscos associados a comportamentos aditivos? É se os miúdos, considerando a
agitação que vai pelo seu mundo “laboral” e os discursos dos adultos, desatam a
pedir, se puderem, um aumento de mesada que lhes permita apostar no Euromilhões
para … deixar de ir à escola.
Já estivemos mais longe. Talvez, também por questões desta
natureza, a abordagem deste tipo de questões nos contextos educativos num
quadro desenvolvimento e cidadania faça sentido sem que daqui resulte,
evidentemente, mais uma disciplina ou mais um projecto.
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