quarta-feira, 6 de julho de 2022

DA SAÚDE MENTAL

 Na imprensa dos últimos dias surgem referências a uma entrevista a Miguel Xavier, coordenador das políticas de saúde mental, à Lusa que merece leitura. Embora sem dados exactos Miguel Xavier estima que o orçamento para saúde mental no SNS rondará os 5% dando como referência os 13 ou 14% que Reino Unido e países nórdicos apresentam.

Sabemos que de há alguns anos para cá e em particular no período pandemia e pós-pandemia diferentes estudos têm mostrado um aumento de incidência de perturbações nesta área envolvendo todas as idades.

Na mesma entrevista Miguel Xavier afirma que “Os problemas de Saúde Mental previnem-se antes de aparecerem. Através de bons programas de parentalidade, bons programas sociais, como os programas de apoio às populações vulneráveis”, o que envolve a necessidade de políticas integradas, mas também sublinha a importância dos recursos adequados.

Neste sentido até ao final de 2022 serão criadas dez equipas comunitárias de saúde mental que se juntam a dez já em funcionamento sendo também instaladas três unidades de transição para inimputáveis. Espera-se colocar em funcionamento mais cinco equipas em 2023, dez em 2024 e cinco em 2025.

Como aqui já tenho abordado, este movimento de desinstitucionalização ainda que de forma lenta a faz parte de há muito das recomendações, em 2019 o Conselho para os Direitos Humanos da ONU a necessidade de uma fortíssima e urgente alteração no modelo de resposta em saúde mental, recorrer menos à institucionalização e à medicação e mais a uma abordagem de natureza social com particular atenção a fenómenos como pobreza desigualdade e exclusão que alimentam discriminação.

No que a nós respeita, segundo o Relatório do programa da União Europeia "Joint Action on Mental Health and Well-being" divulgado em 2015, Portugal estava muito longe do desejável no que respeita à prestação de cuidados no domicílio e serviços na comunidade a pessoas com doença mental. Estima-se que menos de 20% dos doentes tenha acesso a este tipo de cuidados.

A ausência de respostas adequadas leva a um recurso excessivo à prescrição de psicofármacos mesmo em situações não justificadas como tem sido recorrentemente demonstrado.

Também de 2015, o estudo Trajectórias pelos Cuidados de Saúde Mental em Portugal, promovido pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental mostrava que o encerramento, positivo entenda-se, dos hospitais psiquiátricos não foi acompanhado da criação de serviços na comunidade pelo que a desinstitucionalização falhou e “agravou os problemas de muitos doentes”. Afirmava-se no Relatório que a Rede de Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental não se concretizou e escasseiam os recursos.

Parece claramente mais ajustada a aposta em equipas comunitárias e apenas um número reduzido de camas para situações mais críticas de adultos ou crianças para as quais faltam de facto, camas levando ao seu inaceitável internamento em serviços para adultos.

Na verdade, e como se sublinha no Relatório, as orientações actuais e matéria de saúde mental, quer do ponto de vista científico, quer do ponto de vista dos custos, determinam que a qualidade e eficácia deste tipo de apoios, deve, tanto quanto possível, assentar em estratégias de proximidade, aproximando, assim, o serviço clínico da comunidade e da vida quotidiana das pessoas.

Os modelos defendidos pela comunidade científica actual, a defesa dos direitos humanos e da qualidade de vida, tornaram insustentável a manutenção das grandes instituições psiquiátricas que encerravam muitas câmaras de horrores e casos de isolamento e privação. Ainda me lembro do incómodo causado por visitas realizadas no início da minha formação ao Hospital Júlio de Matos. Este universo é bem retratado no mítico “Jaime” de António Reis e Margarida Cordeiro.

No entanto, este movimento de retirada das pessoas com doença mental das grandes instituições precisa de um suporte adequado e suficiente de unidades locais que providenciem apoio terapêutico, social e funcional tão perto quanto possível das comunidades de pertença dos doentes e com o mínimo recurso ao internamento que agora, quero acreditar, poderão mesmo realidade.

A sua não existência, o quadro actual, cria sérios obstáculos aos processos de reabilitação e inserção comunitária acentuando ou mantendo os fenómenos de guetização das pessoas com doença mental e respectivas famílias.

Não estranho, os doentes mentais são os mais desprotegidos dos doentes, pior, só os doentes mentais idosos. Os custos familiares e sociais desta guetização são enormes e as consequências são também um indicador de desenvolvimento das comunidades.

Será seta que a coisa muda de forma significativa?

Deixem lá ver, como falamos no Alentejo.

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