Passou mais um ano e a agenda das
consciências determina que hoje se cumpra o Dia Internacional das Pessoas com
Deficiência. Como sempre, umas notas que de forma substantiva não se
desactualizam, lamentavelmente.
Como tem sido hábito, poderão surgir algumas referências na comunicação social, ouvir-se-á alguma da retórica política
aplicável à matéria em apreço com referência a iniciativas ou intenções,
eventualmente teremos até alguns testemunhos, positivos e negativos, de pessoas
com deficiência ou de entidades que "operam" nesta área. Aliás, a
inclusão ou a promoção de um qualquer entendimento de inclusão constitui-se
como um nicho de mercado promissor em diversas vertentes.
Apesar do contexto de pandemia em
que vivemos poderão ter lugar alguns eventos realizados por instituições e
movimentos que operam nesta área, referir-se-ão alguns avanços de natureza
tecnológica, como se sabe as tecnologias mudam mais depressa que as pessoas e
amanhã o mundo volta-se para outra questão que a agenda das consciências
determine. Nos dias que correm será ainda mais rápido.
Em primeiro lugar deve dizer-se
que, como acontece em outras áreas, a legislação portuguesa é globalmente
positiva, embora a sua operacionalização mereça quase sempre um estudo de caso.
Na sua definição é promotora dos direitos das pessoas, mas a sua falta de
eficácia e operacionalização é bem evidenciada na tremenda dificuldade que
milhares de pessoas experimentam no dia-a-dia.
Como exemplo, é notória a falha
na fiscalização e cumprimento das disposições legais relativas às questões das
acessibilidades e barreiras nos edifícios, mobiliário urbano e acessibilidade
em geral. As normas de construção não são respeitadas, mantendo-se em edifícios
novos a ausência de rampas ou a sua existência com desníveis superiores ao
estabelecido, constituindo, assim, um obstáculo e um risco.
O resultado é a existência de
muitos serviços públicos e outro tipo de equipamentos de prestação de serviços
com barreiras arquitectónicas intransponíveis, a que os cidadãos com
deficiência só podem aceder com ajuda de terceiros e, mesmo assim, com
dificuldade.
Os transportes públicos de
diferente natureza também colocam enormes problemas na acessibilidade por parte
de pessoas com mobilidade reduzida.
Para além deste quadro,
suficientemente complicado, ainda há que contar com a prestimosa colaboração de
muitos de nós que estacionamos o belo carrinho em cima dos passeios,
complicando ou proibindo, naturalmente, a circulação de cadeiras de rodas. Os
passeios, nem sempre com as medidas determinadas por lei, são, por vezes ainda ocupados
com esplanadas que, claro, são só mais uma dificuldade para muita gente.
A vida de muitas pessoas com
deficiência é uma constante e infindável prova de obstáculos, muitas vezes
intransponíveis, que ampliam de forma inaceitável a limitação na mobilidade que
a sua condição, só por si, pode implicar. No entanto, muitos dos obstáculos não
têm a ver com barreiras físicas, remetem para a falta de senso, incompetência
ou negligência com que gente responsável(?) lida com estas questões.
Na verdade, boa parte dessas
dificuldades decorre do que as comunidades e as suas lideranças, políticas por
exemplo, entendem ser os direitos, o bem comum e o bem-estar das pessoas, de
todas as pessoas.
Também para as crianças com
necessidades especiais e respectivas famílias a vida é muito complicada face à
qualidade e acessibilidade aos apoios educativos e especializados necessários
apesar do empenho e profissionalismo da maioria dos profissionais que trabalham
nestas áreas. Os sobressaltos decorrentes de alterações legislativas são
consideráveis apesar da necessidade de alteração.
Como é evidente, existem muitas
outras áreas de dificuldades colocadas às pessoas com deficiência,
designadamente apoios sociais, qualificação profissional e emprego, em que a
vulnerabilidade e o risco de exclusão são elevados traduzido em taxas de
desemprego entre pessoas com deficiência muitíssimo superiores à verificada com
a população sem deficiência.
Uma referência ainda ao que deve
ser um princípio não negociável, a inclusão em todos os domínios da vida das
comunidades.
É verdade que a questão da
inclusão, em particular da inclusão em educação, é presença regular nos
discursos actuais. É objecto de todas as apreciações, ilumina todas as
perspectivas e acomoda todas as práticas, incluindo a “entregação” que
manifestamente não promove inclusão, antes pelo contrário. Apesar do bom
trabalho que existe e deve ser sublinhado, por vezes, demasiadas vezes,
confunde-se colocação educativa, crianças com necessidades especiais na sala de
aula regular, com inclusão. Aliás, até a exclusão de muitos alunos da sala de
aula e das actividades comuns é frequentemente realizada … em nome da inclusão.
E não acontece nada. A situação dura e já longa que atravessamos veio agudizar
a situação.
O termo está tão desgastado que
já nem sabemos bem o que significa. Não esqueço o que positivo se faz, mas
conheço tantas práticas e tantos discursos que alimentam exclusão e que são
desenvolvidas e enunciados ... em nome da inclusão. Tantas vezes me lembro do
Mestre Almada Negreiros que na "Cena do Ódio" falava da "Pátria
onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões".
A inclusão assenta em cinco
dimensões fundamentais, Ser (pessoa com direitos), Estar (na comunidade a que
se pertence da mesma forma que estão todas as outras pessoas), Participar
(envolver-se activamente da forma possível nas actividades comuns), Aprender
(tendo sempre por referência os currículos gerais) e Pertencer (sentir-se e ser
reconhecido como membro da comunidade). A estas cinco dimensões acrescem dois
princípios inalienáveis, autodeterminação e autonomia e independência.
As pessoas com deficiência não
precisam de tolerância, não precisam de privilégios, não precisam de caridade,
precisam só de ver os seus direitos considerados. Os direitos não são de
geometria variável cumprindo-se apenas quando é possível.
Este é o caderno de encargos que
nos convoca a todos, todos os anos, todos os dias.