A agenda das consciências determina em muitos países, incluindo Portugal, que se cumpra para hoje o Dia da Criança. A liturgia variada associada à efeméride vai acontecer como de costume. As visitas, os passeios, as festas, etc., a oferta de espectáculos de todas as naturezas mostrará uma comunidade preocupada em fazer as crianças felizes. Muitas estão e parecem divertir-se, ainda bem. Algumas outras terão de passar por um dia cansativo.
A imprensa fará eco dos múltiplos
eventos dirigidos às crianças, ouvirá por uma vez as crianças e produzir-se-ão,
certamente, muitos discursos dirigidos aos miúdos e ao seu mundo.
Claro, neste dia, ouvi-las sobre
o que pensam do mundo, do seu mundo e da vida das pessoas, é "giro".
É verdade que passa depressa, amanhã já não as ouvimos sobre o que as inquieta
e lá voltam os miúdos, muitos, a gritar e a agitar-se para se fazerem ouvir.
Tudo bem, pois que seja, este
tipo de efemérides serve também para isso mesmo, a encenação, sempre
bem-intencionada da preocupação que descansa as consciências.
É verdade, felizmente, que muitas
crianças vivem felizes, por assim dizer, adoptadas pelos pais, acolhidas pela
escola e pela comunidade, são o futuro a crescer. É bom que assim seja.
No entanto e nestas alturas,
lembro-me com frequência do Mestre Almada que na Cena do Ódio falava sobre,
"a Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de
Camões". De facto, apesar da vaga de discursos e iniciativas em nome das
crianças, muitos passam mal, muito mal, todos sabemos. Não cabem no Dia da
Criança.
Não cabem os que diariamente são
vítimas de crimes e maus-tratos.
Não cabem muitos dos que vivem
numa instituição esperando por uma família que nunca virá.
Não cabem os que, por várias
razões, são alvo de discriminação e a quem são negados direitos básicos.
Não cabem os que vivem em
famílias que os não desejam e mal os suportam.
Não cabem os que a pobreza ameaça
as suas necessidades básicas.
Não cabem os que vivem em
famílias que sobrevivem envergonhadamente na pobreza que nos deveria
envergonhar a nós.
Não cabem os que a escola não
consegue ajudar a construir um futuro a que valha a pena aceder e sofrem
políticas educativas nem sempre suficientemente amigáveis para os todos os
miúdos.
Não cabem os que sofrem de
solidão e isolamento sem que se perceba como não estão bem.
Na verdade, estes miúdos de que
acabei de falar, por vezes, parece que não existem, são transparentes, nem os
vemos. Por isso, comemora-se o Dia da Criança com a convicção ingénua ou
voluntarista de que, como dizia Pessoa, "o melhor do mundo são as
crianças" e que elas são felizes, todas.
O que, obviamente, não
corresponde à realidade, mas os poetas ... são uns fingidores.
E sabem o que é mais inquietante?
Este texto não prescreve.
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