terça-feira, 23 de maio de 2023

DO RISCO DA "RITALINIZAÇÃO"

 Lê-se no JN que, de acordo com informação da Autoridade Nacional do Medicamento,  em 2022 forma vendidas 288217 embalagens o metilfenidato, um fármaco, comercializado como Ritalina, Concerta ou Rubifen, destinado ao tratamento da designada perturbação de hiperactividade e défice de atenção (PHDA). Apesar de, felizmente, o consumo ter vindo a diminuir desde 2014, voltou a subir e atingiu um máximo desde 2003, ano em que começou a ser comparticipado.

Estes fármacos são muitas vezes referidos como “o comprimido da concentração” e usados em quadros de alegados problemas de comportamento, hiperactividade, défice de atenção ou instabilidade. No entanto, é também usada como “auxílio” aos resultados escolares sendo ainda conhecida pelo “comprimido da inteligência”.

Retomo algumas notas pois o consumo destes fármacos envolve muitos milhares de crianças e adolescentes.

Esta matéria tem sido objecto de intervenções recorrentes e dada a sua relevância importa continuarmos atentos. Já em 2015 no seu Relatório Anual, “Estado da Educação 2015”, o Conselho Nacional de Educação relevava o preocupante consumo desta medicação por parte de crianças e adolescentes.

Também em diferentes intervenções públicas, especialistas como Mário Cordeiro, Gomes Pedro ou Ana Vasconcelos têm revelado sempre uma atitude cautelosa e prudente face aos riscos de hipermedicação ou sobrediagnóstico e alertado para as consequências destas práticas que, aliás, não se verificam em todos os países. A pressão enorme que envolve pais, professores, técnicos e clínicos face ao comportamento de algumas crianças ajuda a perceber a tentação da medicação. Conheço de forma directa algumas situações verdadeiramente preocupantes.

Quem lida com o universo de crianças e jovens que existe um conjunto de problemas que pode afectar crianças e adolescentes, esses problemas devem, se necessário é claro, ser abordados com medicação evidentemente, mas, felizmente, não são tantas as situações como por vezes parece. Inquieta-me muito a ligeireza com que possam ser produzidos "diagnósticos" e rótulos que se colam aos miúdos, dos quais dificilmente se libertarão e que pela banalização da sua utilização se produza uma perigosa indiferença sobre o que se observa. Aliás, é curioso, insisto, perceber o que se passa noutras realidades.

É preocupante que muitos miúdos surjam medicados, chamo-lhes "ritalinizados", sem que os respectivos diagnósticos conhecidos pareçam suportar seguramente o recurso à medicação. A sobreutilização ou uso sem justificação do metilfenidato e de outros fármacos tem riscos, uns já referenciados, outros em investigação.

Esta matéria, avaliar e explicar o que se passa com crianças e adolescentes, exige um elevadíssimo padrão ético e deontológico para além da óbvia competência técnica e científica. Não podemos facilitar embora compreenda e sinta que a pressão é muita, quer nos contextos familiares, quer nos contextos escolares e que os recursos, apoios e orientações são muitas vezes insuficientes.

Creio que, com alguma frequência, alguns comportamentos e dificuldades escolares dos miúdos, sobretudo nos mais novos que por vezes, sublinho por vezes, são de uma forma aligeirada remetidos para problemas como hiperactividade ou défice de atenção, podem estar associados aos seus estilos de vida ou aos modelos educativos, universo onde se incluem os hábitos e padrões de sono como, aliás, alguns estudos e a experiência de muitos profissionais parecem sugerir.

Recordo um estudo, já de 2016, realizado pela Universidade do Minho que sugere que cerca de 72% de mais de quinhentas crianças e adolescentes inquiridos, dos 9 aos 17, dormem menos do que seria recomendável para as suas idades. Aliás, estudos liderados pela Professora Teresa Paiva, uma conhecida especialista nesta área, vão no mesmo sentido.

E, de uma forma geral, para além das questões ligadas aos estilos de vida e às rotinas, uma das causas apontadas é a presença de aparelhos como computadores, tablets ou smartphones no quarto. O período de confinamento e sobrevalorização da presença dos dispositivos digitais no dia-a-dia acentuou algumas preocupações.

Assim, acontece que durante o período que seria dedicado ao sono, sem regulação familiar muitas crianças e adolescentes continuam diante de um ecrã. Como é óbvio, este comportamento não pode deixar de implicar consequências nos comportamentos durante o dia, sonolência e distracção, ansiedade e, naturalmente, o risco de falta de rendimento escolar num quadro geral de pior qualidade de vida.

Também sabemos que este período de pós-pandemia tem evidenciado um acréscimo de situações de mal-estar de crianças e jovens pelo que aumentarão os pedidos de ajuda. No entanto, a prudência é um bem de primeira necessidade.

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