Ontem assinalou-se o Dia Internacional do Brincar e, mais uma vez, umas notas sobre esta questão central no desenvolvimento e bem-estar das crianças.
Durante os últimos anos, provavelmente
associada às mudanças nos estilos de vida e quadro de valores, foi-se
instalando a ideia de que o brincar é supérfluo, é perda de tempo, o foco deve
ser em trabalhar, em rendimento e resultados, em nome da competitividade e da
produtividade, condição para a realização e felicidade. Felizmente, nos últimos
tempos começam a ouvir-se muitas vozes contrariando este entendimento. Os que
por aqui vão passando reconhecerão a frequência com que aqui refiro esta
questão e esta não será certamente a última.
Progressivamente foi-se retirando
aos miúdos o tempo e o espaço que muitos de nós na sua idade tínhamos e
empregam-nos horas sem fim nas fábricas de pessoas, escolas, chamam-lhes. Aí os
miúdos trabalham a sério, a tempo inteiro, dizem, pois só assim serão grandes a
sério, dizem também.
Às vezes, alguns miúdos ainda
brincam de forma escondida, é que brincar passou a uma actividade quase
clandestina que só pais ou professores “românticos”, “facilitistas”,
“eduqueses” ou “incompetentes” acham importante.
Muitos outros miúdos vão para
umas coisas a que chamam “tempos livres” e que, com frequência, de livres têm
pouco, onde, frequentemente, se confunde brincar com entreter e, outras vezes,
acontece a continuação do trabalho que se faz na fábrica de pessoas, a escola.
Numa história que já aqui contei
ouvi uma mãe que se mostrava muito aborrecida com o Atelier de Tempos Livres em
que o filho, gaiato de uns 10 anos, passa boa parte das férias, porque os
técnicos responsáveis "dão poucas actividades às crianças e depois elas
põem-se a brincar umas com as outras".
Também são encaixados em dezenas
de actividades fantásticas, com nomes fantásticos, que promovem competências
fantásticas e fazem um bem fantástico a tudo e mais alguma coisa.
É inquietante perceber alguma
visão que, de mansinho, se foi instalando também em muitos pais.
O brincar da infância vai-se
encurtando, algum dia os miúdos vão nascer crescidos para já não precisarem de
brincar.
Era bom escutar os miúdos. Se
lhes perguntarem (das diferentes formas de fazer perguntas e ouvir respostas)
vão ficar a saber que brincar é a actividade mais séria que realizam, em que
põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser e a saber.
Em 2018 a Academia Americana de
Pediatria recomendou aos pediatras que na sua prática clínica prescrevam “tempo
para brincar”, um bem de primeira necessidade para o bem-estar dos mais novos
com impacto em diferentes dimensões.
Insistem que não se trata de uma
ideia “frívola” e os actuais estilos de vida de muitas famílias, por diferentes
razões, tornam ainda mais importante que se reafirme a importância de brincar.
No caso mais particular, mas
também essencial do brincar na rua sabemos que as questões da segurança e,
sobretudo dos estilos de vida e a mudança verificada nos valores e nos
equipamentos, brinquedos e actividades dos miúdos, o brincar na rua começa a
ser raro.
Embora consciente das questões
como risco, segurança e estilos de vida das famílias, creio que seria possível
alguma oportunidade de “devolver” aos miúdos o circular e brincar na rua,
talvez com a supervisão de velhos que estão sozinhos, as comunidades e as
famílias conseguissem alguns tempos e formas de ter as crianças por algum tempo
fora das paredes de uma casa, escola, centro comercial, automóvel ou ecrã.
Como muitas vezes tenho escrito e
afirmado, o eixo central da acção educativa, escolar ou familiar, é a
autonomia, a capacidade e a competência para “tomar conta de si” como fala
Almada Negreiros. A brincadeira, a rua, a abertura, o espaço, o risco
(controlado obviamente, os desafios, os limites, as experiências, são
ferramentas fortíssimas de desenvolvimento e promoção dessa autonomia.
Curiosamente, se olharmos às
nossas condições climatéricas, Portugal é um dos países com valores mais baixos
no tempo dedicado a actividades de ar livre, situação com implicações menos
positivas na qualidade de vida, nas suas várias dimensões, de miúdos e
crescidos.
Talvez, devagarinho e com os
riscos controlados, valesse a pena trazer os miúdos para a rua, mesmo que por
pouco tempo e não todos os dias.
É, pois, importante que todos os
que lidam com crianças, em particular, os que têm “peso” em matéria de
orientação, pediatras, professores, psicólogos, etc. assumam o brincar como uma das “guide lines”
para a sua intervenção.
Os mais novos vão gostar e
faz-lhes bem.
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