quinta-feira, 31 de março de 2022

MUNDO DO AVESSO

 As coisas nem sempre são o que parecem, o que pensamos que são ou mesmo o que gostávamos que fossem.

Na verdade, há pais que fazem mal aos filhos.

Na verdade, há filhos que fazem mal aos pais.

Na verdade, há professores que fazem mal aos alunos.

Na verdade, há alunos que fazem mal aos professores.

Na verdade, há velhos que fazem mal aos novos.

Na verdade, há novos que fazem mal aos velhos.

Na verdade, ...

Na verdade, há pessoas que fazem mal a pessoas.

Na verdade, ... o mundo é um lugar estranho e ... às vezes ... muito feio.

quarta-feira, 30 de março de 2022

DESCENTRALIZAÇÃO, MUNICIPALIZAÇÃO E AUTONOMIA

 No próximo dia 1 de Abril os concelhos do continente recebem um conjunto de competências em matéria de educação. É um processo que ainda está longe de ser consensual pois dos 278 concelhos apenas 116 já aceitaram voluntariamente o reforço de competências em matéria de educação.

Como já aqui escrevi, este processo também me suscita algumas dúvidas. Sempre tenho defendido um processo de descentralização do sistema educativo, mas com um pressuposto, o reforço da autonomia das escolas o que, evidentemente, não é igual a municipalização o modelo que está a ser instalado.

Seria também interessante considerar os resultados de experiências de "municipalização" realizadas noutros países cujos resultados estão longe de ser convincentes. Na Suécia, por exemplo, está a assistir-se justamente a um movimento de "recentralização" considerando os resultados, maus, obtidos com a experiência de municipalização.

Acresce que não é raro no sistema educativo português, a falta de regulação eficiente, apesar de algumas boas práticas. O envolvimento das autarquias nas escolas e agrupamentos, designadamente em matérias como as direcções escolares, os Conselhos Gerais ou a colocação de funcionários e docentes (nas AEC, por exemplo) tem mostrado variadíssimos exemplos de caciquismo, tentativas de controlo político, amiguismo face a interesses locais, etc. O controlo das escolas é uma enorme tentação. Podemos ainda recordar as práticas de muitas autarquias na contratação de pessoal, valorizando as fidelidades ajustadas e a gestão dos interesses do poder.

Assim sendo, teria sido recomendável alguma prudência embora, confesse não acreditar que se trate de imprudência, mas sim de uma visão, de uma agenda.

Ainda nesta matéria e dados os recursos económicos que se anunciam através das verbas comunitárias para além dos dinheiros públicos, e o que tem sido realizado nos Projectos em curso parece clara a intenção política de aumentar o "outsourcing", a intervenção de entidades e estruturas privadas que já existem nas escolas, muitas vezes com resultados pouco positivos, caso de apoios educativos a alunos com necessidades educativas especiais e do recurso a empresas de prestação de serviços, (AEC, por exemplo) ou cantinas escolares.

Um modelo com estas características, estruturas e entidades privadas a intervir em escolas públicas, só é garantidamente bom para as entidades a contratar, não, muito provavelmente, para alunos, professores e escolas. Temo que “municipalização” possa ser um incremento e apoio a alguns nichos de mercado.

Parece-me necessário desfazer um equívoco que se tem promovido, descentralização não significa necessariamente municipalização, importa, isso sim, promover a autonomia o que é bem diferente e mais pertinente. A autonomia das escolas e dos professores é uma variável contributiva para a qualidade da educação. De acordo com o modelo em desenvolvimento a autonomia das escolas e agrupamentos não parece sair reforçada, antes pelo contrário, muitas competências passam para as autarquias por delegação de competências do ME. O imprescindível reforço da autonomia das escolas e agrupamentos não depende da municipalização como muitas vezes se pretende fazer crer.

Mais uma vez, confundir autonomia com descentralização traduzida em municipalização foi criar um equívoco perigoso que, entre outras consequências, pode dar alguma cobertura a alguns negócios da educação.

terça-feira, 29 de março de 2022

DO DESPERDÍCIO

 Talvez associados à constatação dos efeitos devastadores de sucessivas crises têm vindo a emergir discursos no sentido de que estes efeitos poderiam constituir um acelerador   de alterações nos modelos de desenvolvimento e organização das instituições e, naturalmente, nos comportamentos individuais.

No âmbito dessas alterações parece crítico o combate ao desperdício e à ineficácia e promover racionalidade, eficiência e poupança nos gastos.

Agora que se vai iniciar um no ciclo de governo talvez fosse uma oportunidade para reflectir sobre os custos brutais da administração de que todos nós conhecemos excessos e os seus efeitos, ainda que também saibamos reconhecer  competência e eficiência quando as encontramos.

Reconhece-se a existência de uma teia de entidades e organismos inúteis e dispensáveis que apenas existem para alimentar diferentes agendas bem como as clientelas partidárias de todos os partidos que chegaram ao governo. Sempre que se verificam auditorias e inspecções a diferentes serviços e organismos da administração local ou central, registam-se com preocupante frequência níveis elevados de ineficácia e desperdício no funcionamento e gestão dessas estruturas. Lamentavelmente, como todos sabemos, não é um problema novo nem conjuntural, é velho e estrutural. A grande questão é a irresponsabilidade e a impunidade negligente com que as sucessivas lideranças políticas têm lidado com esta questão. Os interesses partidários, a distribuição de jobs pelos diferentes boys prevalecem em detrimento do bem comum.

No actual quadro de crise pode acontecer, vou ser optimista, que finalmente se verifique um empenho verdadeiro no combate ao desperdício que é um dos mais gigantescos sugadouros de recursos, praticamente um poço sem fundo. Chamo, no entanto, a atenção para diferentes áreas de desperdício. A título de exemplo, considere-se o tempo, um bem de primeira necessidade, que se desperdiça em inutilidades, por má gestão ou organização, que se dedica a discussões estéreis e ruidosas seja em reuniões improdutivas ou em debates inconclusivos por incompetência, demagogia ou intenção.

Considere-se ainda o desperdício de competências e de pessoas que, por falta de oportunidade ou de políticas ajustadas, públicas ou privadas, são completamente subaproveitadas.

Lembro-me também de algo a que costumo chamar de “agitação improdutiva” que envolve muitíssimas situações de pessoas que aos mais diversos níveis e em diferentes circunstâncias se empenham, se esforçam, mas com baixos níveis de qualidade e rentabilidade por má gestão ou organização penalizadora das pessoas e das instituições.

Enfim, são múltiplos os exemplos de desperdício e são ainda mais e mais graves as consequências desta espécie de cultura instalada.

segunda-feira, 28 de março de 2022

COMPETÊNCIAS E RESPONSABILIDADES

 Achei particularmente curiosa a perspectiva de divisão de competências dentro do próximo elenco do ME avançada no Expresso.

Considerando que apenas existirá um secretário de estado e a confirmar-se o cenário divulgado e o universo de problemas críticos conhecidos em matéria de educação, faz-me recordar o velho “quem parte reparte …”.

No entanto, é bom não esquecer que sendo certo que se podem distribuir competências, não podem distribui-se responsabilidades.

A ver vamos.

domingo, 27 de março de 2022

A HISTÓRIA DO DESAJEITADO

 O texto de Eva Delgado-Martins de hoje no Público, “A participação da família na escola dos filhos”, fez-me recordar a história de Desajeitado.

Era uma vez um rapaz chamado Desajeitado, um nome um bocado estranho. Toda a gente o chamava assim.

Na escola, os professores achavam-no mesmo um Desajeitado. Quase nunca realizava as tarefas do modo que lhe era pedido. Quase nunca dava as respostas que eram solicitadas, arranjava sempre umas conversas assim um pouco ao lado, como se costuma dizer. A maioria dos seus colegas também achavam que o Desajeitado não era muito habilidoso considerando-o um desastrado nas brincadeiras pelo que não era uma companhia muito apreciada. A sua estrada, desde que entrara para a escola, tinha sido sempre percorrida desta forma.

Em casa a situação não era, nem nunca tinha sido, muito diferente. Os pais também achavam que o Desajeitado poucas coisas, ou nenhumas, fazia bem feitas. Estavam sempre a criticá-lo pela forma pouco cuidada como fazia o que lhe era pedido. Os pais, para tentarem que o Desajeitado fosse um pouco melhor, comparavam-no muitas vezes à sua irmã Desejada que era um modelo, tudo fazia bem feito, era perfeita, nunca errava. Estranhamente, tal discurso não fazia o Desajeitado sentir-se melhor e funcionar de uma forma que agradasse mais às pessoas.

Na verdade, Desajeitado foi nome que lhe começaram a chamar desde pequeno, o seu nome verdadeiro era Enjeitado.

Como sabem os Enjeitados não têm jeito para quase nada, apenas para se sentir mal o que produz muita falta de jeito, ficam Desajeitados.

sábado, 26 de março de 2022

UMA NOTÍCIA POSITIVA

 Num tempo em que notícias positivas constituem um bem de primeira necessidade foi divulgada pelo ME a abertura de 3259 vagas para integração de professores nos quadros. É verdade que 2730 correspondem a vagas no âmbito da chamada norma-travão e são criados 529 lugares nos quadros de zonas pedagógica e nos grupos de recrutamento mais necessitados.

No entanto, este alargamento não resolverá a necessidade de docentes que, como é sabido, se agravará nos tempos mais próximos. Por outro lado, para além da falta de docentes que ainda se verifica é da mais elementar justiça, muitos dos docentes que irão preencher estas vagas têm décadas de tempo de serviço prestados em itinerância com custos brutais em diferentes dimensões.

Aguarda-se, no entanto, o que irá acontecer nesta matéria, designadamente no que respeita à falta de docentes, formação inicial e em serviço, organização da carreira, recrutamento e avaliação.

Como muitas vezes afirmo, alguns dos problemas dos professores são também problemas nossos.


sexta-feira, 25 de março de 2022

DOS AUMENTOS DE PROPINAS

 Na imprensa sucedem-se referências às manifestações e reivindicações de alunos do ensino superior contra o aumento substancial das propinas do 2º ciclo que confere o grau de mestrado. Já de há muito que as propinas dos mestrados são bem superiores às das licenciaturas e em muitos casos tremendamente caras. É muito cara a frequência do ensino superior em Portugal.

Esta cenário, aumento brutal de propinas nos mestrados, estava, como se costuma dizer, escrito nas estrelas. Em 2011 escrevi aqui:

Desde o início tenho afirmado que o processo de reforma no ensino superior mais conhecido pela "Reforma de Bolonha" radicou mais em questões económicas, o financiamento o ensino superior, que de natureza científica, curricular ou de mobilidade envolvendo estudantes e professores. O encurtamento do chamado grau de licenciatura para três anos e a criação do 2º ciclo, o grau de mestrado, possibilitou que na grande maioria dos cursos passassem a ser as propinas dos alunos a financiar o 2º ciclo com custos elevadíssimos em muitos estabelecimentos de ensino superior.”

O resultado é o que está à vista e não é animador, frequentar o ensino superior em Portugal é muito caro e a formação e qualificação são bens de primeira necessidade. Vejamos alguns dados.

De acordo com Relatório do CNE, "Estado da Educação 2019", a percentagem de alunos que em Portugal acede a bolsas de estudo para o 1º ciclo está no segundo escalão mais baixo da análise, entre 10 e 24,9%. Para comparação, Irlanda, Países Baixos estão no intervalo entre 25% e 49,9% e a Suécia no superior a 75%. Países como Espanha, França, Reino Unido e muitos outros têm percentagens de alunos com apoio superiores a nós e, sem estranheza, também maior nível de qualificação.

Em 2018 foi divulgado um estudo já aqui citado, “O Custo dos Estudantes no Ensino Superior Português” da responsabilidade do Instituto de Educação da U. de Lisboa, relativo ao ano lectivo de 2015/2016 mostrando que cada estudante universitário gastou em média 6445€ em despesas como propinas, material escolar, alojamento ou alimentação. Os alunos de instituições universitárias privadas têm uma despesa perto dos 10000€ e nos politécnicos privados o custo será de 8296€. De facto, sendo a qualificação superior um bem de primeira necessidade para os cidadãos e para o país, é um bem muito caro, demasiado caro para muitas famílias e indivíduos.

Também dados de um trabalho conhecido em 2018 realizado pelo Projecto Eurostudent “Social and Economic Conditions of Student Life in Europe” mostra um extenso quadro das condições de frequência do ensino superior em muitos países da Europa com base em dados de 2016 a 2018.

Da imensidade de dados disponíveis releva que Portugal é o quarto país em que as famílias assumem maior fatia dos gastos com a frequência do ensino superior. Verifica-se ainda uma forte associação entre a frequência do ensino superior e nível de escolarização e estatuto económico das famílias o que, naturalmente, não surpreende, mas dificulta a desejada mobilidade social.

Apesar de um abaixamento do valor as propinas no ensino público, as dificuldades sentidas por muitos estudantes do ensino superior e respectivas famílias, quer no sistema público, quer no sistema privado com valores mais altos de propinas, são, do meu ponto de vista, consideradas frequentemente de forma ligeira ou mesmo desvalorizadas. Tal entendimento parece assentar na ideia de que a formação de nível superior é um luxo, um bem supérfluo pelo que ... quem não tem dinheiro não tem vícios.

Este ano lectivo, o número de candidatos a bolsa foi o maior de sempre. É verdade que subiu o número de estudantes que entrou este ano no ensino superior e se verificou a perda de rendimento de muitas famílias em consequência do impacto económico e social da pandemia, mas é mais um indicador.

Os aumentos de propinas anunciados para o 2º ciclo só vêm dificultar ainda mais o acesso é esse bem imprescindível, qualificação.

quinta-feira, 24 de março de 2022

DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

 É conhecida estrutura do novo Governo e também os titulares dos ministérios constituídos.

No que respeita à educação João Costa será o novo Ministro. Parece-me mais uma questão formal e de assinatura pois, com Tiago Rodrigues, já me parecia que João Costa era na verdade o Ministro da Educação e a figura com mais peso na definição das políticas públicas.

A escolha de João Costa é, pois, e como se tem dito, uma aposta de continuidade. Para além das reacções mais institucionais associadas ao emblema que se usa na lapela, na imprensa têm surgido referências no sentido de que “no ME não haverá surpresas”.

Não sei como interpretar este entendimento, mas como tantas vezes aqui tenho abordado julgo que “continuidade” é pouco e que seriam desejáveis algumas “surpresas” em aspectos que me parecem essenciais no que respeita às políticas públicas de educação.

Algumas notas sem hierarquizar ou esgotar.

O que pode ser feito a curto e médio/longo termo relativamente à falta de docentes que se agravará com a aposentação previsível e a curto prazo de mais uns milhares. Como tornar atractiva e revalorizada a profissão a profissão docente e a carreira profissional sublinhando a matéria relativa à avaliação cujo processo não parece competente, justo e transparente.

Como se processará o investimento em termos de recursos materiais de forma a ultrapassar, de facto, os constrangimentos que a pandemia mostrou e que a anunciada transição digital exige e que foram prometidos.

Parece clara a necessidade de se repensar a burocracia esmagadora sobre professores e escolas.

É necessário continuar a aprofundar a autonomia das escolas e o acesso a recursos no sentido de definir o número de alunos por turma.

Parece necessário que paralelamente a ajustamentos na carreira dos docentes que se avalie a organização dos grupos disciplinares.

Importa que caminhemos num sentido de minimizar o outsourcing de técnicos que intervêm de forma regular nas escolas e agrupamentos dotando-as de recursos humanos adequados e que constituem necessidades permanentes.

O que poderemos esperar em matéria de dispositivos de apoio e de recursos nas escolas para uma resposta adequada à diversidade dos alunos e dos contextos, já não falo de educação inclusiva.

Talvez possamos esperar a existência de dispositivos de dispositivos de regulação que apoiem escolas e agrupamentos, fora do âmbito das competências da inspecção.

Ou ainda …

Como dizemos por aqui no Alentejo, deixem lá ver. Até pode ser que tenhamos surpresas.

quarta-feira, 23 de março de 2022

A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO EM SAÚDE MENTAL, SERÁ DESTA?

 A idade e algum conhecimento foram criando em mim e sem que disso me orgulhe algum cepticismo relativamente à mudança significativa nas políticas públicas de diversos domínios. É verdade, reconheço, que algumas alterações se vão verificando ainda que longe do necessário, mas sempre apresentadas envolvidas em inovação, novos paradigmas, projectos, etc.

Uma das áreas mais necessitadas de alterações significativas e urgentes será a saúde mental, que, aliás, sempre tem sido o parente pobre das políticas de saúde.

Não sei se será um sintoma de cansaço pandémico e do mal que assola a Europa sentir a necessidade de ver algo de positivo que nos alimente o futuro, mas a verdade é que a entrevista do director do Programa Nacional de Saúde Mental, Miguel Xavier, ao DN me animou, será desta?

Em síntese e referindo apenas alguns aspectos, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, Portugal terá acesso a meios financeiros para investir na reforma dos dispositivos de apoio em matéria de saúde mental.

Numa primeira fase serão criadas 100 respostas para prestação de cuidados a doentes desinstitucionalizados até ao final do ano promovendo apoio na residência das pessoas, serão desenvolvidos programas de intervenção não farmacológica nos centros de saúde (a pandemia fez subir o já demasiado elevado consumo de psicofármacos) e serão criadas quatro novas unidades de internamento de agudos em hospitais gerais. Apesar de algumas equipas em funcionamento, os recursos humanos e o seu número são manifestamente insuficientes.

Está também prevista a criação de equipas móveis para as demências e uma aposta forte na desinstitucionalização dos doentes crónicos e de três unidades de transição para os doentes inimputáveis que terminam a pena. Espera-se ainda um reforço significativo de uma resposta não medicalizada nos cuidados de saúde primários.

Prudentemente, Miguel Xavier recorda que “apenas” o dinheiro que virá não será suficiente sem vontade política e capacidade de operacionalização.

O que agora se anuncia faz parte de há muito das recomendações, em 2019 o Conselho para os Direitos Humanos da ONU a necessidade de uma fortíssima e urgente alteração no modelo de resposta em saúde mental, recorrer menos à institucionalização e à medicação e mais a uma abordagem de natureza social com particular atenção a fenómenos como pobreza desigualdade e exclusão que alimentam discriminação.

No que a nós respeita, segundo o Relatório do programa da União Europeia "Joint Action on Mental Health and Well-being" divulgado em 2015, Portugal estava muito longe do desejável no que respeita à prestação de cuidados no domicílio e serviços na comunidade a pessoas com doença mental. Estima-se que menos de 20% dos doentes tenha acesso a este tipo de cuidados.

A ausência de respostas adequadas leva a um recurso excessivo à prescrição de psicofármacos mesmo em situações não justificadas como tem sido recorrentemente demonstrado.

Também de 2015, o estudo Trajectórias pelos Cuidados de Saúde Mental em Portugal, promovido pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental mostrva que o encerramento, positivo entenda-se, dos hospitais psiquiátricos não foi acompanhado da criação de serviços na comunidade pelo que a desinstitucionalização falhou e “agravou os problemas de muitos doentes”. Afirmava-se no Relatório que a Rede de Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental não se concretizou e escasseiam os recursos.

Parece claramente mais ajustada a aposta em equipas comunitárias e apenas um número reduzido de camas para situações mais críticas de adultos ou crianças para as quais faltam de facto, camas levando ao seu inaceitável internamento em serviços para adultos.

Na verdade, e como se sublinha no Relatório, as orientações actuais e matéria de saúde mental, quer do ponto de vista científico, quer do ponto de vista dos custos, determinam que a qualidade e eficácia deste tipo de apoios, deve, tanto quanto possível, assentar em estratégias de proximidade, aproximando, assim, o serviço clínico da comunidade e da vida quotidiana das pessoas.

Os modelos defendidos pela comunidade científica actual, a defesa dos direitos humanos e da qualidade de vida, tornaram insustentável a manutenção das grandes instituições psiquiátricas que encerravam muitas câmaras de horrores e casos de isolamento e privação. Ainda me lembro do incómodo causado por visitas realizadas no início da minha formação ao Hospital Júlio de Matos. Este universo é bem retratado no mítico “Jaime” de António Reis e Margarida Cordeiro.

No entanto, este movimento de retirada das pessoas com doença mental das grandes instituições precisa de um suporte adequado e suficiente de unidades locais que providenciem apoio terapêutico, social e funcional tão perto quanto possível das comunidades de pertença dos doentes e com o mínimo recurso ao internamento que agora, quero acreditar, poderão mesmo realidade.

A sua não existência, o quadro actual, cria sérios obstáculos aos processos de reabilitação e inserção comunitária acentuando ou mantendo os fenómenos de guetização das pessoas com doença mental e respectivas famílias.

Não estranho, os doentes mentais são os mais desprotegidos dos doentes, pior, só os doentes mentais idosos. Os custos familiares e sociais desta guetização são enormes e as consequências são também um indicador de desenvolvimento das comunidades.

Será seta que a coisa muda de forma significativa?

Deixem lá ver, como falamos no Alentejo.

terça-feira, 22 de março de 2022

ESTE MIÚDO É UM TRATADO, OUTRO DIÁLOGO IMPROVÁVEL

 Olá João, quase na Páscoa, não é verdade?

Claro, tem sido difícil este período. Que tal achas os miúdos?

A maioria está aguentar-se, o Manel então, apesar dos problemas iniciais, o miúdo agora está um tratado não achas Maria?

Tens razão, é como dizes, o Manel anda um tratado. Lembrar-me que ele era um “cabeça no ar”, sempre distraído ou a falar, interrompendo as aulas. Tinha de passar o tempo a mandá-lo calar, mas ele pouco ligava.

Comigo era a mesma coisa, aliás os outros colegas também se queixavam, lembras-te das reuniões, parte delas era destinada ao Manel. É curioso como os miúdos podem mudar imenso, o miúdo está mesmo um tratado. Tenho-lhe perguntado como vai nas outras disciplinas e também pelo que dizem os nossos colegas acho que ele vai passar sem grandes dificuldades.

Olha lá João, se o Manel que nos dava aqueles problemas todos agora está um tratado, achas que ainda vamos a tempo de pedir para tratar os outros, ou mandam-se tratar logo no início do próximo ano?

segunda-feira, 21 de março de 2022

DO NOVO CURRÍCULO DE MATEMÁTICA

 No Público encontra-se uma peça sobre as mudanças no currículo de Matemática reflectidas nas Aprendizagens Essenciais que entrarão em vigor no 1º, 3.º, 5.º e 7.º anos de escolaridade em 22/23 sendo aplicadas nos dois anos seguintes aos restantes anos de escolaridade.

Creio ser consensual que com uma regularidade adequada será necessário introduzir ajustamentos nos conteúdos curriculares por razões de ordem diversa e as mudanças devem ser ajustadas nos conteúdos e na forma.

A questão é que o currículo de Matemática, e não só, é uma matéria quase que permanentemente na agenda e, mais uma vez, esta divulgação desencadeou as divergências habituais, já presentes durante a discussão pública e também na própria decisão de alterar o currículo.

Não sou especialista em questões curriculares, mas curiosamente duas Associações, Sociedade Portuguesa de Matemática e a Associação dos Professores de Matemática, representativas deste universo quase sempre têm entendimentos diferentes com um argumentário que em alguns aspectos que me são mais familiares, o funcionamento dos alunos, me levantam dúvidas e, por vezes, me parecem fruto de agendas para além da Matemática.

No entanto, julgo que estruturas curriculares demasiado extensas, normativas e prescritivas são pouco amigáveis para o bom desempenho da generalidade dos alunos, pouco amigáveis para acomodar a diversidade sendo ainda que não será só a Matemática que poderia beneficiar de ajustamentos em matéria de currículo.

As alterações parecem ser de algum significado e estará a decorrer a formação, perdão, a capacitação dos formadores que trabalharão na formação, perdão, na capacitação dos docentes de Matemática.

Como acontece com qualquer alteração o objectivo será sempre adequar e melhorar as competências dos alunos. No entanto, o desempenho a matemática pode ainda ser influenciado, não numa relação de causa-efeito, por múltiplas variáveis como número de alunos por turma, tipologia das turmas, das escolas e dos contextos, dispositivos de apoio às dificuldades de alunos e professores ou questões de natureza didáctica e pedagógica.

Acresce a esta complexidade um conjunto de outras variáveis menos consideradas por vezes, mas que a experiência e a evidência mostram ter também algum impacto e que julgo necessitar de mais atenção.

São variáveis de natureza mais psicológica como a percepção que os alunos têm de si próprios como capazes de ter sucesso associada a contextos familiares de natureza diversa, por exemplo.

É também conhecido que os pais com mais qualificação e de mais elevado estatuto económico têm expectativas mais elevadas sobre o desempenho escolar dos filhos o que se repercute na acção educativa e nos resultados escolares e, naturalmente, mais facilmente mobilizam formas de ajuda para eventuais dificuldades, seja nos TPC, seja através de ajuda externa.

Finalmente uma outra variável neste âmbito, a representação sobre a própria matemática. Creio que ainda hoje existe uma percepção passada nos discursos de muita gente com diferentes níveis de qualificação de que a matemática é uma “coisa difícil” e ainda de que só os mais “inteligentes” têm “jeito” para a atemática. Esta ideia é tão presente que não é raro ouvir figuras públicas afirmar sem qualquer sobressalto e até com bonomia que “nunca tiveram jeito para a atemática, para os números”. É claro que ninguém se atreve a confessar uma eventual “falta de jeito” para a Língua Portuguesa e, por vezes, bem que “parece”. A mudança deste cenário é uma tarefa para todos nós e não apenas para os professores e seria importante que acontecesse.

De facto, este tipo de discursos não pode deixar de contaminar os alunos logo desde o 1º ciclo convencendo-se alguns que a Matemática vai ser difícil, não vão conseguir ser “bons” e a desmotivar-se.

Não fica fácil a tarefa dos professores, mas no limite e como sempre será a escola o braço operacional da comunidade que quer fazer a diferença.

Parece ainda claro e é uma questão central que para promover mais sucesso e não empurrar os alunos para os anos seguintes sem nenhuma melhoria nas suas competências ou saberes é essencial criar e tornar acessíveis a alunos, professores e famílias apoios e recursos adequados e competentes de forma a evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo.

Sabemos também que a escola pode e deve fazer a diferença, em muitas escolas isso acontece. Mas para que isto seja consistente e não localizado também sabemos que o sucesso se constrói identificando e prevenindo dificuldades de forma precoce, com a definição de currículos adequados certamente, mas também com a estruturação de dispositivos de apoio eficazes, competentes e suficientes a alunos e professores, com a definição de políticas educativas que sustentem um quadro normativo simples e coerente e modelos adequados e reais de autonomia, organização e funcionamento desburocratizado das escolas, com a definição de objectivos de curto e médio prazo, com a valorização e desburocratização do trabalho dos professores, com práticas de diferenciação que não sejam "grelhodependentes", com expectativas positivas face ao trabalho e face aos alunos, com melhores níveis de trabalho cooperativo e tutorial, quer para professores quer para alunos, etc.

Uma nota final para a importância da avaliação externa como forma imprescindível de regulação. No entanto, não entendo que só por existirem e serem muitos, os exames finais, só por si, insisto, só por si, melhorem a qualidade. É como se só por medir muitas vezes a febre se espere que ela baixe. A qualidade é promovida considerando o que escrevi em cima e regulada em termos globais pela avaliação externa que permite análises necessárias, nacionais ou internacionais como, por exemplo, o TIMSS.

É com a escola, por dentro da escola e integrado em sólidos projectos de autonomia e responsabilidade e com recursos adequados que o caminho se constrói.

Sabemos tudo isto. Nada é novo mesmo com um currículo novo. Só falta um pequeno passo.

domingo, 20 de março de 2022

DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

 Merece leitura e reflexão o texto de Paulo Guinote dedicado à formação de professores colocado no seu blogue.

A propósito umas notas breves. No nosso sistema é habitual um padrão de atribuição causal muito centrado nos professores em matéria de dificuldades sentidas no universo da educação. É sempre responsabilidade dos professores pelo que a proliferação da oferta de formação em todos os formatos e duração, para além do nicho de mercado que constitui, parece ser a grande solução.

Como aqui escrevi há algum tempo, é verdade que a formação de professores, inicial e contínua, é uma matéria em permanente discussão em qualquer sistema educativo. As mudanças rápidas e significativas nas sociedades actuais têm também implicações nas escolas, no que ensinam (educam), como ensinam (educam), a quem ensinam (educam), como avaliam, etc.

As abordagens teóricas, os conceitos, as metodologias e didácticas fazem parte da formação inicial e entram na formação contínua como ferramentas de resposta e de actualização da mesma aos problemas e necessidades dos docentes que, naturalmente, vão sofrendo ajustamentos. É, pois, na clareza da identificação de dificuldades e desafios percebidos nas escolas pelos professores que deve assentar o desenho da oferta formativa.

Parece-me claramente necessária uma reflexão global sobre a formação contínua nos seus diferentes aspectos. De caminho talvez fosse de pensar também na formação inicial.

Devo ainda referir que desde há muitos anos colaboro em inúmeras iniciativas no âmbito da formação de professores em diferentes formatos e duração, inicial e contínua, pelo que me sinto envolvido directamente neste universo e certamente também comprometido com as questões que se colocam.

sábado, 19 de março de 2022

CONVERSAS INACABADAS

 Peço desculpa, mas é inevitável, hoje e sempre. Não é possível deixar de recordar um Homem Bom que já partiu há muito. Não partiu sem me mostrar o que nunca viu e me levar onde nunca tinha ido.

Um dia destes haveremos de acabar todas as conversas que não acabámos.

Um dia destes haveremos de começar todas as conversas que não iniciámos.

Vou contar-te tanta coisa que aconteceu e acontece que vais gostar de saber. Deixa-me só recordar, já te tinha dito, que tens dois bisnetos que são uma bênção mágica. Não te rias, ao Simão e ao Tomás já conto histórias com o Arranja Moinhos, todos os dias inventadas, como tu me contavas. E mais engraçado, o Simão já inventa histórias do Arranja Moinhos para eu e o Tomás ouvirmos, havias de gostar. Não vais perceber a comparação, mas um dia explico-te, eles acham que o Arranja Moinhos é como a Patrulha Pata, resolve todos os problemas. E como estamos precisados de quem contribua para soluções e não para problemas.

É que na verdade também se vão passando tantas outras coisas de que não gostarias, coisas muito feias e gente muito feia a fazer o que não deve, mas são assim as coisas do mundo. Partiste numa altura em que acreditávamos que, finalmente, tudo seria melhor, tudo seria possível, e tudo seria melhor e possível para todos.

Até um dia destes, Pai.

sexta-feira, 18 de março de 2022

VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E JOVENS COM DEFICIÊNCIA

 Estamos em tempos que parecem associados à tragédia. No Expresso encontra-se a referência a um estudo recentemente na The Lancet Child & Adolescent Health, “Global estimates of violence against children with disabilities: an updated systematic review and meta-analysis” com indicadores alarmantes, mas, lamentavelmente, não surpreendentes, dos casos de violência dirigida a crianças e jovens até aos 18 anos. Cerca de uma em cada três crianças ou adolescentes com deficiência  é vítima de algum tipo de violência, física, emocional, sexual ou negligência. Sendo certo que as questões relativas a crianças e jovens com deficiência têm merecido maior atenção das comunidades, percebe-se por este trabalho como ainda estamos muito longe de assegurar os seus direitos e protecção.

O estudo recorreu a dados relativos a mais de 16 milhões de crianças de 25 países, recorrendo ao tratamento de 98 estudos, realizados entre 1990 e 2020, de que 75 respeitam a países de mais elevados rendimentos e 23 relativos a sete países de baixo ou médio rendimento.

Alguns indicadores. O volume de situações está associado à tipologia dos problemas de crianças e adolescentes, mais elevados os dirigidos em crianças ou adolescentes com com problemas mentais (34%) ou deficiência cognitiva e problemas de aprendizagem (33%) face ao número de situações envolvendo deficiências sensoriais (27%), limitações físicas ou de mobilidade (26 %) e doenças crónicas (21%).

Os tipos de violência mais registados correspondem a violência física e emocional, afecta uma em cada três crianças e adolescentes com deficiência.

Uma nota ainda para o caso mais particular do bullying pois verifica-se um significativo nível de vitimização, cerca de 40% das crianças com deficiência terá sido alvo deste tipo de comportamento. O bullying presencial, violência física, verbal ou social como bater, pontapear, insultar, ameaçar ou excluir é mais comum, 37%, do que o cyberbullying (23%).

É uma realidade inquietante e mostra o que ainda temos de caminhar na protecção das crianças e adolescentes mais vulneráveis e dos seus direitos. Em regra, os comportamentos agressivos têm como alvo alguém em quem é percebido algum tipo de fragilidade. Não podemos abrandar na necessidade e nas acções que possam contribuir para minimizar o quadro agora retratado.

Dada a gravidade e frequência com que ocorrem estes episódios é imprescindível que lhes dediquemos atenção ajustada promovendo um empenhado investimento em recursos e dispositivos que procurassem minimizar o volume de incidências, algumas das quais de gravidade severa.

As idades consideradas no estudo correspondem à escolaridade obrigatória pelo iniciativas e recursos disponíveis devem privilegiar os contextos escolares e a intervenção junto das famílias que tanto podem fazer parte do problema, como da solução o que, obviamente justifica a necessidade de considerar o meio familiar.

Do meu ponto de vista, o argumento custos não é aceitável porque as consequências de não mudar são incomparavelmente mais caras. Depois das ocorrências torna-se sempre mais fácil dizer qualquer coisa, mas é necessário. Muitas crianças e adolescentes evidenciam no seu dia-a-dia sinais de mal-estar a que, por vezes, não damos atenção, seja em casa, ou na escola, espaço onde passam um tempo enorme. Nas situações envolvendo crianças e jovens que poderão estar mais fragilizadas é ainda necessária mais atenção.

Estes sinais não podem, não devem, ser ignorados ou desvalorizados. O resultado pode ser grave.

quinta-feira, 17 de março de 2022

CONFIRMA-SE, TEMOS EXAMES, MAS NÃO CONTAM PARA A NOTA

 Como se esperava o Conselho de Ministros decidiu que no secundário apenas se realizarão os exames finais específicos para o ingresso no superior, realizam-se as provas de aferição no 2º, 5º e 8º ano e os exames finais do 9º realizam-se, mas não têm impacto nas notas finais dos alunos.

Já aqui escrevi sobre esta matéria e retomo a questão dos exames do 9º ano  porque continuo a não entender a decisão.

A existência dos exames do 9º ano é o dispositivo que temos de avaliação externa para o ensino básico, não temos já exames no 1º e 2º ciclo que não me parecem imprescindíveis se tivermos esse dispositivo no 9º ano.

O que me parece imprescindível é a existência de avaliação externa por razões conhecidas. No cenário agora decidido confundem-se, do meu ponto de vista, diferentes funções e diferentes dispositivos de avaliação. Dito de outra maneira, realizar exames para “aferir” aprendizagens não corresponde à função de um exame final, “medir” e “certificar” aprendizagens que nos permitam análises mais robustas no âmbito da avaliação externa. Para identificar dificuldades e ajustar trajectos temos as avaliações internas regulares e as provas de aferição, não os exames.

Acresce que, como é muito provável, a ideia de que vamos realizar exames, “mas não contam para nada”, fará o seu caminho na comunidade escolar, designadamente, entre alunos e pais. Este entendimento, que creio vir a ser muito alargado, não deixará de contaminar o empenho e desempenho dos alunos na realização das provas.

Nesta perspectiva, os resultados que vierem a ser conhecidos correm o risco de ser menos fiáveis, mesmo como como “prova de aferição” o objectivo (errado) definido para a realização dos exames sem impacto na nota final.

E como ocupação do tempo para alunos e professores também não será a melhor das ideias.

quarta-feira, 16 de março de 2022

VIDAS DE PROFESSORES

 Com alguma frequência, demasiada frequência, aqui escrevo sobre ou a propósito de situações de violência dirigida a professores e realizada por alunos ou encarregados de educação (serão mesmo de educação?!). Agora numa escola secundária do Porto e no recinto escolar registou-se mais uma agressão a um professor por parte dos pais de um aluno.

Andam negros os tempos para os professores e, de novo, algumas notas sobre duas das questões que ensombram os tempos.

Sempre que escrevo sobre esta questão, agressões e insultos a professores, e dadas as circunstâncias faço-o com regularidade, é sempre com preocupação e mal-estar, mas creio que é preciso insistir.

As notícias sobre agressões a professores, cometidas por alunos ou encarregados de educação, continuam com demasiada frequência embora nem todos os episódios sejam divulgados. Aliás, são conhecidos casos de direcções que desincentivam as queixas dado o “incómodo” e “publicidade negativa” para a escola que trará a divulgação.

Os testemunhos de professores vitimizados são perturbadores e exigem atenção e intervenção.

Cada um dos recorrentes episódios é, obviamente, um caso de polícia, mas não pode ser “apenas” mais um caso de polícia e julgo que, mais do que ser notícia, importaria reflectir nos caminhos que seguimos.

Esta matéria, embora seja objecto de rápidos discursos de natureza populista e securitária, parece-me complexa e de análise pouco compatível com um espaço desta natureza. Apenas umas notas repescadas.

Retomo uma breve reflexão em torno de três eixos: a imagem social dos professores, a mudança na percepção social dos traços de autoridade e o sentimento de impunidade que me parecem fortemente ligados a este fenómeno.

Já aqui tenho referido que os ataques, intencionais ou não, à imagem dos professores, incluindo parte do discurso de gente dentro do universo da educação que tem, evidentemente, responsabilidades acrescidas e também o discurso que muitos opinadores profissionais, mais ou menos ignorantes ou com agendas implícitas, produzem sobre os professores e a escola, contribuíram para alterações significativas da percepção social de autoridade dos professores, fragilizando-a seriamente aos olhos da comunidade educativa, sobretudo, alunos e pais. Os últimos tempos têm sido, aliás, elucidativos. Quando o ME refere a existência de “casos pontuais” colabora na desvalorização destes episódios, um já seria grave. Tarda, do meu ponto de vista, uma topada de posição e o alinhamento de uma estratégia de forma robusta por parte do Ministro ou de quem por ele possa intervir.

Esta fragilização tem, do meu ponto de vista, graves e óbvias consequências, na relação dos professores com alunos e pais.

No entanto, importa registar que a classe docente é dos grupos profissionais em que os portugueses mais confiam o que me parece relevante.

Em segundo lugar, tem vindo a mudar significativamente a percepção social do que poderemos chamar de traços de autoridade. Os professores, entre outras profissões, polícias ou profissionais de saúde, por exemplo, eram percebidos, só pela sua condição de professores, como fontes de autoridade. Tal processo alterou-se, o facto de se ser professor, já não confere, só por si, “autoridade” que iniba a utilização de comportamentos de desrespeito ou de agressão. O mesmo se passa, como referi, com outras profissões em que também, por razões deste tipo, aumentam as agressões a profissionais da área da saúde, médicos e enfermeiros.

Finalmente, importa considerar, creio, o sentimento instalado em Portugal de que não acontece nada, faça-se o que se fizer. Este sentimento que atravessa toda a nossa sociedade e camadas sociais é devastador do ponto de vista de regulação dos comportamentos, ou seja, podemos fazer qualquer coisa porque não acontece nada, a “grandes” e a “pequenos”, mas sobretudo a grandes, o que aumenta a percepção de impunidade dos “pequenos”.

Considerando este quadro, creio que, independente de dispositivos de formação e apoio, com impacto quer preventivo, quer na actuação em caso de conflito, obviamente úteis, o caminho essencial é a revalorização da função docente tarefa que exige o envolvimento de toda a comunidade e a retirada da educação da agenda da partidocracia para a recolocar como prioridade na agenda política.

Definitivamente, a valorização social e profissional dos professores, em diferentes dimensões é uma ferramenta imprescindível a um sistema educativo com mais qualidade sendo esta valorização uma das dimensões identificadas nos sistemas educativos mais bem considerados.

É ainda fundamental que se agilizem, ganhem eficácia e sejam divulgados os processos de avaliação ou julgamento, e a punição e responsabilização sérias dos casos verificados, o que contribuirá para combater, justamente, a ideia de impunidade.

Uma outra questão que ensombrece os tempos dos professores e que também é abordada no JN prende-se com os efeitos dos modelos de carreira e colocação dos professores.

São testemunhos de professores, pessoas, já com muitos anos de serviço, que percorrem o país procurando alguma estabilidade profissional.

Esta instabilidade é vivida com custos severos do ponto de vista económico, muitos docentes mantêm duas residências, familiares, separação forçada de filhos e cônjuges e até, do meu ponto de vista, emocional com potenciais riscos no bem-estar e desempenho profissional. Aliás, a justificação da peça do DN é justamente o impacto que o aumento substantivo do preço dos combustíveis tem no rendimento de quem faz centenas de quilómetros para trabalha na expectativa de acumular tempo de serviço que lhe garanta colocação efectiva e mais próxima. A prolongar-se, a situação pode constituir mais um contributo para a baixa atractividade que, actualmente, a carreira docente parece revelar.

Este cenário releva, obviamente, de medidas de política educativa com erros de décadas e outros mais actuais. Por outro lado, o modelo de gestão da colocação de professores carece de óbvia alteração, designadamente, caminhando numa perspectiva de descentralização que acompanhe a necessária e regulada autonomia das escolas e promova estabilidade.

Muitos professores, alguns com muitos anos de experiência, vivem vidas adiadas, sem estabilidade, mantendo a dependência familiar ou adiando a vida familiar própria.

Parece também adiada a esperança e a confiança num futuro melhor.

terça-feira, 15 de março de 2022

"LEVEM OS MIÚDOS PARA A RUA"

 Apesar de me parecer assentar numa generalização que não creio existir, merece leitura e reflexão o texto de Joana Petiz no DN, “Levem os miúdos para rua”.

Na verdade, muitas vezes aqui tenho abordado esta questão, são conhecidos múltiplos estudos que referem o mal-estar e alterações na saúde mental de crianças e adolescentes, mas também de adultos, no quadro da pandemia. Os confinamentos a que se associaram os períodos de isolamento, a falta de rede social dos pares ou as dificuldades de diversa ordem sentidas nos contextos familiares terão dado um contributo significativo. Os dados mais recentes acentuam a importância desta matéria.

Deste quadro resulta a necessidade e urgência de atenção a estas questões, não desvalorizando nem sobrevalorização e considerando o contexto escolar, bem como contexto familiar e comunitário.

O impacto da pandemia nas aprendizagens tem sido muito referido e está a ser objecto de um plano específico, Plano 21/23 Escola + que, esperamos, mobilize os recursos e as intervenções necessárias aos que se propõe embora sejam conhecidos sobressaltos e dificuldades. Seria importante que a esta recuperação no plano das aprendizagens estivesse associada a uma forte preocupação com outros aspectos muito importantes no bem-estar e desenvolvimento global de crianças e jovens com os apoios e recursos necessários.

Como já tenho escrito, crianças e jovens que passam mal, não aprendem, vivem pior e correm riscos sérios de comprometer o futuro pelo que os apoios e resposta não podem, não devem, falhar.

segunda-feira, 14 de março de 2022

PAI E FILHO, OUTRO DIÁLOGO IMPROVÁVEL

 Para fugir à tragédia da guerra que não parece ter fim, no tempo e na dimensão, outro diálogo improvável.

Adeus Luís, até logo.

Vais sair pai?

Sim, vou ao futebol.

Vais com quem?

Com o Sr. Francisco do 1º esq. e com uns colegas lá da empresa.

Quais?

Tanta pergunta, é com o Mário, o Lopes e o Santos.

O Lopes e o Santos não são uns tipos que tu contas que de vez em quando arranjam confusão?

Não Luís, são uns tipos porreiros, podes ficar descansado.

Pai, vens logo para casa quando acabar o jogo?

Se o glorioso ganhar, vamos beber umas bejecas.

Vocês vão de carro?

Sim, o Lopes leva o carro dele.

Já te tenho dito que não gosto que vás beber uns copos quando estás de carro.

O Lopes é responsável, a gente bebe por ele.

Então vá, vão com cuidado e portem-se bem, sabes como hoje as coisas estão, toda a cautela é pouca. Não se metam em confusões. Não desligues o telemóvel e alguma coisa apita.

 

Pá, pessoal desculpem lá o atraso, ainda levei uma seca do meu filho antes de sair de casa.

domingo, 13 de março de 2022

A TINTA INVISÍVEL

 Um dia destes, numa conversa informal entre professores, comentavam-se vários casos em que miúdos passam por situações complicadas sem que, aparentemente, se tornasse visível o impacto dessas situações. Alguns professores sugeriam que certos miúdos parecem ter uma estranha capacidade para mascarar a sua vida, ou mesmo o seu mal-estar.

Na conversa também participava o Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros, que contou a história de um rapaz que ele tinha conhecido há muitos anos e que ia escrevendo a sua narrativa com tinta invisível. Os colegas, por um lado surpreendidos com a afirmação e por outro lado habituados às divagações do Velho, esperaram por alguma clarificação.

O Professor Velho falou então de um miúdo em que ele sentia que alguma coisa se passava que não o deixava sentir bem, mas não conseguia perceber o que era. Começou a ficar mais atento aos sinais e às falas do rapaz e chegou à conclusão de que ele escrevia a sua vida com aquela tinta que só com um truque se torna visível. No caso, o truque foi a atenção. Existem muitas narrativas que falam de medo, de desconforto, de desafecto, de abandono e solidão, de raiva, de perplexidade e que permanecem invisíveis. Só mesmo a atenção é que torna visível a tinta com que são escritas.

O Velho acabou a referir que o problema é que a atenção que permite decifrar a tinta invisível de algumas narrativas nem sempre se consegue ensinar, embora sempre se possa aprender.

Aqueles professores pareciam atentos à fala do Professor Velho.

sábado, 12 de março de 2022

UMA TARDE CABANEIRA

 Pode parecer estranho e peço desculpa aos que sentem a sua vida complicada, mas já tinha saudades de uma tarde assim, cabaneira como aqui se fala, chuva não em excesso, algum vento e frio que obriga a acender a salamandra.

De manhã ainda deu para se fazer alguma coisa aqui no monte. Há sempre qualquer coisa a precisar de ser amanhada.

A água como não é demasiado grada, é bem chuvida e muito bem-vinda, a horta e a terra agradecem toda a que vier. Nós também agradecemos, a água é a fonte de onde tudo vem.

Os velhos como eu gostam de dizer “como antigamente”, conversa de velho, é claro. Mas a verdade é que a chuva já não vem como antigamente, os homens e os modelos de desenvolvimento mexeram, mexem, com a Terra que se sente e se zanga cada vez com mais frequência. Acredito que ainda estamos a tempo de voltar aos Invernos de antigamente, depende de nós e dos que vêm a seguir a nós.

É um tempo que convida a ler coisas que estavam em lista de espera, a escrever algo não urgente, a ouvir sons menos habituais, a arrumar o que aguardava oportunidade e, sobretudo, dá disponibilidade.

São também assim, cabaneiros, os dias do Alentejo.

sexta-feira, 11 de março de 2022

PISA 2022, ALGUMAS DÚVIDAS

 Entre 2 de Março e 22 de Abril está a realizar-se a edição de 2022 dos testes envolvidos no Programme for International Students Assessment (PISA) promovido pela OCDE.

Este ano realizam as provas cerca de 12000 de 231 escolas o que é bem superior ao número de alunos que participaram na edição de 2018.

Este ano a avaliação é particularmente centrada na literacia matemática embora também integre os domínios da leitura e das ciências.

Sou dos que considera importante a realização de estudos desta natureza que possibilitam alguma forma de avaliação externa, comparação entre sistemas educativos e análises de evolução. No entanto, também entendo que os indicadores recolhidos, assim como não devem ser desvalorizados, não devem ser sobrevalorizados.

Quando dei conta de que estava a decorrer a avaliação deste ano surgiram-me algumas dúvidas.

Como se realiza de três em três anos os alunos que este ano respondem passaram por dois anos de enorme sobressalto nas suas aprendizagens. (Não se realizou em 2021 devido à pandemia)

Sei que a OCDE entende, tal como se lê no Público que estas provas “não avaliam a memorização nem a reprodução do que é aprendido na escola, mas sim a capacidade que os alunos têm de aplicar e relacionar conhecimentos e competências em contextos do quotidiano.” Mas também sei que os “conhecimentos e competências” que os alunos devem mobilizar são construídos com um peso muito forte da sua vivência escolar e dos seus trajectos de aprendizagem e que os dois últimos anos foram particularmente complicados.

Aliás, por estas razões, os alunos do 9º ano realizarão exames nacionais que não contam para a sua nota final porque os dois últimos anos lectivos foram atípicos e com impacto nas aprendizagens. Com esta decisão desvaloriza-se os exames e compromete-se, como há pouco aqui escrevi, a avaliação externa, ferramenta reguladora imprescindível.

Neste contexto, temo que os resultados no PISA possam reflectir os constrangimentos dos últimos dois anos lectivos e comprometer a comparação com anos anteriores.

No que respeita a comparações entre países, sendo certo que a generalidade dos alunos dos diferentes países envolvidos nestas provas foi de alguma forma afectada pelo impacto da pandemia, também é verdade que se verificou uma enorme diversidade nas medidas tomadas, confinamentos ou recursos disponíveis para apoios em termos digitais, por exemplo, nos diferentes sistemas educativos.

Neste contexto aguardo com alguma expectativa, quer os resultados que se encontrarão, quer as leituras que possam permitir.

quinta-feira, 10 de março de 2022

OBRIGADO, ANA MARIA BÉNARD DA COSTA

 Lamentavelmente, só depois da sua realização tomei conhecimento da apresentação do livro de Ana Bénard da Costa, “Memórias de uma Educação Especial – do Modelo Médico à Educação Inclusiva”. Foi no dia 8 de Março, um dia particularmente bem escolhido para conhecermos a obra e vida da Ana Maria Bénard escrita por ela.

Por dever de estima e da importância que a Ana Maria Bénard teve na educação em Portugal, em particular na defesa intransigente do direito à educação de qualidade e inclusiva de crianças e jovens com necessidades educativas especiais e da inspiração que representa para muitos de nós, não posso deixar de expressar um tributo de reconhecimento e gratidão pelo que também representou para mim.

Conheci mais de perto a Ana Maria Bénard da Costa quando em 1981 integrei a equipa da Divisão de Ensino Especial que chefiava na Direcção-Geral do Ensino Básico onde permaneci alguns anos.

A visão e a energia da Ana Maria Bénard eram, são inspiradoras. Contra muitas objecções e resistências foi-se avançando. Com muitos sobressaltos, mas com muito entrega fizemos um caminho que ainda não terminou, longe disso, há muito por fazer.

A sua forma emotiva e empenhada, sempre a procurar soluções no meio de muitos problemas e obstáculos, a procura de caminhos era contagiante. Sempre que viajava questionávamo-nos sobre que novas ideias a Ana Maria traria para nos obrigar a pensar e a agir mesmo em contraciclo com algumas dimensões das políticas públicas.

Criou de forma informal, sempre foi informal, uma estrutura regionalizada da Divisão de Ensino Especial que nos permitia um contacto próximo e mutuamente enriquecedor com os(as) colegas que trabalhavam nas escolas regulares, nas equipas de Ensino especial e nas Escolas Especiais que na altura estavam na tutela da Divisão por ela chefiada.

Nem sempre foi compreendida, nem sem foi bem tratada e reconhecida, tarda uma homenagem ao seu trabalho, mas foi, é, uma referência para muitos de nós.

Obrigado, Ana Maria pela oportunidade que tive de trabalhar contigo e ter feito parte desta caminhada que não tem fim.

Até sempre.



quarta-feira, 9 de março de 2022

HÁ EXAME, MAS NÃO CONTA PARA A NOTA

 Apesar de ainda não ser conhecida a decisão do ME, de acordo com o que se lê no Público, parece confirmar-se a realização de exames finais do secundário apenas para as disciplinas exigidas para ingresso no ensino superior, realizar-se-ão as provas de aferição dos 2.º, 5.º e 8.º anos, assim como se retomam os exames finais do 9º ano. No entanto, nos exames do 9º o resultado obtido pelos alunos não é considerado para a sua nota final.

Ao que parece, a sua realização sem que os resultados contem para a nota final dos alunos destina-se a “aferir” as aprendizagens realizadas pelos alunos e considerar essa informação no Plano de Recuperação das Aprendizagens que está em curso, apesar dos sobressaltos que se conhecem.

Umas notas em linha com que aqui escrevi há poucos dias.

Confesso que tenho alguma dificuldade em entender. A existência dos exames do 9º ano é o dispositivo que temos de avaliação externa para o ensino básico, não temos já exames no 1º e 2º ciclo que não me parecem imprescindíveis se tivermos esse dispositivo no 9º ano.

O que me parece imprescindível é a existência de avaliação externa por razões conhecidas. No cenário que se vislumbra parece confundir-se as diferentes funções e os diferentes dispositivos de avaliação. Dito de outra maneira, realizar exames para “aferir” aprendizagens não corresponde à função de um exame final, “medir” e “certificar” aprendizagens que nos permitam análises mais robustas no âmbito da avaliação externa. Para identificar dificuldades e ajustar trajectos temos as avaliações internas regulares e as provas de aferição, não os exames.

Acresce que, como é muito provável, a ideia de que temos os exames, “mas não contam para nada”, fará o seu caminho na comunidade escolar, designadamente, entre alunos e pais. Este entendimento, que creio vir a ser muito alargado, não deixará de contaminar o empenho e desempenho dos alunos na realização das provas.

Nesta perspectiva, os resultados que vierem a ser conhecidos correm o risco de ser menos fiáveis, mesmo para o objectivo (errado) definido para a realização dos exames sem impacto na nota final.

E como ocupação do tempo para alunos e professores também não será a melhor das ideias.

terça-feira, 8 de março de 2022

"UM DIA NO FEMININO, LEMBRAM-SE?"

 É difícil não me lembrar a cada 8 de Março, Dia internacional da Mulher.

Há catorze anos, também num dia 8 de Março, escrevi no Atenta Inquietude este pequeno texto a que chamei “Um dia no feminino”.

A história tem páginas curiosas. Hoje escreve-se uma delas. Numa sociedade em que o género ainda é factor de discriminação negativa, no Dia Internacional da Mulher, cerca de 100 000 docentes, na sua maioria mulheres, protestam contra a política dirigida por uma mulher.

Entre as razões para o protesto figuram “tratamento indigno”, “medidas ofensivas e desrespeitadoras”, “humilhação”, etc. Segundo os relatos, muitas destas mulheres protestam na rua pela primeira vez.

Será que os tempos estão mesmo a mudar?

Já o velho Dylan dizia que sim.”

Sim os tempos mudaram, o tempo não pára. Mas será que mudaram significativamente para os Professores? As marcas de Maria de Lurdes Rodrigues e as marcas de Nuno Crato permanecem. Boas? Más?

E o que se seguiu e os dias que estão a acontecer?

Os Professores sentem-se melhor que há catorze anos? Mais valorizados? Mais apoiados? Mais recompensados e reconhecidos? Mais preparados?

Tenho medo das respostas. Gostava de não ter.

segunda-feira, 7 de março de 2022

O AUTOMÓVEL É UMA ARMA (ENTRE OUTRAS)

 Há uns dias, no âmbito de uma conversa sobre os comportamentos, sublinhava-se o comportamento que muitos condutores assumem ao volante.

Alguém referia a existência de um quadro, o "road rage", "raiva ao volante", que evocando variadíssimas razões, umas mais sofisticadas que outras, procura explicar o irresponsável e agressivo comportamento ao volante de algum pessoal. Aliás, não é rara a ideia de que "o automóvel é uma arma" que por vezes transforma pacatos cidadãos em perigosos delinquentes.

Não tenho nada a opor a esta conceptualização, mas creio que teremos de reflectir em alguns outros aspectos, o quadro de valores, a auto-regulação dos comportamentos, ou seja, a formação dos indivíduos, estou a falar de educação.

Se bem atentarmos, além da "road rage", também conhecemos a "school rage", a "street rage", a "night rage", a "work rage", a "home rage", etc. De facto, os tempos, por muitas razões, são tempos de raiva. Também são tempos em que, por causas diferentes, se instalou um sentimento de impunidade que favorece a desregulação dos comportamentos.

Como é obvio, os comportamentos inadequados e criminosos devem ser combatidos e punidos. No entanto, a forma mais eficaz de construção de valores e capacidade de auto-regulação de comportamentos e emoções é a educação, familiar e escolar. Assim sendo e como sempre digo, tenho a maior das dificuldades em entender os destratos que tantas vezes são dados à educação, aos seus agentes e aos miúdos.

O carro será apenas uma das armas que terão à mão, depois da própria mão, é claro.

domingo, 6 de março de 2022

MAS AS CRIANÇAS, SENHORES?

 porque lhes dais tanta dor?

Porque padecem assim.

"Guerra da Ucrânia. Conflito provocou mais de meio milhão de crianças refugiadas numa semana"

Nada pode justificar tal brutalidade. Não existe terror mau e terror bom. Não existe horror mau e horror bom. Não existe terrorismo bom e terrorismo mau, não existe democracia sem direitos humanos.

sábado, 5 de março de 2022

QUAL É A PRESSA?

 A Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior reuniu na passada quinta-feira, mas não tomou qualquer decisão sobre os exames nacionais, ou seja, se serão realizados a todas as disciplinas ou, tal como nos dois últimos anos, apenas às disciplinas específicas para o ingresso no superior.

A falta de decisão ter-se-á devido à não existência de qualquer proposta do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

As inscrições para os exames realizam-se dentro de pouco mais que duas semanas e os alunos e professores continuam sem saber qual o cenário que terão.

Não sendo de todo expectável uma alteração no modelo de acesso, será previsível que se mantenha a decisão dos dois últimos anos, é também a proposta do Conselho de Escolas.

Como há dias aqui escrevi a propósito desta proposta, embora defenda um outro modelo de acesso considerando o facto de o actual estar excessivamente centrado nos exames e desvirtuando a importância própria do ensino secundário, pode compreender-se a realização de exames apenas para o acesso ao superior.

O que tenho mais dificuldade em perceber é o desconhecimento sobre o que pensa a tutela sobre esta situação.

É verdade que seria desejável que professores e alunos soubessem com que contar, mas ainda faltam quase três semanas para as inscrições nos exames.

Portanto, e como alguém dizia, qual é a pressa?

sexta-feira, 4 de março de 2022

GORDINHOS E PARADINHOS

 Atravessamos tempos tão pesados que se torna difícil pensar noutras questões que não o inferno criado na Ucrânia e que ninguém sabe como, se, e quando acabará.

De qualquer forma, importa continuar atento ao que também constitui o nosso dia a dia. A propósito do Dia Mundial de Combate à Obesidade umas notas em que insisto sobretudo a pensar nos mais novos e no seu bem-estar.

Apesar de estarmos a melhorar a situação, os indicadores relativos à prevalência do excesso de peso e da obesidade infantil entre 2008 e 2019 baixaram na generalidade do país, mais ainda temos cerca de 30% de crianças nesta situação.

De acordo com o estudo COSI Portugal, integrado no Childhood Obesity Surveillance Initiative da OMS/Europa, coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, verificou-se neste período uma redução de 8,2% na prevalência de excesso de peso em crianças dos seis aos oito anos, de 37,9% para 29,7% e de 3,3% na obesidade infantil, de 15,3% para 11,9%.

Acresce que no que respeita à actividade física e considerando a recomendação da OMS de uma hora diária de actividade física aos 11 anos só 16% das raparigas e 26% dos rapazes cumprem e aos 15 anos temos 5% das raparigas e 18% dos rapazes de acordo com o Relatório “Health at a Glance: Europe 2016” da OCDE.

Estes dados estão em linha com os de relatórios anteriores e com estudos nacionais sobre os hábitos alimentares e estilo de vida dos mais novos e sobre as potenciais consequências para o seu desenvolvimento.

Registou-se também em 2021 a regulamentação da oferta alimentar nas escolas com o o objectivo de promover estilos alimentares mais saudáveis.

Apesar de parecer uma birra ou teimosia acho sempre importante sublinhar a importância que deve merecer a questão dos hábitos alimentares e o combate ao sedentarismo, sobretudo nos mais novos.

As consequências potenciais deste quadro em termos de saúde e qualidade de vida são muito significativas, quer em termos individuais, quer em termos sociais. Assim, e como já tenho referido, um problema de saúde pública desta dimensão e impacto justifica a definição de programas de prevenção, educação e remediação que o combatam. Sem surpresa, surgem sempre algumas reacções contra o chamado “fundamentalismo nos hábitos individuais”, mas creio que são também de ponderar as implicações colectivas e sociais do problema.

No entanto, como sabemos, o excesso de peso, o sedentarismo e os riscos associados não serão, para a esmagadora maioria dos miúdos e graúdos nessa situação, uma escolha individual, é algo de que não gostam e sofrem, de diferentes formas, com isso.

Eu sei que à escola não compete tudo, não pode, nem deve ser responsável por todos os problemas que afectem a população em idade escolar. Por outro lado, apesar de em termos de educação familiar se registarem melhores níveis de literacia sobre saúde estilos de vida, ainda temos muito que caminhar.

No entanto, sei, sabemos, que pela educação é que vamos lá.

quinta-feira, 3 de março de 2022

OS MIÚDOS, ESSES RESPIGADORES

 Já não é a primeira vez que aqui no Atenta Inquietude me refiro ao lindíssimo "Os Respigadores e a Respigadora" de Agnès Varda. Hoje faço-o de novo a propósito da vida de alguns miúdos.

É verdade, um número demasiado elevado de crianças e adolescentes são uma espécie de respigadores, ou seja, a sua vida depende muito das sobras da vida dos adultos.

Existem crianças que apenas têm pais e mães no tempo que a estes sobre, pouco, dos estilos de vida a que estão obrigados ou escolhem.

Em muitas circunstâncias os miúdos têm apenas a voz que os silêncios dos adultos, curtos, lhes concedem.

Existe muita gente miúda que na escola tem a atenção que sobra do cansaço e do esforço mal compreendido de muitos professores e o que sobra do investimento de políticas públicas com prioridades tantas vezes trocadas.

Todos conhecemos miúdos, mais pequenos e mais grandes, que se confortam com as sobras dos afectos que os adultos têm para distribuir.

Existem muitos miúdos que para brincar, a actividade mais séria que se faz quando se é pequeno, apenas têm o tempo que sobra da quantidade enorme de actividades com que são intoxicados em nome da excelência e do desenvolvimento.

Curiosamente e de forma paradoxal, muitos destes respigadores pequenos têm muitas coisas em excesso, que lhes não fazem falta alguma. Mas isso é outra história.

quarta-feira, 2 de março de 2022

NOCTURNO

 Vivemos dias de chumbo. Estou a lembrar-me de Rafael Alberti e do texto "Nocturno". Aqui na voz de Paco Ibañez.

(...)

Las palabras entonces no sirven, son palabras...

Siento esta noche heridas de muerte las palabras.

(…)

Não, não é para estragar o dia, os dias. É só porque é neste mundo que vivemos, vivem os nossos filhos, viverão os nossos netos e os filhos dos …



terça-feira, 1 de março de 2022

A MINHA CASA

 Eu acho que é difícil escrever sobre a minha casa, mas vou tentar.

A minha casa em alguns dias é uma casa grande, noutros dias é uma casa pequena. Às vezes nem consigo perceber muito bem se é pequena ou grande. A minha casa tem muita gente, os meus pais, a minha irmã Maria e o Daniel, o meu irmão, e às vezes vem mais família e amigos e então parece pequena. Muitos dias a minha casa está muito vazia, não aparece ninguém, é quando ela parece muito grande.

Eu quase sempre gosto de estar na minha casa, tenho as coisas de que gosto e preciso, mas às vezes sinto-me um bocado só. Olho à volta e não vejo ninguém. Quando minha casa me faz sentir mais só fico com algum medo, não sei bem de quê, falo com os meus amigos e eles, quase todos, também dizem isso.

A minha casa é bonita, eu acho, embora nos dias mais escuros, quando está vazia e me parece grande eu não gosto assim muito dela e acho-a feia. Até tenho vontade de mudar de casa, mas sei que não posso.

Eu e os meus amigos encontramo-nos na minha casa e umas vezes ficamos contentes, outras vezes falamos das coisas mais aborrecidas e já não fica tão bem, até parece que não gostamos das nossas casas.

Professora, não diga à Diana, mas eu gostava que ela também estivesse mais tempo na minha casa. Acho que ela ia gostar e a minha casa ficava melhor.

E é assim a minha cabeça. É a minha casa.

 

Francisco, nº 5, 8º B