domingo, 21 de fevereiro de 2021

A CULTURA DO "DESENRASCANÇO"

 Um dos muitos efeitos e dificuldades acrescidas que a alteração do modelo de aulas presenciais para o trabalho online, não lhe estou a chamar ensino à distância, trouxe foi a questão da avaliação e da forma de regular a seriedade de um processo de avaliação realizado em situação não presencial.

Considerando a minha experiência pessoal que creio ser próxima do que passa na generalidade das instituições procuramos da forma possível minimizar o risco de fraude. Para muitos de nós docentes a situação também não era familiar, certamente teremos conseguido travar alguns episódios, mas, provavelmente, algumas situações aconteceram, acontecem e vão continuar a acontecer. A questão não é nova, actualiza-se conforme os tempos. No meu tempo de básico e secundário, papéis com a matéria enrolados com um elástico que permitia ir funcionando como “auxiliar de memória”era do mais “sofisticado”, mas, mesmo nessa altura, criatividade era algo que não faltava.

O Público traz uma peça elucidativa sobre esta questão, muitos professores têm sido solicitados para, a troco de pagamento significativo, apoiar alunos na realização de avaliações online. Nada que não antecipássemos e que logo no primeiro confinamento tentámos evitar através de diferentes expedientes.

A questão da fraude, nas diferentes tipologias, mas sobretudo a questão do plágio é um fenómeno em alta também no ensino superior, realidade que conheço melhor, mas não só, a título de exemplo já tive textos do blogue plagiados. Considerando o volume crescente de situações muitas instituições têm vindo a adoptar dispositivos de despiste e regulamentos que minimizem o risco de tais práticas.

É verdade que de há uns tempos para cá, felizmente, tem vindo a emergir e entrar na agenda a questão da utilização da informação disponível, designadamente na net, na produção fraudulenta ou nos limites da ética de trabalhos académicos e científicos da mais variada natureza como é o caso dos artigos científicos falsos.

A necessidade de proceder a avaliações em modo online veio promover uma alteração nas práticas de fraude, mas a questão de fundo é a mesma. A percepção e representação que parte importante dos alunos tem sobre a sua “naturalidade”

O Centro de Estudos Sociais da Faculdade Economia da U. de Coimbra desenvolveu um estudo nacional, creio que divulgado em 2018 sobre a questão da fraude académica cujos dados apontavam no sentido de que de que 37.6 % dos inquiridos aceita a fraude desde que “não prejudique ninguém”. A estes dados, pode acrescentar-se um estudo da Universidade do Minho também de há algum tempo referindo que as situações de algum tipo de “copianço” envolvem três em cada quatro estudantes.

Este reconhecido aumento das situações de plágio ou de tentativa de fraude que se verificam em todos os níveis de ensino, do básico à formação pós-graduada, doutoramentos incluídos, bem como artigos científicos, traduz o que costumo designar por relação ética que estabelecemos com o conhecimento e que os alunos mais novos replicam. Aliás, no estudo da U. do Minho, dos alunos que admitiam copiar, 90 % afirmavam fazê-lo desde sempre.

O conhecimento será entendido como algo que se deve mostrar para justificar uma nota ou estatuto, não para efectivamente integrar e, ou, acrescentar uma mais-valia no conhecimento ou na ciência, ou seja, importante mesmo é que a nota dê para passar, que o curso se finalize, que a tese fique feita e se seja doutorado ou que se possa acrescentar mais um artigo à produção científica num mundo altamente competitivo, muitíssimo competitivo. Que tudo isto possa acontecer à custa da manhosice, do desenrasca mais ou menos sofisticado, são minudências com as quais não podemos perder tempo.

É importante termos consciência que esta questão não é um exclusivo nosso. São conhecidos recentes casos em diferentes países da Europa. De qualquer forma, não deixa de ser uma preocupação e justifica que as escolas, do básico ao superior, se envolvam nesta tentativa de que todos tenhamos uma relação sólida do ponto de vista ético com o conhecimento, a sua produção e divulgação.

O caminho passa pelo estabelecimento obrigatório de códigos de conduta com implicações sancionatórias severas e com uma atitude formativa e preventiva durante as aulas.

O trabalho será sempre difícil pois o actual contexto ao nível dos valores e da ética dos comportamentos e funcionamento social é, só por si, um caldo de cultura onde o copianço, o plágio ou a fraude científica, por vezes, não passam de "peanuts". É a cultura do desenrascanço, não importa como.

2 comentários:

Rui Ferreira disse...

Um autêntico cancro este do plágio.
Há uns dias atrás participei numa formação organizada pela minha universidade, sobre a plataforma URKUND, contra o plágio no ensino superior (deixo em baixo o link). Já vi um pouco de tudo desde que comecei a utilizar, creio desde 2017, até lá usava o método da pesquisa rudimentar (processo muito moroso e sem as potencialidades que esta plataforma permite). Na formação fiquei a saber sobre as novas formas, mais sedutoras, de não ser apanhado. Os que tenho apanhado são corridos a "Zero".
O link para assistir à sessão é o seguinte:
https://teams.microsoft.com/l/meetup-join/19%3ameeting_NTI1ZTYzOGYtZmU2OC00YjUzLTgzMGQtYTM5YmMyYzczZDEw%40thread.v2/0?context=%7b%22Tid%22%3a%22c0b87ef2-351b-4dbd-9eb5-c7714fcba961%22%2c%22Oid%22%3a%22528db186-e488-41ec-839e-254c3fdb3978%22%2c%22IsBroadcastMeeting%22%3atrue%7d

Zé Morgado disse...

Olá Rui, obrigado pela informação. Nós, desde há uns anos utilizamos, o programa Turnitin onde são submetidos TODOS os trabalhos dos alunos. Tem ajudado pois sabem que os trabalhos são analisados. A questão das avaliações não presenciais é mais complexa de controlar tudo. A aposta terá de passar, creio, por construir uma relação ética com o conhecimento e desde o básico.