Ontem acabei o dia com uma
sensação estranha.
Em Maio de 2020, na minha escola,
ISPA – Instituto Universitário, dei a última aula antes de entrar na reforma, os anos
passam. Na altura, escrevi aqui que essa aula não foi uma aula, foi uma
“zoomaula”, vivíamos os duros tempos de confinamento. Considerando as circunstâncias, não
tínhamos alternativa, acho que correu bem, mas a proximidade, a presença
inteira, a comunicação e a relação, o olhar e os gestos, o estar sempre em pé, são
difíceis e fazem-nos falta.
Entretanto, assegurando-me de que
a continuidade não impediria a substituição pois o corpo docente das instituições precisa de ser
renovado e dar oportunidade a gente nova e competente, continuei com uma
actividade bem mais reduzida, colaboração num programa de doutoramento em
educação e uma disciplina dedicada a problemas de comportamento em contextos
educativos que sempre gostei de abordar, para além de realizar também uma menor intervenção no
trabalho com professores e pais.
Pois ontem, ao acabar a aula não
disse o habitual “bom fim-de semana” apesar da estranheza inicial dos(as)
alunos(as) para uma aula à segunda-feira. Daqui a pouco tempo chegarei aos
70, é tempo de acabar, foi mesmo a minha última aula, agora de vez. Foram tempos extraordinários, cruzei-me com alguns milhares de alunos em licenciaturas, mestrados e doutoramentos com quem sempre me senti bem, em particular com quem partilhava e partilha a paixão pela educação. Felizmente com muitos desses (dessas) colegas fui mantendo o contacto. Foi e é muito bom e por isso agradeço a oportunidade que tive.
Tenho para mim, já aqui o
escrevi, que professores e pais nunca se reformam ou vão de férias, vão fazendo
ajustamentos em papéis que sempre desempenharão, no melhor e no menos positivo,
de forma mais próxima ou mais distante.
Esta viagem começou lá para trás no tempo, em 73/74. O secundário foi cheio de hesitações, queria trabalhar com gente
jovem, não no ensino, mas no comportamento, nas suas capacidades e competências,
nas aprendizagens. Não me via em medicina como cheguei a considerar. Já tinha
sido um passo chegar aqui graças a uns pais que quiseram contrariar o destino provável de um operário e
fizeram um esforço significativo para que estudasse.
Felizmente, no antigo sétimo ano
descobri a psicologia e percebi, é por aqui, é isto que eu quero. Os meus pais tiveram maior
dificuldade em perceber o que era a psicologia e como poderia ser um caminho. A
verdade é que foi e ... deu-me tudo. Não sei o que é uma vida de sonho, mas olhando para as coisas boas e bonitas que a vida me tem dado, mesmo não esquecendo os sobressaltos que também fazem parte, tenho tido uma vida com que nunca sonhei.
Entrei em 73 no ISPA, na altura a
única possibilidade de estudar psicologia em Portugal e rapidamente percebi que
era o caminho e que passava pela educação, foi um tempo extraordinário.
Em 75/76 participei numa sessão
em se divulgava uma iniciativa emergente, a criação da CERCI de Lisboa como
resposta educativa e de reabilitação a crianças, jovens e adultos fora do
sistema de educação formal, muitos em casa e em instituições genericamente sem
fins educativos. Uns dias depois bati à porta, fui acolhido, comecei como
auxiliar de educação e, posteriormente, já como psicólogo integrando uma equipa
de pais e técnicos absolutamente notável que, para além da tentativa de todos
os dias fazer o melhor possível, ainda contribuiu para que mais respostas
surgissem em todo o país. Foram tempos de enorme empenho e sentido de dever e
também de gozo por trabalhar com grupos de gente notável na área que tinha
escolhido.
Em 1981, num tempo em que no ME
se dinamizava a resposta escolar integrada a crianças com necessidades
especiais fui convidado para Divisão de Ensino Especial do Ministério da Educação onde, com a liderança de uma figura visionária e motivadora, Dra. Ana
Maria Bénard da Costa, se construía um modelo de integração escolar destes
alunos através das Equipas de Ensino Especial.
Acompanhando as mudanças,
incluindo as legais, passei por serviços regionais logo no
início da sua estruturação, voltei aos serviços centrais quando foram
instituídos os Serviços de Psicologia e Orientação e posteriormente o Núcleo de
Orientação Educativa até que o desencanto se foi instalando com algumas
decisões em matéria de políticas públicas de educação, os contactos com quem
estava nas escolas, uma característica de muitos anos no trabalho no ME,
foram-se esbatendo e reaproximei-me das minhas origens, o ISPA, primeiro numa
colaboração específica, psicologia da educação e educação de crianças com
necessidades especiais e em 94 ingresso no ISPA em exclusividade, até ontem
embora ainda vá assegurar as avaliações. Por um imperativo de consciência,
afecto e justiça devo referir a relação com a generalidade dos meus colegas,
docentes e funcionários, e, como já referi, a relação estabelecida com muitos e muitos
alunos(as), actuais colegas e alguns amigos. Uma palavra especial de agradecimento aos meus
antigos e actuais colegas do Departamento de Psicologia da Educação, agora
Escola de Educação, pela sua grandeza, competência e afecto.
Neste balanço breve é imperioso
referir a colaboração nas actividades do ISPA em Beja, um tempo inesquecível e
que recordo amiúde, os amigos criados e os colegas com quem me cruzei, foram
muitos e bons.
Entretanto, participei em
múltiplos programas de formação inicial e contínua de docentes de todos os
ciclos e níveis de ensino, em muitas iniciativas de diferente natureza
incluindo, naturalmente as de carácter científico mais formal, mantive alguma
produção científica, adquiri os graus inerentes à carreira, mestrado e
doutoramento. Escrevi artigos, alguns livros, poucos, muitas comunicações, gosto mais de falar que escrever,
colaborei em muitas iniciativas no âmbito da comunicação social e o mais que no
universo da educação possa caber.
Participei em muitos encontros com pais e encarregados de educação conversando e aprendendo sobre o universo da acção educativa familiar.
Todo o trabalho que tenho
desenvolvido tem procurado promover e defender uma resposta educativa de
qualidade para todos os alunos, na defesa de modelos promotores de inclusão
sendo que inclusão envolve ser, estar, pertencer, participar e aprender.
Tem sido para mim sempre
claro que só a educação e a escola pública poderá fazer chegar essa qualidade
a todos numa base de equidade. Foi a minha luta, passe o exagero.
Mas a verdade é que tudo tem um
tempo e agora … será outro tempo.
Certamente que vai ser um tempo acrescido para outras lidas. Tenho a família que inclui a mágica avozice de dois netos, tenho a gente amiga, tenho a leitura, tenho as espreitadelas ao mundo, tenho o meu
Alentejo e a lida que solicita, tenho … . Também irei passando por aqui, pelo Atenta Inquietude, atenta inquietude que manterei até ao fim.
Hoje é só o primeiro dia do resto da
minha vida.