terça-feira, 14 de maio de 2024

A ÚLTIMA AULA

 Ontem acabei o dia com uma sensação estranha.

Em Maio de 2020, na minha escola, ISPA – Instituto Universitário, dei a última aula antes de entrar na reforma, os anos passam. Na altura, escrevi aqui que essa aula não foi uma aula, foi uma “zoomaula”, vivíamos os duros tempos de confinamento. Considerando as circunstâncias, não tínhamos alternativa, acho que correu bem, mas a proximidade, a presença inteira, a comunicação e a relação, o olhar e os gestos, o estar sempre em pé, são difíceis e fazem-nos falta.

Entretanto, assegurando-me de que a continuidade não impediria a substituição pois o corpo docente das instituições precisa de ser renovado e dar oportunidade a gente nova e competente, continuei com uma actividade bem mais reduzida, colaboração num programa de doutoramento em educação e uma disciplina dedicada a problemas de comportamento em contextos educativos que sempre gostei de abordar, para além de realizar também uma menor intervenção no trabalho com professores e pais.

Pois ontem, ao acabar a aula não disse o habitual “bom fim-de semana” apesar da estranheza inicial dos(as) alunos(as) para uma aula à segunda-feira. Daqui a pouco tempo chegarei aos 70, é tempo de acabar, foi mesmo a minha última aula, agora de vez. Foram tempos extraordinários, cruzei-me com alguns milhares de alunos em licenciaturas, mestrados e doutoramentos com quem sempre me senti bem, em particular com quem partilhava e partilha a paixão pela educação. Felizmente com muitos desses (dessas) colegas fui mantendo o contacto. Foi e é muito bom e por isso agradeço a oportunidade que tive.

Tenho para mim, já aqui o escrevi, que professores e pais nunca se reformam ou vão de férias, vão fazendo ajustamentos em papéis que sempre desempenharão, no melhor e no menos positivo, de forma mais próxima ou mais distante.

Esta viagem começou lá para trás no tempo, em 73/74. O secundário foi cheio de hesitações, queria trabalhar com gente jovem, não no ensino, mas no comportamento, nas suas capacidades e competências, nas aprendizagens. Não me via em medicina como cheguei a considerar. Já tinha sido um passo chegar aqui graças a uns pais que quiseram contrariar o destino provável de um operário e fizeram um esforço significativo para que estudasse.

Felizmente, no antigo sétimo ano descobri a psicologia e percebi, é por aqui, é isto que eu quero. Os meus pais tiveram maior dificuldade em perceber o que era a psicologia e como poderia ser um caminho. A verdade é que foi e ... deu-me tudo. Não sei o que é uma vida de sonho, mas olhando para as coisas boas e bonitas que a vida me tem dado, mesmo não esquecendo os sobressaltos que também fazem parte, tenho tido uma vida com que nunca sonhei.

Entrei em 73 no ISPA, na altura a única possibilidade de estudar psicologia em Portugal e rapidamente percebi que era o caminho e que passava pela educação, foi um tempo extraordinário.

Em 75/76 participei numa sessão em se divulgava uma iniciativa emergente, a criação da CERCI de Lisboa como resposta educativa e de reabilitação a crianças, jovens e adultos fora do sistema de educação formal, muitos em casa e em instituições genericamente sem fins educativos. Uns dias depois bati à porta, fui acolhido, comecei como auxiliar de educação e, posteriormente, já como psicólogo integrando uma equipa de pais e técnicos absolutamente notável que, para além da tentativa de todos os dias fazer o melhor possível, ainda contribuiu para que mais respostas surgissem em todo o país. Foram tempos de enorme empenho e sentido de dever e também de gozo por trabalhar com grupos de gente notável na área que tinha escolhido.

Em 1981, num tempo em que no ME se dinamizava a resposta escolar integrada a crianças com necessidades especiais fui convidado para Divisão de Ensino Especial do Ministério da Educação onde, com a liderança de uma figura visionária e motivadora, Dra. Ana Maria Bénard da Costa, se construía um modelo de integração escolar destes alunos através das Equipas de Ensino Especial.

Acompanhando as mudanças, incluindo as legais, passei por serviços regionais logo no início da sua estruturação, voltei aos serviços centrais quando foram instituídos os Serviços de Psicologia e Orientação e posteriormente o Núcleo de Orientação Educativa até que o desencanto se foi instalando com algumas decisões em matéria de políticas públicas de educação, os contactos com quem estava nas escolas, uma característica de muitos anos no trabalho no ME, foram-se esbatendo e reaproximei-me das minhas origens, o ISPA, primeiro numa colaboração específica, psicologia da educação e educação de crianças com necessidades especiais e em 94 ingresso no ISPA em exclusividade, até ontem embora ainda vá assegurar as avaliações. Por um imperativo de consciência, afecto e justiça devo referir a relação com a generalidade dos meus colegas, docentes e funcionários, e, como já referi, a relação estabelecida com muitos e muitos alunos(as), actuais colegas e alguns amigos. Uma palavra especial de agradecimento aos meus antigos e actuais colegas do Departamento de Psicologia da Educação, agora Escola de Educação, pela sua grandeza, competência e afecto.

Neste balanço breve é imperioso referir a colaboração nas actividades do ISPA em Beja, um tempo inesquecível e que recordo amiúde, os amigos criados e os colegas com quem me cruzei, foram muitos e bons.

Entretanto, participei em múltiplos programas de formação inicial e contínua de docentes de todos os ciclos e níveis de ensino, em muitas iniciativas de diferente natureza incluindo, naturalmente as de carácter científico mais formal, mantive alguma produção científica, adquiri os graus inerentes à carreira, mestrado e doutoramento. Escrevi artigos, alguns livros, poucos, muitas comunicações, gosto mais de falar que escrever, colaborei em muitas iniciativas no âmbito da comunicação social e o mais que no universo da educação possa caber. 

Participei em muitos encontros com pais e encarregados de educação conversando e aprendendo sobre o universo da acção educativa familiar. 

Todo o trabalho que tenho desenvolvido tem procurado promover e defender uma resposta educativa de qualidade para todos os alunos, na defesa de modelos promotores de inclusão sendo que inclusão envolve ser, estar, pertencer, participar e aprender. 

Tem sido para mim sempre claro que só a educação e a escola pública poderá fazer chegar essa qualidade a todos numa base de equidade. Foi a minha luta, passe o exagero.

Mas a verdade é que tudo tem um tempo e agora … será outro tempo.

Certamente que vai ser um tempo acrescido para outras lidas. Tenho a família que inclui a mágica avozice de dois netos, tenho a gente amiga, tenho a leitura, tenho as espreitadelas ao mundo, tenho o meu Alentejo e a lida que solicita, tenho … . Também irei passando por aqui, pelo Atenta Inquietude, atenta inquietude que manterei até ao fim.

Hoje é só o primeiro dia do resto da minha vida. 

6 comentários:

Juja disse...

"Há gente que fica na história da gente" e assim é o nosso grande mestre José Morgado. Um enorme ser humano, um professor inigualável, de uma generosidade sem tamanho.Vamos, com toda a certeza, encontrando-nos por aqui. Um beijinho

Anónimo disse...

O professor é uma referência na educação e na psicologia da educação. Ouvi-lo inúmeras vezes e sempre, sempre aprendi. Faz bem dedicar-me a outras áreas da vida, também elas importantes. Vou manter a Atenta Inquietude como leitura habitual. Felicidades.

Alexandra Morgado disse...

Caríssimo professor, foi uma honra e, em particular, um prazer enorme (!!!) ter podido aprender consigo, um dos melhores na sua área de conhecimento.
Há pessoas que nos marcam profundamente ao longo do nosso percurso académico, que nos deixam uma marca indelével que transportamos connosco, vida afora, com orgulho: o professor, pelo seu carisma, sensibilidade, ética e genuína espontâneadade, é uma das minhas: bem-haja!
Desejos de uma reforma longa, preenchida e feliz junto dos que mais ama e que lhe retribuem essa imensa generosidade.
Um forte e caloroso abraço,
Alexandra M.

Paula Dias disse...

Sim, também eu fui sou aluna...

Guardo de si e do ISPA as melhores recordações, foram bons tempos...

Desejo-lhe as maiores felicidades. Quanto à reforma, propriamente dita, acho que isso é coisa que não existe: uma vez Psicólogo, para sempre Psicólogo... :)

Paula Dias

Anónimo disse...

Obrigada Professor. Há pessoas que tinham para sempre na nossa história e o professor ficou na minha, como certamente na de muitos dos seus alunos. Desejo-lhe o melhor nesta nova fase e que continue a transmitir as suas inquietações e pensamentos aqui. Beijinhos
Magda Cunha (ISPA 1987/92)

Zé Morgado disse...

Muito obrigado pela generosidade. José Morgado