domingo, 21 de janeiro de 2024

PODERÍAMOS VIVER SEM A "ATENÇÃOZINHA", O "JEITINHO", MAS NÃO ERA A MESMA COISA

 Está um dia solarengo e bonito por aqui no Alentejo. Depois de chovida uns dias de chuva bem chovida a terra está cheia de água e a erva e a horta brilham de humidade. Depois de uma manhã de roçadora na mão para limpar caminhos pensava vir escrever alguma coisa sobre educação, quase cinquenta anos de vida profissional e a paixão que se mantém por este universo, concorrem para isso.

No entanto, tropecei no Público com uma peça interessante sobre a “cunha”, uma instituição que não conhece crises e está sempre na nossa vida. A educação fica para depois e hoje não falo dos seus problemas, muitos e importantes.

Na verdade, a “cunha”, o “jeitinho”, o “favorzinho” ou uma “atençãozinha, fazem parte da nossa cultura cívica. Aliás, ao longo do tempo tem ganho relevância o empenho e a necessidade dos “facilitadores”, as pessoas que “conhecem” a pessoa certa para o que está causa.

Mesmo os que de nós, também me incluo, vociferamos contra isto já nos deixámos, uma vez ou outra, envolver no "jeitinho" ou na "atençãozinha". Depois é uma questão de escala, pode ir do “obrigadinho” aos milhões.

Como a peça do Público sublinha, trata-se de um fenómeno, um comportamento, profundamente enraizado e com o qual parecemos ter uma relação ambivalente, uma retórica de condenação, uma pontinha de inveja dos dividendos que se conseguem e a tentação quotidiana de receber ou providenciar uma "atençãozinha" ou pedir ou dar um jeito, sempre "desinteressadamente", é claro.

A teia de interesses que ao longo de décadas se construiu envolvendo o poder político, a administração pública, central e autárquica, o poder económico, o poder cultural, a área da justiça e segurança, parte substantiva da comunicação social e toda a relação do dia a dia com a "atençãozinha" à recepcionista que nos passa para a frente na lista de espera ou ao funcionário de quem esperamos que possa dar um "jeito", dificulta seriamente qualquer alteração substantiva neste modo de funcionar.

Combatê-lo passará, naturalmente, por meios e legislação adequada, mas passa sobretudo pela formação cívica que promova uma outra cidadania.

Certamente que poderíamos viver sem a "atençãozinha" ou o "jeitinho", mas não era a mesma coisa.

1 comentário:

Rui Ferreira disse...

Um autêntico cancro em Portugal:

"As pessoas vivem no oficioso justamente porque desqualificam o oficial, ou seja, as políticas e as ações administrativas do Estado democrático" (João Ribeiro-Bidaoui, in Público, 21-01-2024).

"Em ditadura ou em democracia, os procedimentos informais, a meio caminho entre o nepotismo e a corrupção, sempre enformaram a sociedade e a política portuguesas" (António Barreto, in Público, 28-06-2020).