No Público encontra-se um trabalho sobre um universo bastante familiar a uma parte muito substantiva da população portuguesa, apostar na “raspadinha”, um dos jogos sociais que constam na “oferta” da Santa Casa da Misericórdia.
Alguns dados, quase 80% dos jogadores pertencem às classes
mais desfavorecidas, D e E, 61% jogam regular ou frequentemente e 375% dos
apostadores estão acima dos 55 anos.
Antes de mais uma nota prévia. Neste cenário parece completamente
despropositada a intenção do Governo de manter o lançamento de uma nova “raspadinha
do Património Cultural” cuja receita se destina a financiar a valorização e
recuperação do património cultural. Como? O reforço do financiamento da valorização e
recuperação do património vais ser suportado pelas classes sociais mais
desfavorecidas que, também por isso, são as mais susceptíveis de ser atraídas
pela miragem de um ganho imediato e, aparentemente, de baixo investimento, mas
na verdade com um enorme risco de adição.
É de recordar um trabalho desenvolvido por Pedro Morgado e
Daniela Vilaverde da Escola de Medicina da Universidade do Minho e divulgado em
2020 na The Lancet Psychiatry que mostra como a relação de muitos apostadores
portugueses com a vulgar “Raspadinha” tem vindo configurar um comportamento
aditivo, indutor de sofrimento e mal-estar social e familiar. Dados de 2018
mostram que os gastos nestas apostas foram de 1594 milhões de euros, 160€ por
ano em média por apostador o que é superior ao que se verifica em muitos
países, 14€ por em Espanha por exemplo.
A verdade é que para além do caso particular da Raspadinha
tem aumentado de forma geral o investimento dos portugueses nos “jogos sociais”
da Santa Casa e nas apostas online. Na verdade, o Totobola e depois o
Euromilhões, o Totoloto, posteriormente a Raspadinha, fortemente apelativa pela
possibilidade de retorno imediato e grande acessibilidade, e mais recentemente
as apostas online estabeleceram-se firmemente na vida de muitos de nós e
criaram mesmo uma imagem criadora de futuro que nos move, provavelmente e para
muitas pessoas, a única imagem criadora de futuro.
Importa reconhecer que as imagens criadoras de futuro são
imprescindíveis, tanto mais quando atravessamos tempos duros em que esperança
também tem sido revista em baixa e dificilmente vislumbramos a recuperação.
Creio que esta questão é parte importante desta equação e
apesar de sabermos que a decisão de apostar é sempre de natureza individual, o
contexto em que muita gente vive, os estilos de vida e quadro de valores são
variáveis que também devem ser consideradas.
Por outro lado e em termos culturais, também encontramos
algumas pistas para entendimento. Julgo poder afirmar-se que em muitos lares
portugueses e em muitas conversas e talvez mais do que nunca, uma das frases
mais ouvidas é “nunca mais me sai o Euromilhões, para deixar de trabalhar”.
Muito provavelmente, cada um de nós já ouviu, pensou ou disse esta expressão
alguma vez ou vezes que não será usada apenas pelos cidadãos com maiores
dificuldades.
Acho curiosa a sua utilização. Entendo, naturalmente, a
ideia subjacente à primeira parte. Um prémio de valor substantivo
representaria, seguramente, a hipótese de acesso a um patamar superior de
bem-estar económico, desejado, naturalmente, por toda a gente. O que de facto
me parece mais interessante é o complemento “para deixar de trabalhar”. É certo
que nem todas as expressões devem ser entendidas no seu valor “facial”, mas é
também verdade que a recorrente afirmação deste desejo acaba por ilustrar a
relação que muitos de nós estabelecemos com o lado profissional da nossa vida,
isto é, “quero livrar-me dele o mais depressa possível”. Não será grave, mas é
um indicador que possibilita várias leituras.
Neste contexto sabem qual é a minha inquietação para além
dos riscos associados a comportamentos aditivos? É se os miúdos, considerando a
agitação que vai pelo seu mundo “laboral” e os discursos dos adultos, desatam a
pedir, se puderem, um aumento de mesada que lhes permita apostar no Euromilhões
para … deixar de ir à escola.
Já estivemos mais longe. Talvez, também por questões desta natureza, a abordagem deste tipo de questões nos contextos educativos num quadro desenvolvimento e cidadania faça sentido sem que daqui resulte, evidentemente, mais uma disciplina ou mais um projecto.
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