A idade e algum conhecimento foram criando em mim e sem que disso me orgulhe algum cepticismo relativamente à mudança significativa nas políticas públicas de diversos domínios. É verdade, reconheço, que algumas alterações se vão verificando ainda que longe do necessário, mas sempre apresentadas envolvidas em inovação, novos paradigmas, projectos, etc.
Uma das áreas mais necessitadas de alterações significativas
e urgentes será a saúde mental, que, aliás, sempre tem sido o parente pobre das
políticas de saúde.
Não sei se será um sintoma de cansaço pandémico, precisar de ver algo de positivo que nos alimente o futuro, mas a verdade é que a entrevista do director do Programa Nacional de Saúde Mental, Miguel Xavier, ao Público me animou, será desta?
Em síntese e referindo apenas alguns aspectos, no âmbito do
Plano de Recuperação e Resiliência, Portugal terá acesso a meios financeiros
para investir na reforma dos dispositivos de apoio em matéria de saúde mental.
Numa primeira fase serão criadas 40 equipas comunitárias
para apoio na residência das pessoas, serão desenvolvidos programas de
intervenção não farmacológica nos centros de saúde (a pandemia fez subir o já demasiado
elevado consumo de psicofármacos) e serão criadas quatro novas unidades de
internamento de agudos em hospitais gerais.Apesar de algumas equipas em funcionamento, os recursos humanos e o seu número são manifestamente insuficientes.
Está também prevista a criação de equipas móveis para as
demências e uma aposta forte na desinstitucionalização dos doentes crónicos e
de três unidades de transição para os doentes inimputáveis que terminam a pena. Espera-se ainda um reforço significtivo de uma resposta não medicalizada nos cuidados de saúde primários.
Prudentemente, Miguel Xavier recorda que “apenas” o dinheiro
que virá não será suficiente em vontade políticas e capacidade de
operacionalização.
O que agora se anuncia faz parte de há muito das recomendações,
em 2019 o Conselho para os Direitos Humanos da ONU a necessidade de uma
fortíssima e urgente alteração no modelo de resposta em saúde mental, recorrer
menos à institucionalização e à medicação e mais a uma abordagem de natureza
social com particular atenção a fenómenos como pobreza desigualdade e exclusão
que alimentam discriminação
No que a nós respeita, segundo o Relatório do programa da
União Europeia "Joint Action on Mental Health and Well-being"
divulgado em 2015, Portugal estava muito longe do desejável no que respeita à
prestação de cuidados no domicílio e serviços na comunidade a pessoas com
doença mental. Estima-se que menos de 20% dos doentes tenha acesso a este tipo
de cuidados.
A ausência de respostas adequadas leva a um recurso
excessivo à prescrição de psicofármacos mesmo em situações não justificadas
como tem sido recorrentemente demonstrado.
Também de 2015, o estudo Trajectórias pelos Cuidados de
Saúde Mental em Portugal, promovido pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e
Saúde Mental mostrva que o encerramento, positivo entenda-se, dos hospitais
psiquiátricos não foi acompanhado da criação de serviços na comunidade pelo que
a desinstitucionalização falhou e “agravou os problemas de muitos doentes”.
Afirmava-se no Relatório que a Rede de Cuidados Continuados Integrados de Saúde
Mental não se concretizou e escasseiam os recursos.
Parece claramente mais ajustada a aposta em equipas
comunitárias e apenas um número reduzido de camas para situações mais críticas
de adultos ou crianças para as quais faltam de facto, camas levando ao seu
inaceitável internamento em serviços para adultos.
Na verdade e como se sublinha no Relatório, as orientações
actuais e matéria de saúde mental, quer do ponto de vista científico, quer do
ponto de vista dos custos, determinam que a qualidade e eficácia deste tipo de
apoios, deve, tanto quanto possível, assentar em estratégias de proximidade,
aproximando, assim, o serviço clínico da comunidade e da vida quotidiana das
pessoas.
Os modelos defendidos pela comunidade científica actual, a
defesa dos direitos humanos e da qualidade de vida, tornaram insustentável a
manutenção das grandes instituições psiquiátricas que encerravam muitas câmaras
de horrores e casos de isolamento e privação. Ainda me lembro do incómodo
causado por visitas realizadas no início da minha formação ao Hospital Júlio de
Matos. Este universo é bem retratado no mítico “Jaime” de António Reis e
Margarida Cordeiro.
No entanto, este movimento de retirada das pessoas com
doença mental das grandes instituições precisa de um suporte adequado e
suficiente de unidades locais que providenciem apoio terapêutico, social e
funcional tão perto quanto possível das comunidades de pertença dos doentes e
com o mínimo recurso ao internamento que agora, quero acreditar, poderão mesmo
realidade.
A sua não existência, o quadro actual, cria sérios
obstáculos aos processos de reabilitação e inserção comunitária acentuando ou
mantendo os fenómenos de guetização das pessoas com doença mental e respectivas
famílias.
Não estranho, os doentes mentais são os mais desprotegidos
dos doentes, pior, só os doentes mentais idosos. Os custos familiares e sociais
desta guetização são enormes e as consequências são também um indicador de
desenvolvimento das comunidades.
Será seta que a coisa muda de forma significativa?
Deixem lá ver, como falamos no Alentejo.
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