Não deixa de ser uma coincidência curiosa estarmos ainda no rescaldo da apresentação da proposta do Governo de Orçamento Geral do Estado para 2011 e das suas consequências para as famílias no dia em que a agenda das consciências determina o Dia Internacional de Erradicação da Pobreza, e ainda em pleno Ano Europeu de Luta contra a Pobreza e Exclusão. Com cerca de dois milhões de cidadãos em risco de pobreza, 300 000 dos quais crianças, 650 000 desempregados e um terço das famílias com orçamentos encostados ao limiar de pobreza a situação está grave.
Como é habitual nos dias que em que a consciência se debruça sobre a problemática agendada, surge a retórica e mediatização dos problemas. Por um lado, tem a vantagem óbvia de chamar a atenção para essas matérias mas, por outro lado, permite a emergência de discursos e exemplos de atitudes voluntaristas muito mediatizadas, que numa lógica de proteccionismo de natureza caritativa, sendo naturalmente importantes em alguns aspectos, não questionam seriamente os modelos de desenvolvimento (!) e sistema de valores que verdadeiramente produzem a pobreza e a exclusão que se propõem combater, meritoriamente, aliás.
Neste contexto, lembrei-me de alguns episódios da minha infância que ainda agora me causam alguma perplexidade. Na zona onde na altura habitava, era relativamente frequente a aparecerem pessoas a bater à porta para, numa humilhante circunstância, pedir esmola, o mais degradante dos pedidos, que aliás começa a reaparecer. Nessa altura, sem a actual paranóia securitária, ainda eram as crianças que acudiam a ver quem era. Eu assim fazia. E depois de verificar que era “um pobrezinho” (o tal tranquilizante fórmula no diminutivo a que já me referi no Atenta Inquietude) avisava a minha mãe. Sem eu nunca conseguir entender com critérios, ela decidia dar ou não dar esmola, em dinheiro ou em géneros. Mas a minha grande perplexidade, que se mantém até hoje, tem a ver com o facto de que, quando decidia não ser caridosa, a minha mãe mandava-me de volta para dizer ao pobrezinho “tenha paciência”. Devo dizer que ainda hoje esta memória me deixa embaraçado. Então o homem, ou mulher, não tem que comer, não tem trabalho, não leva ajuda ou apoio e ainda tem que ter paciência. É extraordinário como até como caridade se oferecia conformismo. E o que hoje me fez lembrar esta história foi exactamente isso, a normalidade conformista da pobreza e da exclusão.
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